Torcedores que estavam presos sem provas há 40 dias são liberados. Famílias denunciam tortura. “Meu filho estava estudando gastronomia e ia se formar neste ano. Fui obrigada a trancar matrícula”, desabafa uma mãe
Sarah Fernandes, RBA
A Justiça fluminense liberou dia 30 de novembro dois dos 30 torcedores que seguiam presos desde 23 de outubro após um jogo entre Corinthians e Flamengo no Maracanã, no Rio de Janeiro, pelo campeonato brasileiro. Os corintianos foram detidos uma hora após o término da partida por suposta agressão a policiais militares, porém ainda não há provas do envolvimento dos torcedores no confronto. Apenas quatro dos detidos foram identificados em imagens. Familiares denunciam tortura, maus tratos e restrição de acesso a advogados.
Na sessão judicial do dia 30 foram julgados dois habeas corpus com expedição de alvará de soltura dos envolvidos. Os demais torcedores seguem presos sem provas em Bangu 10. Após o jogo foram detidas 31 pessoas, porém, um deles era menor de 18 anos e já foi liberado. Há provas, no entanto, que o jovem não havia nem sequer chegado ao estádio no momento do confronto envolvendo torcedores e policiais, iniciado meia hora antes da partida.
Os torcedores foram detidos em flagrante acusados de crimes de lesão corporal, dano qualificado, provocação de tumultos em locais de jogos, resistência qualificada e associação criminosa. “Meu filho estava estudando gastronomia e ia se formar neste ano. Fui obrigada a trancar matrícula”, conta Receba Souza e Silva, mãe do estudante Vitor Hugo, de 21 anos, que está no grupo dos detidos, apesar de haver imagens comprovando que ele não participou do confronto. “Fui visitá-lo hoje e saí de lá sem condições de dar dois passos. Ele está explodindo. Só sabe repetir que 40 dias preso é demais para quem não fez nada.”
Meia hora antes do início do jogo, torcedores do Flamengo se aproximaram do alambrado de separação e provocaram os corintianos jogando garrafas de água e outros objetos na torcida adversária. A Polícia Militar se aproximou e começou a tentar afastar os corintianos com golpes de cassetete. Um grupo revidou e agrediu um membro da corporação. A polícia usou gás lacrimogêneo e spray de pimenta para apartar o conflito. No momento não houve nenhum detido e nenhum lesão grave nos envolvidos.
Após o jogo, os torcedores corintianos foram orientados a permanecer no estádio para posterior evacuação do local, em uma manobra comum em casos de encontros de torcidas. No entanto, minutos depois, sem nenhuma explicação, começaram a ser liberadas apenas as mulheres e as crianças. Pelo menos 3 mil homens foram mantidos no local e obrigados a tirarem a camisa e permanecerem com a coluna reta e olhando pra frente, segundo um dossiê sobre o caso, organizado por familiares e advogados.
Entre eles, a polícia selecionou 69 pessoas, que teriam sido reconhecidos por cinco policiais com base em supostas análises de imagens da TV, segundo o depoimento prestado posteriormente pelos policiais, que está contido nos autos de prisão em flagrante. As imagens, no entanto, nunca foram divulgadas. Todos se encaixavam em um suposto biotipo: acima do peso, com barba e com tatuagens.
“Nas imagens que dão suporte ao auto de prisão em flagrante, somente quatro torcedores são identificados e nominados, portanto, 27 dos 31 que estão presos não aparecem nas imagens. Isso torna inadmissível, repleto de vícios e plenamente nulos os depoimentos apresentados pelos supostos agentes garantidores de lei e da ordem”, diz o dossiê. “Ressalte-se o método de tal seleção, ocorrida após uma hora do término do jogo, ou seja, cerca de três horas após o confronto.”
