Marisa Letícia ofendeu a cultura da casa grande & senzala num dos países mais desiguais do planeta ao virar ‘dona Marisa’. Nascida pobre, criada em casa de pau a pique, a transformação da antiga operária soou como ofensa a cabeças passadistas
por Mário Magalhães*, em seu blog
Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017), cuja morte cerebral anunciaram hoje, e Ruth Cardoso (1930-2008) foram mulheres de trajetórias diferentes cuja principal semelhança foi terem sido casadas com presidentes da República.
Por oito anos, viveram a condição do que se convencionou chamar de primeira-dama.
Mesmo depois de seus maridos deixarem o Planalto, continuaram a ser tratadas como “dona Marisa” e “dona Ruth”.
Nos últimos tempos, com o Brasil castigado por intolerância e obscurantismo, muita gente deu para desqualificar a denominação “dona Marisa” para a mulher de Luiz Inácio Lula da Silva.
Por sinal, muitos que nunca consideraram impróprio se referir à mulher de Fernando Henrique Cardoso como “dona Ruth”.
Essas não são as críticas _procedentes_ que observam cacoete machista no tratamento de mulheres de governantes. Quando o governante é mulher, seus maridos não se transformam em “seu” Fulano de Tal. Continuam a ser Fulano de Tal. Logo, prefiro Marisa Letícia e Ruth, não “dona Marisa” e “dona Ruth”.
Mas a bronca de alguns tem outro motivo, o preconceito: como chamar de “dona” uma mulher como Marisa Letícia?
Ela nasceu pobre, em casa de pau a pique, aos nove anos cuidava de crianças para ajudar no sustento da família, na adolescência ralava como operária em fábrica, teve estudo precário.
Ao contrário de Ruth Cardoso, antropóloga com carreira brilhante.
Conheço superficialmente a história de ambas, mas não são poucos os testemunhos de qualidades de Ruth e Marisa Letícia.
A aversão de alguns à segunda se deve à permanência da cultura da casa grande & senzala num dos países mais desiguais do planeta.
Esse atraso um dia rendeu a afirmação de que o Brasil não poderia ter um presidente encanador (na verdade, Lula trabalhou como torneiro mecânico) se havia um Jean-Paul Sartre (FHC) à disposição.
Por isso a transformação da antiga operária em “dona Marisa” soou como ofensa a cabeças passadistas.
Marisa Letícia morre como indiciada em inquérito da Polícia Federal. A história esclarecerá quem tem razão.
E registrará o incômodo que Marisa Letícia foi para certas almas.
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*Mário Magalhães é jornalista formado na UFRJ. Trabalhou nos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Recebeu 25 prêmios jornalísticos e literários
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