Donald Trump no poder: paz com a Rússia e guerra com a China
Com Trump na Presidência dos EUA, guerra com Rússia se torna improvável, mas cresce possibilidade de guerra com China
Alan Nasser, Opera Mundi
Washington recentemente deu início a grandes exercícios militares nas proximidades e regiões fronteiriças da Rússia e da China, sendo estas as maiores manobras bélicas já vistas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As velhas jogadas da Guerra Fria foram incrementadas, e o perigo de um confronto militar entre Washington e Rússia e/ou China paira no ar. (Veja minha análise abrangente em “How Clinton Could Make a War”, na revista CounterPunch, volume 23, número 5). Uma autoridade do porte do general Joseph Dunford, do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, presidente do Estado-Maior Conjunto, afirmou que a promessa de Hillary Clinton de implementar uma zona de exclusão aérea sobre a Síria causaria uma guerra com a Rússia. Alguns afirmam que a relutância de Trump em implementar a tal zona é o único aspecto positivo de sua futura presidência. Contudo, comentadores notórios argumentam que a guerra com a China é outra possibilidade, igualmente horrível. (John Pilger, “The Coming War on China”, CounterPunch, 2 de dezembro de 2016).
Os comentários de Stephen Kinzer sobre política externa se destacam em meio a tudo o que se lê na grande imprensa. Kinzer foi correspondente sênior internacional do New York Times por mais de 20 anos. Seu livro “Todos os homens do xá: O golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror no Oriente Médio” é uma análise de primeira qualidade do que é proposto no título, e o seu “Overthrow: America’s Century of Regime Change From Hawaii to Iraq” (sem tradução no Brasil, literalmente “Derrubada: o século americano das mudanças de regime, do Havaí ao Iraque”) detalha algumas das principais intervenções internacionais norte-americanas e expõe suas origens corporativas. Kinzer não é um defensor de Washington. Ele também alerta para as provocações de Washington à China. Mas suas observações revelam algumas das maiores fraquezas que podem ser encontradas no pensamento dos principais comentadores liberais, mesmo os mais à esquerda. (Stephen Kinzer, “China is a Psychological Problem”, The Boston Globe, 5 de dezembro de 2016).
Os Estados Unidos e a China têm as mesmas ambições globais?
Kinzer indica, corretamente, que o crescimento econômico e militar da China eventualmente se tornará um problema para Washington, que se gaba hoje de ser a única superpotência mundial. Kinzer nos lembra que: “Pela primeira vez desde que nos tornamos uma potência global, encaramos um rival com (…) uma economia maior do que a nossa. (…) A parcela chinesa do poderio global provavelmente continuará a crescer, enquanto a nossa diminui. (…) Tanto nossa doutrina quanto nosso hábito de comandar nos dizem que precisamos impor limites a eles. Esta é a receita para um conflito”. Contudo, de acordo com Kinzer, o que leva ao conflito não é apenas o “hábito de comandar” de Washington, isto é, sua insistência na predominância global, aquilo que a elite costuma chamar de “Full Spectrum Dominance” (“Domínio sobre todo o Espectro”, em português). Igualmente perigosa, afirma ele, é a possibilidade de que a China, à medida que cresce em poder e influência, passe a imitar as ambições imperiais do Tio Sam. Esta é uma premissa central no pensamento de Kinzer. Eis o raciocínio: “Os Estados Unidos começaram a crescer quando garantiram um império continental, tornaram-se um império ultramarino quando passaram a subjugar pequenas nações insulares e, em seguida, passaram a projetar seu poder sobre todo o mundo. A China pode seguir o mesmo caminho (…) [A China] pode escrever uma história parecida com a nossa e usar as ilhas em sua dependência como um trampolim para o poderio global”.
Kinzer parece pensar que dois fatores ameaçam colocar a China no caminho do imperialismo: o comportamento histórico dos Estados Unidos e o simples fato de seu gigantismo econômico. Foram as aspirações americanas pela hegemonia econômica global e, finalmente, a conquista dessas aspirações, que levaram o país a governar o mundo. Já que a China eventualmente superará os Estados Unidos economicamente, ela também, segundo Kinzer, pode buscar a dominação mundial.
O artigo de Kinzer contém as sementes da destruição de seu próprio posicionamento. Ele escreve que “se continuarmos a insistir em policiar o Extremo Oriente”, seremos levados a confrontos com a China. Não se trata, fundamentalmente, de poderio econômico ou militar. Trata-se do desejo de Washington de ser a força predominante em toda área estrategicamente importante do globo, isto é, em todo o mundo. A China não policia a América do Norte, e sua liderança não aspira a dominar o mundo. Mas o desejo de Washington por uma expansão infinita é antiquíssimo. A história dos Estados Unidos, desde o início, ilustra a declaração de George Washington, que caracterizou a república como um “império em expansão”. A expansão rumo ao Oeste não parou nem sequer no oceano, como podem se lembrar os havaianos e filipinos. A história da China é diferente. Em “Sobre a China”, Henry Kissinger observou que a China nunca buscaria e não busca obter colônias (isto é, controle sobre território não contíguo e de cultura estrangeira). A inferência de Kinzer sobre como o imperialismo histórico de Washington pode servir de modelo a uma futura política global chinesa é um non sequitur.
Estas observações históricas são necessárias, mas não suficientes, quando se trata de avaliar de maneira realista os perigos de uma guerra com a China. É necessário, além disso, familiarizar-se com a posição recentemente revisada dos decisores políticos americanos quanto à possibilidade de uma guerra nuclear, assim como com sua adoção de uma nova postura em relação à China. Vamos analisar as atuais provocações militares de Washington à China, em relação às fantasias de onipotência militar dos decisores políticos norte-americanos, recentemente amplificadas. Estas são as circunstâncias e ambições que dão vida à visão de mundo e às possíveis recomendações políticas dos principais conselheiros de Trump. Elas demonstram uma pré-disposição à guerra. Pior ainda, sinalizam a volta da convicção de que uma guerra nuclear é uma possibilidade.
A presença de Washington na Ásia e as provocações à China
Pouco após a posse de Obama, Washington enviou o USNS Impeccable e o USNS Victorious, embarcações de patrulhamento da Marinha dos Estados Unidos, à ZEE chinesa (zona econômica exclusiva). Este foi o início de uma série de crescentes provocações. Os chineses responderam de forma racional, instalando mísseis defensivos ao redor da zona.
O New York Times relatou a mais recente aplicação da estratégia dos Estados Unidos em uma notícia chamada “U.S. Carriers Sail in Western Pacific, Hoping China Takes Notice” (“Porta-aviões americanos navegam pelo oeste do Pacífico, esperando que a China os note”). Em meados de junho, Washington empregou dois grupos de porta-aviões americanos, liderados pelo USS John Stennis e pelo USS Ronald Reagan, em atividades conjuntas no Mar das Filipinas. 12.000 marinheiros, 140 aeronaves e seis pequenos encouraçados conduziram operações de patrulhamento conjuntas. Esta foi a mais recente de uma série de incitações.
Nos dez dias que antecederam o exercício acima, Stennis e Reagan conduziram manobras conjuntas, no Mar da China Meridional, com as marinhas do Japão e da Índia, após despachar quatro Growlers da marinha americana, aviões de guerra eletrônica e 120 homens para a Base Aérea de Clark, nas Filipinas. No ano passado, os Estados Unidos conduziram quatro patrulhas em prol da “liberdade de navegação”, a mais recente delas em outubro, desafiando as reivindicações territoriais da China sobre o Mar da China Meridional. No entanto, as reivindicações da China estão dentro das fronteiras tradicionalmente estimadas como delimitadoras das águas nacionais de um país. A Convenção das Nações Unidas sobre a Lei Marítima não oferece coordenadas geográficas precisas especificando até onde vai o território marítimo chinês. Na verdade, estas mesmas águas são atualmente disputadas por vários países, incluindo Brunei, China, Malásia, Indonésia, Filipinas, Vietnã e Taiwan (que não é propriamente um país, de acordo com a política americana atual da “China única”, embora Trump tenha outra opinião sobre o assunto). Tendo em vista que nenhum dos países que reivindicam tais águas tem sofrido tanta hostilidade por parte dos Estados Unidos quanto a China, sua reivindicação é defensável. A instalação de sistemas anti-mísseis chineses em sete das Ilhas Nansha é totalmente razoável, se levarmos em conta tais circunstâncias. Washington certamente tomaria medidas semelhantes se a China estivesse conduzindo exercícios militares próximos à costa da Califórnia.