Tortura
Os selecionados foram levados a uma área interna do estádio, sem monitoramento de câmeras de segurança, e submetidos a uma intensa sessão de torturas físicas e mentais, como afirma o documento. Um deles teve o nariz quebrado por policiais. Vitor Hugo quebrou um dente e levou um golpe no ouvido que deixou sua audição prejudicada por alguns dias. Havia hematomas em suas costas.
“Ele apanhou muito e ninguém me explicou de onde vinham aquelas marcas de pancadas”, disse a mãe do jovem. “Há um são paulino com ele na cela, que foi ao jogo para conhecer o estádio com o tio. Meu filho não conhecia nenhuma dessas pessoas. Um deles chegou em cadeira de rodas, de tanto que apanhou.”
Ainda no estádio, quando os detidos foram conduzidos à área sem monitoramento, os policiais diziam: “Sabem pra onde vocês vão? Para Bangu… Sabem o que acontece em Bangu? Coincidência, muita coincidência… Lá as pessoas escorregam e quebram um braço, uma perna…”/ “A gente quer pegar os animais, os que gostam de bater em polícia, porque os gaviões gostam de bater em polícia...”/ “O Carandiru é aqui!”, segundo relatos reunidos no dossiê.
Os 69 detidos foram levados para um complexo da polícia civil chamado Cidade da Polícia, na zona norte da capital fluminense, sem poder se comunicar com as famílias e sem assistência de advogados, que foram impedidos de entrar no local mesmo depois de devidamente identificados. Eles prestaram depoimento para o delegado Felipe Santoro da Silva, que estava de plantão. “Incrivelmente, todas as versões registradas neste momento, de policiais e detidos, possuem conteúdos idênticos. Saldo da ‘investigação’: 38 soltos e 31 seguiram presos”, diz o documento.
“Eles foram efetivamente torturados, há provas disso. Um garoto teve a cabeça aberta”, disse Gustavo Proença, advogado de Vitor Hugo, que informou que a juíza mandou um ofício para a corregedoria de polícia sobre as agressões praticadas, mas ainda não houve resposta.
Os torcedores foram mantidos encarcerados por 20 horas, sem alimentação, higiene ou assistência médica, o que caracteriza, segundo o dossiê, “continuação da prática de privações e tortura”. Após a prisão em flagrante, registrada em 24 de outubro, às 8h26, seria realizada uma audiência de custódia, como prevê a lei, às 14h do mesmo dia. No entanto, o comboio de presos só chegou ao Fórum às 17h, limite do expediente, sem atraso justificado pela polícia.
Os presos foram então levados para Bangu 10, onde puderam fazer uma refeição e ter acesso à higiene pessoal pela primeira vez desde a prisão, ocorrida 20 horas antes. Na audiência, realizada no dia seguinte, a juíza Marcela Assad Caram determinou a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, sem individualizar as acusações.
“Eles estão em prisão preventiva há quase 40 dias. Não tem por que manter um preso por tanto tempo sem provas. Um mês já seria uma excrecência no processo penal”, defendeu Proença. Um dos detidos estava em tratamento para câncer de pele que foi interrompido, pondo em risco sua saúde.
A magistrada determinou também a realização de exames de corpo de delito, em razão dos diversos indícios de tortura, mas até hoje (1º) os advogados não tiveram acesso ao laudo final. “A decretação de prisão preventiva deve ser a última medida a ser adotada, cabendo outras medidas alternativas ao cárcere”, criticam advogados no dossiê.
De acordo com a decisão judicial, “os fatos apresentados ganharam grande repercussão social, de modo que a liberdade dos acusados, ao menos neste momento do processo, certamente colocará em xeque a credibilidade da justiça e do poder judiciário”.
“Cabe novo questionamento: por que até agora as autoridades policiais ainda não apresentaram nos autos do processo as imagens das câmeras de segurança do estádio?”, questiona o dossiê. “Talvez porque as mesmas comprovem inclusive as agressões praticadas pelos policiais nas arquibancadas, conforme divulgado pela mídia alternativa, ou ainda por serem as provas cabais para absolvição sumária da maioria dos detidos.”
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