Governo

O afastamento de Renan Calheiros e as bombas da igreja no Rio de Janeiro

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A PM invade uma igreja no Rio de Janeiro e a utiliza como base para lançar bombas em trabalhadores que protestavam contra o pacote do governo estadual. Ao mesmo tempo, Renan Calheiros desobedeceu decisão do ministro Marco Aurélio e não deixou a presidência do Senado. O que os dois fatos têm em comum?

por Leonardo Sakamoto*

Policiais militares invadiram a Igreja de São José, no Centro do Rio de Janeiro, e a utilizaram como base para lançar bombas em manifestantes que protestavam contra o pacote anticrise do governo carioca, que pretende cortar direitos de servidores.

Ao mesmo tempo, a mesa diretora do Senado Federal desobedeceu a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello, afirmando que Renan Calheiros segue na Presidência da Casa até que o pleno do Supremo Tribunal Federal julgue seu afastamento.

Apesar de acontecerem em duas cidades diferentes e envolverem, de um lado, a elite política e judicial do país, e, do outro, servidores públicos, fardados ou não, os dois fatos derivam da mesma matriz: o baixo nível de respeito às instituições.

Não estou entrando no mérito se os policiais estavam acuados ou não. Isso não justifica a invasão de um templo religioso. Da mesma forma, não estou entrando no mérito da liminar do ministro do Supremo – que vem sendo duramente criticada por juristas pelo individualismo institucional. Isso não justifica o descumprimento de uma ordem judicial do STF.

O processo de impeachment (ou golpe ou granola, não importa o nome que você queira dar ao ocorrido) esgarçou instituições para se consumar e passou por cima de muita coisa. Era preciso retirar Dilma de lá e, para isso, tudo foi possível – de abraçar um notório corrupto que transformou a Câmara dos Deputados em seu playground particular até aceitar uma acusação frágil, baseada naquilo que todos os governos fizeram antes dela, ao invés de esperar pelos desdobramentos da Lava Jato.

Que seu governo estava ruim, isso é inegável – até ela deve concordar com isso. Mas a partir do momento que você joga fora as regras que construímos por um longo tempo para viver em mínima harmonia, reescrevendo-as diante de suas necessidades particulares e imediatas ou da opinião de seu grupo, isso abre uma ferida. Que não se fecha facilmente. Que infecciona.

Temos agora um conflito deflagrado entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, mais Ministério Público. E Michel Temer não deve ter sucesso na mediação dessa situação porque não tem legitimidade para tanto. Sua legitimidade é o apoio dos patos amarelos que o ajudaram a chegar lá e esperam que ele entregue a fatura na forma da redução do tamanho do Estado.

Aliás, uma coisa é a reforma da Previdência surrar a dignidade de trabalhadores braçais dos mais baixos estamentos sociais ao impor uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria impactando a quem, não raro, começou a trabalhar antes dos 14. Outra coisa é a ”classe baixa com poder de consumo” (que o governo Lula rebatizou despudoradamente de classe média baixa) se ligar que terá que trabalhar por, pelo menos, 49 anos para poder ter uma aposentadoria integral. Se a ficha desse povo cair de verdade, a legitimidade de Temer valerá menos que uma nota de três reais.

Mas a perda de respeito às instituições também já desceu ao nível da rua. Eu que não sou religioso, muito pelo contrário, fiquei consternado ao ver a polícia militar do Rio invadindo um local sagrado para milhões de pessoas e, a partir dali, lançar bombas em manifestantes. Isso não é sociopatia por parte de alguns policiais, mas sim sintoma dessa perda de respeito a instituições.

A imprensa, que já foi melhor ranqueada entre as instituições de respeito do país também anda em baixa. Jornalistas apanham sistematicamente da polícia e de manifestantes. Parte da sociedade não entende um ataque a um jornalista como um ataque à liberdade de expressão, um pilar da democracia, como na verdade é. Vê isso como uma manifestação do descontentamento ao estado das coisas. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos principalmente pelas redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, parte para a ignorância.

Isso sem contar que, em um ambiente de equilíbrio institucional e de bom funcionamento da democracia, não consigo imaginar um ministro de Estado gravando um presidente da República para se proteger de ataques do próprio governo e denunciar desvios de função. Muito menos um outro ministro de Estado usar seu cargo para tentar liberar um embargo de um prédio, no qual ele tem um apartamento de luxo, imposto pelo órgão de patrimônio histórico.

Iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite.

Demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos.

Ou seja, a dúvida que fica é se a reação em cadeia não é inevitável e nos levará inexoravelmente para o buraco.

A impressão, por enquanto, é que todo mundo representa a si mesmo e aos interesses do seu grupo, corporativo, econômico, político. O bem do país? Foda-se.

Leia-se por ”buraco” a eleição, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática em 2018 ou a busca por soluções autoritárias por parte de uma população cansada do clima de ”vale tudo” e de ”ninguém e de ninguém”.

Eu diria ”Que Deus nos ajude”. Mas ele deve estar ocupado com o povo de farda que invadiu sua casa.

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela USP

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