Ao suspender a censura aos textos sobre hacker que furtou dados de Marcela, desembargador Camanho de Assis deu aula de Constituição ao constitucionalista Michel Temer e sua esposa
Em final de 1963, quando o carioca Arnoldo Camanho de Assis mal completava sete meses de idade e ainda amamentava-se nos peitos de sua mãe, o paulista de Tietê, Michel Miguel Elias Temer Lulia, então com 23 anos, formava-se pela tradicional Arcada de São Francisco, a faculdade de Direito da USP. Ao longo dos 53 anos seguintes, os dois talvez jamais tenha se falado, embora Arnoldo tenha optado pela mesma profissão de Michel: Também aos 23 anos (1986) recebeu a graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Oficialmente, os dois seguiram rumos diferentes na profissão. Michel enveredou pelo estudo da Constituição, tornando-se, a partir da edição do livro Teoria de Direito Constitucionalista (1982), hoje na 24ª edição, com mais de 240 mil exemplares vendidos, um “respeitado” especialista na Lei Magna do país. Arnoldo voltou-se para o Direito Internacional Público e Privado e, há 26 anos, ingressou no magistério, conquistando, por merecimento, em 2008, uma cadeira no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Quis o destino que a vida dos dois se cruzasse nessa quarta-feira (15/02) estando Michel no mais alto cargo do Executivo nacional, o de presidente da República, enquanto Arnoldo permanece na cadeira do TJDFT. E foi desta posição que o relativamente jovem desembargador – hoje com 53 anos, 30 de formado em Direito, enquanto Michel está com 76 anos, e 53 com advogado constitucionalista – deu uma lição sobre Constituição ao suspender a liminar que, a pedido da esposa de Michel, Marcela Tedeschi Araújo Temer, o juiz Hilmar Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, concedeu no dia 10/02, atendendo a ação proposta pelo subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, Gustavo Vale do Rocha. Pela decisão, tanto a Folha de S. Paulo como O Globo foram censurados nas reportagens que fizeram a respeito da clonagem do celular de Marcela.
O especialista na Constituição se esqueceu de dizer à sua esposa e, principalmente, ao subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República, Rocha, o qual por ter advogado para o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha – hoje nas masmorras do complexo penitenciário de Curitiba – tornou-se especialista em processar jornalistas, que a Constituição, que ele jurou cumprir ao tomar posse, não permite censurar. Foi preciso que o desembargador, lembrasse isso na decisão proferida na quarta-feira (15/02) suspendendo a liminar erroneamente dada pelo juízo de primeira instância.
Talvez movido pelo ódio que tem dominado sua relação com a imprensa – recorde-se que recentemente seu governo limitou a circulação de jornalistas credenciados pelos andares do Palácio do Planalto – Temer “esqueceu” o que aprendeu como estudioso das constituições. Ou não se atualizou com a nova Carta Magna, de 1988, que, por sinal, ele ajudou a escrever como constituinte. Da mesma forma, deve ter tido amnésia com relação aos últimos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. Ou será que ele não soube que a ministra Carmen Lúcia, antes de ocupar a presidência daquela corte, em 20 de outubro passado, deixou claro que o “Cala boca já morreu”. Na ocasião, ela ainda completou alertando que o STF dará cumprimento, como tem feito reiteradas vezes, ao exercício de uma imprensa livre e “não como poder, mas como uma exigência constitucional para se garantir a liberdade de informar e do cidadão ser informado para exercer livremente a sua cidadania”.
Para obter a liminar que censurou os dois jornais, o subchefe de assuntos jurídicos da Presidência meteu os pés pelas mãos e alegou invasão de privacidade e da vida íntima da primeira dama. Pelo jeito, ele sequer leu a reportagem publicada pelos dois jornais. Apesar de o hacker Silvonei José de Jesus Souza – condenado a cinco anos e 10 meses de prisão – ter surrupiado do celular da primeira dama fotos e conversas pessoais, a atenção dos jornais não se voltou para os chamados assuntos íntimos e a fofoca, mas à parte da conversa que desperta sim interesse público.
