O STF legalizou o aborto no Brasil até o terceiro mês de gestação?
Decisão da 1ª turma do STF sobre aborto até o terceiro mês de gestação gerou uma série de correntes falsas no WhatsApp e nas redes sociais indicando que a prática havia sido descriminalizada no Brasil. Entenda o que realmente aconteceu
A primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no início da semana, que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime.
A decisão gerou alvoroço nas redes sociais e internautas contrários e favoráveis à descriminalização do aborto criticaram ou elogiaram a medida.
A verdade é que o aborto não está descriminalizado no Brasil e a explicação é muito simples: a decisão foi tomada apenas pela primeira turma do STF (cinco de onze ministros), e não pelo plenário como um todo — o que teria dado força de lei à medida.
Apesar de não representar a descriminalização do aborto, a sentença é importante pois pela primeira vez o Supremo não pune a interrupção voluntária da gestação.
Para André Augusto Salvador Bezerra, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e presidente da Associação Juízes para a Democracia, a decisão pode influenciar muitos juízes de instâncias inferiores, que costumam citar jurisprudência do STF em suas decisões. “Existe novo precedente, até então inédito, que descriminaliza o aborto.”
Caso específico
No caso específico, a 1ª turma do STF revogou a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina de aborto em Duque de Caxias (RJ).
A questão girava em torno da existência de requisitos legais para as prisões. Mas, em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso trouxe uma novidade. Para ele, as prisões não deveriam ser mantidas porque os próprios artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre de gestação violam direitos fundamentais da mulher.
Outros dois ministros, Rosa Weber e Edson Fachin, concordaram com Barroso. Para eles, não haveria crime na prática do aborto. O relator, ministro Marco Aurélio, e Luiz Fux não se manifestaram sobre a descriminalização.
Decisão inédita
A decisão da turma do STF é vista por especialistas como inédita. De acordo com o Código Penal, o aborto pode ser realizado no Brasil por um médico apenas quando a gravidez representa risco à vida da gestante ou quando a mulher foi estuprada.
Em 2012, os ministros do STF consideraram que o aborto de feto anencéfalo também não constitui crime. Eles entenderam que o feto sem cérebro é “juridicamente morto”.
Agora, pela primeira vez há na Corte uma decisão com o entendimento de que não há crime em abortos feitos nos três primeiros meses de gestação. Essa decisão pode ser usada como orientação por juízes de outras instâncias, que tenham o mesmo entendimento sobre o aborto.
Médicos vão realizar mais abortos?
Em hospitais e consultórios, médicos enfrentam dilemas éticos frente a situações vividas por mulheres. Para Mauro Aranha, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), a decisão da turma do STF não deixa o médico em situação mais tranquila. “Não alivia e não cria segurança porque não tem poder vinculante, não é generalizável”.
O médico explica que o código de ética da medicina proíbe procedimentos que não sejam legais, ao mesmo tempo que diz que o médico não pode se omitir em situação que colocam em risco a mulher.
“Existem situações dramáticas, em que a mãe não tem condições socioeconômicas, saúde mental ou ambiente familiar adequados, e procura um médico para realizar um aborto. O médico vai continuar em conflito porque lei não mudou”, afirma.
Para ele, contudo, a decisão recende do STF abre uma perspectiva promissora. “Toda criminalização que envolve a saúde afasta os pacientes do médico, e isso em si é um grande dano”.
Aranha defende tirar a questão do campo do crime e colocar no campo da saúde, dos direitos sociais e dos direitos humanos. “O que não significa que se deva banalizar o aborto. Uma nova lei deve ser discutida por todos os envolvidos, principalmente as mulheres”, completa.
Descriminalização de verdade
Existem dois caminhos para que o aborto no início da gravidez seja descriminalizado definitivamente no Brasil. Um seria por meio da criação de nova lei pelo Congresso que reformasse o Código Penal. A outra seria com o STF decidindo em plenário que o aborto em tais condições não é crime.
Para isso, é necessário que uma entidade com legitimidade para entrar com ações no STF leve os ministros a debaterem o aborto. Um exemplo é o julgamento no Supremo da possibilidade de aborto para mulheres infectadas pelo vírus da zika. A questão levada à Corte pela Anadep (Associação Nacional dos Defensores Públicos), que questiona as políticas públicas do governo federal na assistência a crianças com microcefalia, má-formação provocada pelo vírus.
O STF também poderia editar uma “súmula vinculante”, decidindo que o aborto no início da gravidez é legal em todos os casos, se houver muitas decisões e habeas corpus nesse sentido. Em todos os casos, o STF precisaria entender que o Código Penal vai contra direitos fundamentais presentes na Constituição, como fez o ministro Barroso nesse caso específico.
O que diz Barroso
Um dia depois do entendimento da 1ª turma do STF sobre o aborto, o ministro Luís Roberto Barroso disse em entrevista que a “decisão é importante para deflagrar um debate que já não deveria mais ser adiado. Em uma democracia, nenhum tema é tabu. A decisão não defende o aborto nem propõe a disseminação do aborto. É uma decisão para que se adotem políticas públicas melhores do que a criminalização para evitar o aborto. O que a decisão pretende fazer é contribuir para o fim dos abortos clandestinos, que mutilam e levam à morte muitas mulheres”
Exemplo uruguaio
A descriminalização do aborto no Uruguai, em 2013, pode servir de parâmetro para outros países aprofundarem o debate sobre a questão.
No primeiro ano de abortos legais e seguros, 6.676 procedimentos foram realizados e nenhuma morte registrada. Do total de abortos realizados no marco da nova lei, em apenas 50 casos (0,007%) houve complicações leves, revela um balanço de 2014.
Um outro dado curioso aponta que, depois da descriminalização, o número de mulheres que desistiram de abortar no Uruguai cresceu 30%. A pesquisa revelou ainda que 18% das mulheres que buscam o procedimento correspondem a menores de 20 anos.
França
Na França a legislação do aborto é bem mais antiga. Recentemente, o país celebrou 40 anos de descriminalização. Saiba mais sobre o caso francês aqui.