Mas os tambores de guerra ressoam em Washington, em resposta às medidas defensivas chinesas. John McCain, presidente do Comitê das Forças Armadas do Senado, exigiu que os Estados Unidos atue militarmente contra a China. As medidas defensivas chinesas “permitem que suas Forças Armadas projetem seu poder e exerçam controle sobre uma das mais importantes vias aquáticas internacionais. Isto é inaceitável”, afirmou McCain. Greg Poling, diretor da Asia Maritime Transparency Initiative (“Iniciativa pela Transparência Marítima na Ásia”), do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, afirmou: “Isto é militarização. Os chineses podem argumentar que as medidas têm propósitos unicamente defensivos, mas se você está construindo uma arma anti-aérea gigantesca e sistemas CIWS, isto significa que você está se preparando para futuros conflitos”. É claro que sim. Poling não menciona em lugar algum as operações extensivas de Washington no Mar da China Meridional. Geng Shuang, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, respondeu que “não entendeu” as acusações de Poling: “Se a China constrói instalações normais e despacha para suas próprias ilhas forças defensivas territoriais, na quantidade necessária, isto é considerado militarização. O que são então as frotas americanas no Mar da China Meridional?”
O argumento final de Washington é o de que as reivindicações insulares da China e a instalação de equipamento anti-mísseis ameaçam a “liberdade de navegação”. Mas que objetivos estratégicos levariam a China a restringir a navegação nesta rota comercial tão essencial? Uma das principais estratégias geopolíticas do país consiste em construir alianças regionais com parceiros locais, e todos eles têm interesse em acessar tais águas. A restrição do acesso a navios estrangeiros não faria nenhum sentido. A possível restrição do acesso estadunidense, tendo em vista as atuais provocações americanas na região, é outra história.
A enorme ignorância de Trump gera ofensas intermináveis, e talvez involuntárias, à China. Um de seus tweets recentes afirma que a “China roubou da Marinha dos Estados Unidos, em águas internacionais, um drone de pesquisa – simplesmente tirou-o da água e levou para o continente, em um ato sem precedentes”. Na verdade, os chineses e o Pentágono já haviam “chegado a um entendimento mútuo (…) por meio do contato direto”, conforme declaração emitida pelo próprio Pentágono. Uma embarcação chinesa detectou um dispositivo desconhecido em suas águas e tomou medidas, a fim de evitar possíveis riscos a navios que transitassem pelo local. Assim que o objeto foi identificado como propriedade norte-americana, o governo chinês comunicou a Washington sua intenção de devolvê-lo. Trump provavelmente não sabia de nada disso. Ele não sabe de muita coisa. E é esta a questão. No passado, os instigadores de guerras normalmente sabiam o que estavam fazendo. A ignorância sobre os fatos dificilmente deu início a um conflito importante. Agora, as coisas são diferentes.
China steals United States Navy research drone in international waters – rips it out of water and takes it to China in unprecedented act.
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) 17 de dezembro de 2016
Uma regra do imperialismo: sempre provoque junto de seus aliados
Os insultos de Washington seguem sempre uma regra familiar do imperialismo: reúna tantos aliados quanto possível, a fim de aumentar a credibilidade de suas acusações. Nos últimos dois anos, Washington recrutou importantes potências na região da Ásia e do Pacífico, e em março e abril deu início a uma rápida escalada em suas ameaças militares. Japão e Austrália, bem como outros aliados americanos, como Singapura, Vietnã, Malásia, Filipinas e Indonésia, deram início a operações hostis contra a China. A maior parte destes países foi encorajada por Washington a desenvolver seu poderio naval, aumentando desta forma seus gastos militares. Apenas em 2015, as Filipinas aumentaram seus gastos militares em mais de 25%; a Tailândia, o Vietnã, Singapura e a Malásia, entre 5 e 16%.
Querelas antiquíssimas e geopoliticamente insignificantes sobre a posse de arrecifes e ilhotas foram mobilizadas, em defesa dessas provocações. O Vietnã fortificou secretamente, nos últimos meses, várias de suas ilhas do arquipélago de Spratly, no Mar da China Meridional, posicionando ali lançadores de mísseis móveis de longo alcance. Apenas poucos dias seriam necessários para colocá-los em operação, com a capacidade de atingir ilhotas pertencentes à China. A medida de Hanói certamente acelerará a corrida armamentista que já está em curso e aumentará o risco de que um incidente ou provocação leve a um conflito militar. O perigo aumentou às vésperas de uma decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem em Haia, em favor do processo aberto pelas Filipinas e apoiado pelos Estados Unidos, que desafiava as reivindicações territoriais chinesas no Mar da China Meridional.
