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Direitos Humanos 15/Dez/2016 às 17:54 COMENTÁRIOS
Direitos Humanos

Dom Paulo Evaristo Arns, por Leonardo Boff

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Publicado em 15 Dez, 2016 às 17h54

Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho

Dom Paulo Evaristo Arns Leonardo Boff
Dom Paulo Evaristo Arns e Leonardo Boff (Imagem: Pragmatismo Político)

Leonardo Boff*

Perdi um mestre, um mecenas, um protetor e um amigo entranhável. Coisas importantes vão ser ditas e escritas sobre o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, falecido hoje, dia 14 de dezembro. Não direi nada. Apenas dou meu testemunho.

Conheci-o no final dos anos 50 do século passado em Agudos-SP quando ainda era seminarista. Voltou de Paris com fama de ser doutor pela Sorbone. No seminário com cerca de 300 estudantes introduziu metodologias pedagógicas novas. Fez-nos conhecer a literature grega e latina, línguas que dominava como dominamos o vernáculo. Fez-nos ler as tragédias de Sófocles e de Eurípedes em grego. Sabíamos tanto grego que até representamos a Antígona em grego. E todos entendiam.

Depois vim a conhecê-lo em Petrópolis como professor dos Padres da Igreja e da história cristã dos dois primeiros séculos. Obrigava-nos a ler os clássicos em suas línguas originais, São Jerônimo, seu preferido, em latim e São João Crisóstomo, em grego.

Quando o visitei há dois anos no convento de religiosas na periferia de São Paulo o encontrei lendo sermões em grego de São João Crisóstomo.

Foi nosso Mestre de estudantes durante todo o tempo da teologia em Petrópolis de 1961-1965. Acompanhava com zelo cada uma em suas buscas, com um olhar profundo que parecia ir ao fundo da alma. Era alguém que sempre procurou a perfeição. Até entre nós estudantes disputávamos para ver quem encontrava algum defeito em sua vida e atividade.

Cantava maravilhosamente o canto gregoriano no estilo de Solemnes, mais suave do que o duro de Beuron que predominava até a chegada dele.

Durante quatro anos o acompanhei na pastoral da periferia. Nas quintas-feiras à tarde, no sábado à tarde e no domingo todo, acompanhei-o na capela do bairro Itamarati em Petrópolis. Visitava casa por casa, especialmente as famílias portuguesas que cultivavam flores e horticultura. Onde chegava logo fundava uma escola. Estimulava os poetas e escritores locais.

Depois da missa das 10.00 os reunia na sacristia para ouvir os poemas e os contos que haviam produzido durante a semana. Estimulava intelectualmente a todos a lerem, escreverem e a narrarem para os outros as histórias que liam.

Era um intelectual refinado, conhecedor profundo da literatura francesa. Escreveu 49 livros. Instigava-nos a seguir o exemplo de Paul Claudel que costumava cada dia escrever pelo menos uma página. Eu segui seu conselho e hoje já passei dos cem livros.

O que sempre me impressionou nele foi seu amor e seu afeto franciscano pelos pobres. Feito bispo auxiliar de São Paulo ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de base e empenhando pessoalmente Paulo Freire.

Como era tempo da ditadura, especialmente férrea em São Paulo, logo assumiu a causa dos refugiados vindo do horror das ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile. Sua missão especial foi visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem e defender os direitos humanos violados barbaramente. Correu riscos de vida com ameaças e atentados.

Mas como franciscano sempre mantinha a serenidade como quem está na palma da mão de Deus e não nas garras dos policiais da repressão.

Talvez seu feito maior foi O Projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido por ele, pelo Rabino Henry Sobel e pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright com toda uma equipe de pesquisadores.

Foram sistematizadas informações de mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar. O livro publicado pela Editora Vozes “Brasil Nunca Mais” teve papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e acelerou a queda da ditadura.

Eu pessoalmente sou-lhe profundamente grato por me ter acompanhado no processo doutrinário movido contra mim pelo ex-Santo Ofício em 1982 em Roma sob a presidência do então cardeal Joseph Ratzinger.

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No diálogo que se seguiu ao meu interrogatório, ele corajosamente deixou claro ao cardeal Ratzinger: “Esse documento que o Sr. publicou há uma semana sobre a Teologia da Libertação não corresponde aos fatos que nós bem conhecemos; essa teologia é boa para os fiéis e para as comunidades; o Sr. assumiu a versão dos inimigos desta teologia que são os militares latino-americanos e os grupos conservadores do episcopado, insatisfeitos com as mudanças na pastoral e nos modos de viver a fé que este tipo de teologia implica”.

E continuou: “Cobro do Sr. um novo documento, este positivo, que valide esta forma de fazer teologia a partir do sofrimento dos pobres e em função de sua libertação”. E assim ocorreu, três anos após.

Tudo isso já passou. Fica a memória de um cardeal que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e sofredores deste mundo.

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*Leonardo Boff é teólogo, filósofo, professor, ecologista e escritor

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