A ruína do Roda Viva
Danilo Sartorello Spinola*, Pragmatismo Político
O programa Roda Viva da TV cultura é uma referência jornalística. Com uma vasta lista, congrega algumas das melhores entrevistas já realizadas na história da televisão Brasileira. Herdeiro do também excelente programa Vox Populi, os dois televisivos são arquivos da história política, econômica e do pensamento social brasileiro. Programa que já entrevistou a Luís Carlos Prestes, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Celso Furtado. Pelo lado do espectro político de direita tiveram no centro da roda figuras relevantes como Roberto Campos, Delfim Neto, e Francis Fukuyama. Políticos dos mais relevantes do Brasil e do exterior foram entrevistados. Ganhadores do Nobel e grandes pensadores já passaram pela já consagrada sabatina.
É de se indignar as recentes mudanças de foco do Roda Viva. Essas mudanças vem avançando há alguns anos mas se reforçaram nos anos de 2015 e 2016. Antes um lugar de relevante debate, hoje o programa se tornou um espaço para o ativismo político de viés conservador, para a sua propaganda e bajulação. A bancada que se vê toda segunda-feira está recheada por jornalistas que representam aqueles setores da grande imprensa brasileira caracterizados pela neutralidade seletiva, pelo ativismo voraz envergonhado, pelos interesses explícitos camuflados e por aqueles que usam opinião em nome da informação. Independente da filiação dos entrevistadores, isso não me incomodaria caso realizassem um trabalho honesto, investigativo e inteligente. Isso no entanto está longe do que se tem observado.
Uma possível coincidência ter ocorrido tantas mudanças desde a ultima alteração do mediador do programa. A parte o viés claramente conservador, o nível de qualidade dos jornalistas entrevistadores convidados e dos entrevistados decaiu profundamente. O programa mudou seu perfil de maneira radical. Passou a se tornar um palanque para que políticos da mais baixa credibilidade como Roberto Jefferson, Eduardo Cunha e Delcídio Amaral possam expor o rancor seletivo contra setores progressistas. Um programa que não apenas dá espaço, mas que faz entrevistas que se assemelham a conversas de bar com os integrantes mais questionáveis do governo “pós-impeachment”.
O programa dedicou dias completos nos últimos dois anos a entrevistas afáveis com atuais governistas como José Serra (2x em menos de um ano), Romero Jucá, Rodrigo Maia, Raul Jungmann, Mendonça Filho, Aloysio Nunes, Antonio Anastasia e Ronaldo Caiado – para dizer alguns dos mais recentes. Por outro lado, transformou em guerra a entrevista com José Eduardo Cardozo.
O que se tem agora é um programa que dá total destaque entrevistando a Janaína Pascoal e Helio Bicudo. Que trouxe recentemente Eduardo Cunha, ainda o homem que interessava aos impedidores, e o tratou como rei.
Mais explícito ainda é o perfil dos economistas recentemente chamados para ser entrevistados. Gustavo Franco, Monica de Bolle, Armínio Fraga, Marcos Lisboa. Todos de orientação claramente liberal e abertamente defensores de um projeto que vai de acordo com as propostas em pauta no atual governo. Um avanço que não abre espaço para economistas progressistas propor alternativas ou mesmo abrir diálogo. E o mais alarmante é que propor qualquer debate com a heterodoxia é hoje rechaçada por meio do argumento que convence mais pela repetição, um mantra, do que pela precisão argumentativa, de que “o desenvolvimentismo quebrou o país”.
Apesar do pessimismo com a trajetória recente do semanal, nem tudo está perdido. Houve sim programas interessantes, como o especial sobre a crise econômica brasileira e entrevistas com filósofos e intelectuais como Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella, Renato Janine Ribeiro e (até) Luis Felipe Pondé.
O ponto mais baixo da história recente do programa, no entanto, ocorreu na última segunda-feira, dia 14/11/16.
Neste dia o Roda Viva “entrevistou” o atual presidente Michel Temer. Aquele que não foi eleito para esse cargo, e que só chegou lá pela forma indireta, pelo tapetão político. No entanto, o entrevistado foi o que claramente menos se destacou. O que chamou a atenção sim foi a situação de confraternização criada e a postura dos entrevistadores dentro do palácio da alvorada. Isso em um contexto de conjuntura política em que questões fundamentais e estruturais do debate e sociedade brasileiras estão em jogo. Em que a constituição de 1988 e seu projeto social-democrata vem sendo agredido de forma radical. Em que se vive uma crise econômica aprofundada por políticas de contração de gastos, as quais virarão logo parte da constituição. Em que em pauta estão a flexibilização trabalhista, e a reforma da previdência. Em um momento de inflexão de 180 graus na orientação de política externa.
Ao princípio da entrevista, logo na primeira pergunta sobre Romero Jucá e sua declaração sobre a lava jato, deu-se sinais de que se poderia ter um interessante programa. No entanto, após uma resposta evasiva, a continuação da entrevista foi um conjunto de obviedades que foi se transformando em uma resenha entre amigos. Respostas vazias sem tréplicas, risadas, diversos afagos. Como uma confraternização em um aniversário infantil. Até se chegou a gargalhar, o que surpreende dado o reconhecido grau de humor do atual inquilino da Alvorada. A coroação da noite foi a pergunta de Ricardo Noblat, aquele que já havia elogiado o presidente como um homem “bonito”: “Onde Temer conheceu a Marcela?”. Como destacou Glenn Greenwald e Thiago Dezan, jornalistas do The Intercept: “assemelhava-se a um churrasco animado entre amigos”.
Por fim, o âncora do Jornal da Cultura Willian Corrêa, ao tietar Temer após a entrevista, transmitiu ao vivo o afago do presidente: “Obrigado ao Roda Viva pela Propaganda”. Propaganda…. É o que resume a atuação recente do semanário. Como divulgação do conservadorismo da oligarquia brasileira com uma roupagem de bom-mocismo e de modernidade.
Por Prestes, Furtado, Florestan e Ribeiro, e pelo caráter público da TV Cultura se metamorfoseando em Globo News… Naquele momento o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração.
Como dizia aquele que inspirou o batismo do programa: “Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.”
Assista ao vídeo:
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*Danilo Sartorello Spinola é doutorando em Economia no Maastricht Economic and Social Research Institute on Innovation and Technology (UNU-MERIT), pesquisador colaborador no Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT) da Unicamp. Economista e sociólogo pela Unicamp, mestre em economia pela Unicamp, foi consultor na CEPAL-UN e colaborou para Pragmatismo Político.