Uma reportagem recente da Reuters revelou que o Vietnã enviou seus lançadores de mísseis às ilhas Spratly e os escondeu do monitoramento aéreo. Os lançadores são parte do sistema de artilharia vietnamita EXTRA, comprado recentemente de Israel. O sistema usa drones de direcionamento, é altamente preciso quando opera dentro de um raio de 150 km e pode disparar cargas de 150 quilogramas sobre navios e alvos terrestres. As instalações chinesas em Subi, Fiery Cross e no arrecife de Mischief estão dentro do raio de alcance dos mísseis vietnamitas.
O Almirante Henry Harris, comandante das Forças do Pacífico dos EUA, assim como o Pentágono, vê a Austrália como o ponto essencial ao sul para o “reequilíbrio” da Ásia. Dentro dos próximos três anos, 60 porcento das forças aéreas e navais dos Estados Unidos serão destinadas às regiões dos oceanos Índico e Pacífico. Este mês, Harris assinou um acordo com o exército australiano para expandir a presença militar de Washington no país, em 2017, com caças F-22 Raptor. Ele também compartilhou do entusiasmo de Trump quando este propôs a expansão da Marinha, com a aquisição de 350 novos encouraçados, quase todos alocados no Pacífico.
Donald Trump herdará de Obama esta caixa de pólvora. As atuais circunstâncias são um convite para deixar as ameaças de lado e partir para a ação. Compondo o perigo está a mania de confrontação exibida pelo principal ator do Pentágono no Pacífico.
Recentemente, o Almirante Harris tem exigido ainda mais agressão americana dentro da zona de exclusão de 12 milhas ao redor do território chinês. De acordo com o Navy Times, o comandante “quer acessar a área e conduzir operações militares”, o que incluiria a mobilização de aeronaves e sistemas de armamento. “Estaremos prontos para o confronto, quando for necessário”. A administração Obama reluta em ir tão longe, mas Trump, que já fez inúmeras ameaças contra a China, está mais em sintonia com essas recomendações agressivas.
O Navy Times alertou que, tendo em vista os eventos recentes, “algum tipo de confronto parece cada vez mais provável”.
Os oficiais chineses estão de acordo. Um especialista em estratégia militar associado ao Exército de Libertação Popular afirma que “a China provavelmente revidará se os EUA chegarem a 12 milhas de distância das ilhas [Nansha]”. Outra autoridade militar da Universidade de Nanquim informou Washington de que “as provocações dos EUA aumentaram em muito a chance de um confronto militar entre Pequim e Washington”. E o jornal estatal Global Times avisa que “a China espera que as disputas possam ser resolvidas diplomaticamente, mas deve estar preparada para qualquer confronto militar”.
Isto não impediu os EUA de desenvolver detalhados planos de guerra contra a China. O Mitchell Institute for Aerospace Studies (“Instituto Mitchell para Estudos do Espaço Aéreo”, em inglês) relatou que oficiais da Aeronáutica estão preparando os planos mais detalhados já vistos para o uso do F-35, o mais moderno caça existente, em circunstâncias de guerra total contra a China. Estaria nosso próximo presidente entusiasmado diante dessa perspectiva? Think tanks destacados têm endossado a posição de Trump.
O novo e aprimorado militarismo dos decisores políticos
No ano passado, o Conselho de Relações Exteriores, o principal think tank de política externa dos EUA, publicou um estudo intitulado “Revising U.S. Grand Strategy Toward China” (“Revendo a principal estratégia dos EUA em relação à China”). A conclusão é que os antagonismos estão crescendo entre aqueles que o Conselho considera os dois mais poderosos países do mundo, e estas tensões exigem um aumento da politica de confrontação de Washington. As hostilidades têm como base a relutância da China em aceitar aspectos fundamentais da política externa dos EUA, identificadas pelo Conselho da seguinte forma: “A preservação da primazia dos EUA no sistema global deve continuar sendo o objetivo central da estratégia americana no século XXI”. A “ameaça” aos interesses nacionais dos EUA consiste na recusa da China em se submeter às demandas americanas de que não exerça influência predominante em sua própria região! O que mais incomoda as elites, segundo o Conselho, é o “desafio representado pela China à primazia dos EUA na Ásia”. Este é apenas um dos horríveis corolários do que costumava ser chamado de “Full Spectrum Dominance”, mas que hoje se denomina apenas “predominância” ou “primazia” global. Sob a presidência de Trump, isto se torna uma receita para a guerra.