A Folha de S. Paulo, por exemplo, destacou a conversa que se referia a um marqueteiro do marido de Marcela, encarregado do “jogo sujo”. Diz a reportagem:
“Pois bem como achei que esse vídeo [na verdade, áudio] joga o nome de vosso marido [Temer] na lama. Quando você disse q ele tem um marqueteiro q faz a parte baixo nível… pensei em ganhar algum com isso!!!!”, escreveu o hacker a Marcela, pedindo-lhe R$ 300 mil para não divulgar o arquivo.
A Folha apurou que o “marqueteiro” a que o hacker se refere é Arlon Viana, assessor de Temer, citado na conversa entre a primeira-dama e o irmão“.
Da mesma forma, o jornalista Thiago Herdy, de O Globo, focou sua matéria no fato de interesse público, provavelmente para desgosto de Temer e seus aliados, expondo a frase em que o hacker repetindo o comentário de que o áudio “joga o nome do seu marido na lama”. Algo que até hoje não mereceu maiores explicações. Mas, mesmo que atingisse a intimidade da primeira dama, na visão do desembargador, não se pode recorrer à censura. Ele lembrou que esse debate:
“já foi levado por incontáveis vezes, à apreciação do Poder Judiciário, em todas as suas instâncias ater chegar ao Supremo Tribunal Federal, que, em memorável julgamento e por votação majoritária, decidiu que “as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o Poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras”. Não há, pois, como consentir com a possibilidade de algum órgão estatal – o Poder Judiciário, por exemplo – estabelecer, aprioristicamente, o que deva e o que não deva ser publicado na imprensa”.
Mas ele também destacou na sua decisão que se referia apenas à Folha – O Globo entrou com outro recurso -, o fato de a vida íntima da autora não ter sido explorada e que os dados publicados, inclusive, constam de um processo cujo acesso ao público é liberado:
“Nesse ponto, cabe pontuar, que seja com base em fatos obtidos a partir da leitura dos autos do aludido processo criminal, – público – (…) seja com base em fatos obtidos a partir do próprio celular, não há qualquer notícia, nas razões do recurso, de que a atividade jornalística da parte agravante seja pautada por uma linha editorial irresponsável ou abusiva, potencialmente violadora da intimidade de alguém, muito menos, no caso concreto, da autora-agravada, ou de seu marido, o Excelentíssimo Presidente da República”.
Admitiu ainda, que se isso ocorresse, caberia aos atingidos não buscar a censura, como fizeram, mas sim a cobrar judicialmente a responsabilidade criminal e cível, com direito a indenização. Nesse sentido, relembrou – inclusive, ao presidente constitucionalista – que o Supremo já se manifestou a respeito:
“A ideia da responsabilização posterior por violação aos direitos constitucionais da privacidade e da intimidade, aliás, encontra abrigo em precedente do próprio Supremo Tribunal Federal que, em julgamento de reclamação, pontuou que “a liberdade de imprensa, qualificada por sua natureza essencialmente constitucional, assegura aos profissionais de comunicação o direito de buscar, receber e de transmitir informações e ideias por quaisquer meios, inclusive digitais, ressalvada, no entanto, a possibilidade de intervenção judicial – necessariamente ‘a posteriori’ – nos casos em que se registrar prática abusiva dessa prerrogativa de ordem jurídica (…)”.
Foi, sem dúvida, uma brilhante aula do que prega a Constituição garantindo, não aos jornalistas, mas ao público, o direito de ser informado sem a censura. Aos profissionais de comunicação cabe a responsabilidade de apurarem os fatos e os narrarem, de forma isenta e evitando misturar público com privado – o que, de resto foi feito, nas duas reportagens. Espera-se apenas que não só o presidente, constitucionalista reconhecido que esqueceu tudo o que deve ter ensinado aos seus alunos nas salas de aula da PUC-SP, mas também outros magistrados aprendam a lição. O Estado de Direito e o direito do público se bem informado, agradecem.
Veja, abaixo, a integra da decisão do desembargador Arnoldo Camanho de Assis:
–
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook