Charles Sidarta Machado Domingos*, Pragmatismo Político
Duas vezes eleito vice-presidente da República (1956 e 1960) pelo PTB – em ambas eleições conquistando mais votos que seus companheiros de chapa, na primeira vez Juscelino Kubitschek (PSD), na segunda Henrique Teixeira Lott (PSD) – João Goulart morreu em 6 de dezembro de 1976, na Argentina, há 40 anos atrás.
Até bem poucos anos atrás, a memória do governo de João Goulart (1961-1964) ainda permanecia no porão da História, lugar em que raramente recebia visitas. Dos presidentes brasileiros pós 1930, a lembrança mais viva que se tinha ainda era a de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitscheck. No primeiro, uma lembrança controversa: o “pai dos pobres” e o ditador do Estado Novo se confundem, se mesclam, de forma que determinados setores têm determinadas lembranças, em razão da seletividade da memória, ocultando aquilo que não os interessa lembrar. Já o segundo é revestido no imaginário predominante no Brasil, sobrepondo-se além das diferenças de setores e classes sociais, como sendo o responsável pelo “crescimento do Brasil”, por fazer o país “crescer cinqüenta anos em cinco”, esquecendo-se do endividamento resultante do Plano de Metas e da construção de Brasília. No entanto, os dois foram vencedores: Getúlio Vargas venceu pelo suicídio, “saindo da vida para entrar na História”, enquanto Juscelino Kubitscheck venceu através de sua obra – Brasília – e do seu sonho/ilusão de desenvolvimento nacional. João Goulart, não.
Para a História, até bem pouco tempo atrás, João Goulart passara como um derrotado, em razão de ter sofrido o golpe de Estado, de ter sido apeado do poder e de ter sido exilado. Além disso, a lembrança – e por isso mesmo a memória – que se tinha de Goulart não era tanto da sua vida; forte era lembrança da sua morte, pois fora o único presidente brasileiro a morrer no exterior, e nas agruras do exílio.
Foi por volta de 2004 que a História passou a olhar para Goulart e seu governo de uma forma diferente. Embalado pelas pesquisas que tinham como objeto o golpe de 64 – em razão daquele evento estar completando 40 anos -, João Goulart e seu governo passaram a ter uma nova dimensão perante a História. A partir de uma forte crítica ao conceito de populismo, a historiografia passou a ver em Goulart não mais um “populista”, mas sim um nacionalista, um reformista, ou até mesmo como produto da soma dessas perspectivas: um nacional-reformista. Jango passou a ser identificado como ator de uma nova História, uma História na qual novos personagens entravam em cena: os trabalhadores, das cidades e dos campos, que se organizavam na luta pelas Reformas de Base, encabeçadas pelo presidente trabalhista.
Não há consenso, ainda, sobre as razões que levaram ao golpe de 64. Importantes historiadores apontam que o golpe foi consequência de fatores estruturais da sociedade brasileira e de seu desenvolvimento capitalista; outros percebem a conspiração dos setores de direita como a razão para o golpe; clássica e reatualizada, agora com muito mais provas do que convicções, é a interpretação que privilegia o papel desempenhado pelos Estados Unidos na queda de Goulart; além, de uma interpretação calcada na mudança de mãos da “bandeira” da Legalidade, passando de Goulart para os setores conservadores da sociedade.
Conquanto a memória de Jango continue vinculada com a ditadura – afinal, o golpe e a ditadura que se seguiu por 21 anos foram perpetrados contra o trabalhismo e contra a emergência do protagonismo dos setores populares na vida política e social do país – a memória coletiva e sua relação com a História privilegiam um líder popular, autêntico representante de um projeto nacional-reformista, que entendia que o Estado precisava desempenhar um papel de relevo na realização de reformas sociais, políticas e econômicas, visando ao desenvolvimento do país, dando uma atenção bastante especial para os mais pobres.
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Passados 40 anos, hoje a memória que se tem de Goulart, não é mais a de sua morte, triste, no exílio. Hoje, a História lembra de um outro Goulart. Bem vivo, comprometido com as lutas sociais de seu tempo e como um vice-presidente que sempre soube muito bem o que é voto. Passados 40 anos, sem sombra de dúvidas, a História também absolveu João Goulart.
*Charles Sidarta Machado Domingos é doutor em História pela UFRGS e colabora para Pragmatismo Político.
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