A Corporação RAND também está planejando guerras com a China em um estudo encomendado pelo Exército dos EUA, intitulado “War with China: Thinking Through the Unthinkable” (“Guerra com a China: pensando o impensável”). A frase “pensando o impensável” foi cunhada em 1960 pelo principal estrategista da RAND após a Segunda Guerra Mundial, que serviu de inspiração para o Dr. Fantástico de Stanley Kubrick. Trata-se de Herman Kahn, cujo livro “On Thermonuclear War” (“Sobre a Guerra Termonuclear”) promovia uma estratégia para a vitória americana em uma possível guerra nuclear contra a União Soviética. O estudo torna claro que uma guerra com a China não está, de modo algum, fora de questão, mas salienta que à medida que o tempo passar a vantagem nuclear de Washington diminuirá. A ideia claramente enunciada é a de que quanto mais cedo, melhor.
Observe que a lógica da RAND anula o consolo que Kinzer nos oferece: “Nenhuma guerra ocorrerá tão cedo. As forças chinesas são muito inferiores às dos Estados Unidos. O país está comprometido em aumentá-las a longo prazo, o que pode incrementar substancialmente seu poder ofensivo, se não nos atentarmos”. Mas, de acordo com a sabedoria da RAND, a relativa fraqueza atual das forças chinesas é uma razão a mais para atacar o país neste momento, antes que ele seja capaz de revidar.
A RAND antecipa que a ação militar contra a China fomentará um novo movimento antiguerra, o que exigirá a aplicação do “sistema de controle civil” para a supressão em larga escala de manifestações. Trump, que é a favor de retaliações e propício à repressão, não deve ser averso a esta perspectiva.
Como se estivesse abrindo espaço para o próximo comandante-em-chefe, a administração Obama deu início a um grande programa de “modernização” de armas nucleares. O Instituto de Pesquisa pela Paz Internacional de Estocolmo comenta que “o ambicioso plano de modernização americano proposto pela administração Obama está em chocante contraste com o compromisso assumido pelo Presidente Barack Obama de reduzir o número de armas nucleares e o papel por elas desempenhado na estratégia de segurança nacional americana”. O Instituto de Estocolmo está chocado; chocado por outra mentira de Obama, outra onda de crescente militarização nos Estados Unidos.
Diante de tais fatos, apenas os que não querem não veem que é um homem com ilusões grandiloquentes de onipotência brutal que chega ao poder, colocando possivelmente outra crise histórica na agenda mundial.
A noção central de que se deve sustentar a credibilidade dos desejos de Washington de que os EUA continue sendo a única superpotência global é central ao novo militarismo e ao retorno da opção de uma guerra nuclear. O atual pensamento da elite é o de que o único modo garantido de convencer os que resistem à hegemonia global americana é a punição. E a única ameaça válida, supõe-se, é a de um ataque nuclear. Daí vem o enorme programa de atualização da tecnologia nuclear, de muitos bilhões de dólares, iniciado pela administração Obama.
Não encontrei qualquer menção à escalada militar de Obama nas reportagens sobre os recentes tweets de Trump, que clamam por uma expansão da capacidade nuclear dos EUA. Trump é, de fato, mais perigoso do que Obama, no que diz respeito à possibilidade de criar novas guerras. Mas não muito mais perigoso.
Os decisores políticos percebem o declínio do dinamismo econômico e do poder global dos EUA como algo que só pode ser revertido militarmente: sua incapacidade de ganhar as várias guerras em que se envolveu, seu declínio como grande exportador, sua inabilidade em reproduzir as taxas de crescimento econômico de que desfrutou na Era de Ouro da hegemonia econômica americana, a crescente desconfiança ou ódio que o país desperta no mundo todo, a falta de prestígio do sistema político entre os cidadãos americanos. A guerra pode ser entendida pela equipe de Trump como a única forma de “nos reaproximar” e “tornar a América grande de novo”.
A incapacidade dos EUA de recuperar sua antiga glória por meios econômicos não é apenas a convicção de seus antagonistas internacionais, mas também é lamentada por alguns dos mais distintos economistas americanos. Lawrence Summers e Paul Krugman preveem um futuro de “estagnação secular”, e nosso mais distinto estudioso do crescimento econômico e da inovação tecnológica, Robert J. Gordon, recemente descreveu, em seu “The Rise and Fall of American Growth” (“Ascensão e Queda do Crescimento Americano”), a falta de alternativas para o desenvolvimento de novas iniciativas que sustentem taxas de crescimento econômico constantes e prósperas. Todos concordam que o resultado inevitável é o crescimento da desigualdade e a diminuição da qualidade de vida. Além disso, a ordem mundial dominada pelos EUA está sob ameaça. E a elite não pode deixar de reparar que o fenômeno Sanders e Trump indica uma desilusão das massas com os sistemas econômico e político, o que alguns chamam de “crise de legitimidade”.
Sob tais condições político-econômicas, o recurso à guerra não é inédito.
Não devemos caracterizar as apreensões das elites como “paranóia”. Isto significaria um medo irracional, mas os ricos e poderosos temem algo real. As premonições são racionais. Vamos analisar mais a fundo as apreensões das elites e a sua renovada disposição a “pensar o impensável”.
A fragilidade da “Ordem Liberal Internacional” e o desafio chinês/russo
As atuais escaladas militares de Washington contra a Rússia e a China se refletem nas recentes exortações da elite para reviver os confrontos militares da Guerra Fria. Em uma edição recente da Foreign Affairs, John J. Mearsheimer e Stephen M. Walt afirmam: “Há regiões fora do hemisfério ocidental cuja defesa vale o sangue e o tesouro americano (…) Na Europa e no Nordeste da Ásia, a principal preocupação é com a possível ascensão de uma potência hegemônica que dominaria toda a região, da mesma forma como os Estados Unidos dominam o hemisfério ocidental”. Aqui há uma afirmação explícita da doutrina da predominância e primazia dos EUA, a ideia de que os EUA devem dominar todas as regiões do globo, assim como a percepção de que tal hegemonia está em perigo.
Em um editorial do Washington Post do mês de maio, intitulado “The Liberal International Order is Under Fire. The United States Must Defend It” (“A ordem liberal internacional está sob ataque. Os Estados Unidos devem defendê-la”), afirma-se que
“Dificilmente passa um dia sem que tenhamos uma prova de que a ordem liberal internacional das últimas sete décadas está sendo erodida. A China e a Rússia estão tentando redefinir o mundo de acordo com suas próprias imagens antiliberais. (…) Isto coloca um grande desafio para o próximo presidente dos EUA (…), não importa quem assuma o Salão Oval, será necessário ter coragem para tomar decisões difíceis, a fim de salvar a ordem liberal internacional. (…) Os Estados Unidos devem continuar tentando integrar a China às regras e tradições da ordem liberal internacional (…), bem como mobilizar forças para confrontar a tomada de territórios assertiva e unilateral desse país no Mar da China Meridional”.
A “ordem liberal internacional” é o mundo dominado pelos EUA. A China e a Rússia não estão tentando “redefinir o mundo” de maneira alguma. A Rússia não está envolvida em nenhuma “subversão violenta”. A realidade é que estas potências são temidas pois podem desenvolver poder e influência suficientes para obstruir a hegemonia americana, sua capacidade de se impor política e militarmente em qualquer lugar, incluindo as vizinhanças da China e da Rússia. Um poderio americano hegemônico que faça frente a esses dois países, acreditam as elites, deve entrar em cena. Isso envolverá “decisões difíceis”. O que significa que a liderança dos EUA deve estar preparada para arriscar confrontos militares a fim de superar estes obstáculos à hegemonia americana. O Post cita um relatório do Center for a New American Security (“Centro para uma Nova Segurança Americana”), presidido pelo beligerante neoconservador Robert Kagan, em favor de incrementos na campanha imperial global. O relatório de Kagan, intitulado “Extending American Power: Strategies to Expand US Engagement in a Competitive World Order” (“Extendendo o poder americano: estratégias para aumentar o envolvimento dos EUA em uma ordem mundial competitiva”) coloca as cartas na mesa.
“Em uma época na qual as diferenças partidárias no establishment político americano atingiu níveis nunca antes vistos, o grupo acredita que o mais importante é reconstruir o consenso nacional quanto ao papel dos EUA no mundo. O projeto promove a ideia de que a liderança americana é essencial para a preservação e fortalecimento dos alicerces da ordem internacional atual, que está sendo abalada por diversas forças”.
A reportagem diz que os gestores do Estado, a classe governante, encontra-se em total desordem, e um consenso “nacional” – ou seja, popular – sobre o “papel dos EUA no mundo” está sendo erodido. As massas estão cansadas da guerra. Além disso, o sistema global dirigido pela “liderança” dos EUA está sob ameaça. Medidas precisam ser tomadas. E Kagan emprega a antiga estratégia de externalizar tensões internas. O debate Trump-Clinton-Sanders reintroduziu perigosas “diferenças partidárias” [leia-se: debates que transcendem os limites ortodoxos permissíveis] que ameaçam o “consenso nacional” [leia-se: debates limitados com parâmetros simplistas]. Uma campanha nacional vendida como defesa contra as ameaças globais à liberdade americana pode neutralizar as diferenças partidárias e direcionar a insatisfação interna a inimigos externos. E não há nada como a guerra para unir uma nação internamente dividida.
Um relatório do influente Center for Strategic and Budgetary Assessments (“Centro para Análises Estratégicas e Orçamentárias”) racionaliza o investimento de vários bilhões de dólares da administração Obama em armas nucleares. O relatório se foca nas tensões dos EUA com a Rússia, e deixa claro que as recomendações também se aplicam à China. O relatório é assustadoramente intitulado “Rethinking Armageddon (RA)” (“Repensando o Armagedom”). A ideia por trás do título é a de que devemos deixar para trás a crença de que a paridade nuclear atingida pela União Soviética com os EUA resultasse necessariamente na Destruição Mútua Garantida (MAD, na sigla em inglês, “Mutual Assured Destruction”), tornando assim autodestrutivo o uso de armas nucleares. Ao contrário, argumenta o relatório “RA”, estamos agora em uma “segunda era nuclear” que permite aos EUA utilizar armas nucleares “de maneira focada”. O relatório começa com uma citação de John Foster Dulles, secretário de Estado durante a Guerra Fria: “Se você tem medo de ir até os limites, você está perdido”.
Quão perigoso é Trump, como instigador da guerra?
Se a pergunta fosse feita em relação a Hillary Clinton, não seria preciso pensar muito. Seu histórico conta uma história clara. O papel de Clinton nos fiascos da Iugoslávia, Ucrânia, Iraque, Líbia e Síria é suficiente para causar pânico. Como já mencionamos, seus planos de criar uma área de exclusão aérea sobre a Síria garantiriam um confronto com a Rússia. A obsessão de Clinton com a dominação global desqualificada dos EUA tornou a guerra nuclear uma possibilidade ameaçadora, como não se via desde a crise dos mísseis de Cuba. Hillary tem uma cosmologia política própria, ruim em todos os sentidos, e o seu envolvimento é resoluto e determinado. Ela teria sido um desastre.
Trump não tem qualquer histórico político, e não é exatamente politizado, para além de suas inclinações gerais de extrema direita. Seu racismo, misoginia e ultra-nacionalismo resultarão nas políticas que esperamos em relação, por exemplo, ao aborto, à hostilização de pessoas negras e as ameaças abertas e “bipartidárias” de lideranças políticas americanas contra os países que não marcharem junto de Washington rumo a suas ambições globais. No que diz respeito às especificidades da política externa, incluindo o uso de armas nucleares, Trump exibe sua notória incoerência. Ele se contradiz o tempo todo.
Não sabemos o que ele realmente pensa, não mais do que ele próprio sabe, porque Trump não parece pensar nada de substancial. Ele acredita em ambos os lados de uma contradição. Ele afirma que é “muito, muito, muito, muito improvável” que ele venha a usar armas nucleares, ainda que não “tire de jogo” a possibilidade de atacar o ISIS ou até mesmo na Europa com tais armas. Uma ignorância que abrange tudo não pode evitar a contradição, tendo como resultado que qualquer coisa tem tanta chance de ser dita ou feita quanto qualquer outra. A guerra nuclear é tão possível quanto impossível. É uma verdade elementar da lógica que, de uma contradição, qualquer coisa pode ser validamente inferida (isto é, inferida em concordância com as leis lógicas). Neste caso, o que é necessário para que a balança venha a pender para um dos lados é uma influência externa à “mente” de Trump. Ela só pode vir de seus conselheiros. Quer dizer, da junta.
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