Presente na cerimônia que premiou Raduan Nassar, sociólogo revela os bastidores da agressão do ministro Roberto Freire ao escritor brasileiro
Por Rafael Alves*
Texto literário é coisa para Raduan.
Textos jornalísticos felizmente já estão sendo veiculados.
Este é, quiçá, um desabafo. Uma reflexão a partir do evento em que Raduan Nassar recebeu o Prêmio Camões.
Raduan iniciou seu discurso dizendo ter tido dificuldade para entender o Prêmio (veja a íntegra do discurso aqui).
Eu estou até agora com dificuldades para entender a cerimônia de premiação realizada ontem, 17 de fevereiro de 2017.
Por um lado, sinto a felicidade por ter estado presente num evento de tal importância, ter visto e ouvido uma pessoa como Raduan – o que especificamente em seu caso é algo ainda mais raro, considerando sua discrição e opção pela reclusão.
Por outro, sinto o mal estar pelo ocorrido, pela maneira com que o ministro em exercício, consequentemente o próprio (des)governo, tratou aquele que é considerado por muitos o maior escritor brasileiro vivo. O desrespeito foi direto ao escritor, mas estendeu-se à plateia e ao próprio Prêmio Camões.
Desrespeitou-se a Cultura, a Literatura, a Língua Portuguesa.
Raduan Nassar foi galardoado com o Prêmio Camões em maio de 2016 por unanimidade do júri. A entrega – do diploma, pois até onde sei o prêmio pecuniário ainda não foi pago – foi adiada ao máximo justamente para afastar a possibilidade de manifestação política do escritor. O evento realizado quase um ano após a definição do prêmio não contava com nada, não foi contratado um show no valor de 500 mil reais sem licitação como o (des)governo fez em novembro de 2016 no Palácio do Planalto. Sem divulgação, deveria passar desapercebido.
O que Raduan Nassar fez foi um ato político.
Reuniu uma plateia que ouvisse seu discurso e replicasse o ocorrido, desmoralizando ainda mais este (des)governo e explicitando seu autoritarismo e descaso com o país.
O Prêmio não foi “dado” por este (des)governo, como disse o ministro em exercício. Foi entregue “apesar” dele.
Da mesma forma ocorreu a cerimônia de premiação. Muito pelo esforço de um amigo – a quem gostaria de dar o crédito, mas talvez ele goste de ser misterioso como Raduan – jornalistas, políticos, escritores, intelectuais, admiradores foram reunidos para presenciar aquele manifesto. O Coral Passarim ofereceu o momento de maior beleza com cerca de vinte meninas cantando músicas brasileiras. Outro amigo propiciou o transporte do coral. As crianças quase foram impedidas de entrar no evento, pois não estavam nos planos do cerimonial e o responsável foi indagado sobre quais músicas seriam cantadas.
A cerimônia ocorreu “apesar” do cerimonial do ministério da cultura.
Este mesmo cerimonial cometeu o despautério de inverter a ordem comum a uma premiação, fazendo com que o homenageado falasse primeiro, deixando o discurso final ao ministro em exercício para que ele transformasse o que deveria ser a cerimônia de entrega do Prêmio Camões em comício da era da pós-verdade.
Minha sensação foi de vergonha alheia.
Pois bem, iniciado o dispositivo, a presidente da Biblioteca Nacional, Helena Severo, erra repetidas vezes o nome do homenageado em seu discurso de apresentação, sendo corrigida pela plateia e pelo próprio Raduan NASSAR. Raduan faz um discurso sucinto, aponta fatos recentes como as invasões em escolas, violência contra manifestações democráticas nas ruas e as tragédias nos presídios para destacar a figura de Alexandre de Moraes, prestes a ocupar uma cadeira vitalícia no Supremo Tribunal Federal. Aponta diretamente a responsabilidade do Ministério Público e do STF na colocação e manutenção do governo de exceção em exercício. Menciona a decisão de Celso de Mello de garantir o foro privilegiado a Moreira Franco, citado 34 vezes numa única delação. Opina que o Supremo atuou coerente com seu passado no regime militar, ao manter Eduardo Cunha como presidente da Câmara, permitindo que instaurasse o processo de impeachment, destituindo Dilma Rousseff, íntegra e eleita pelo voto popular.
Em seguida, o embaixador de Portugal, Jorge Cabral, faz um discurso protocolar, atendo-se ao prêmio.
Roberto Freire, então, toma a palavra. Não dá para dizer que perdeu o decoro em seu discurso, pois já não há decoro nas ações dos membros desse (des)governo há muito tempo. Não dá nem para dizer que tenha sido um discurso, já que improvisa ofensas e bate boca com a plateia. Portanto, toma a palavra e tenta tomar a cena, como tomaram o governo, como tentam tomar o país.
Freire começa por dizer que já seria preocupante vindo de jovens, mas traz perplexidade que alguém com a “experiência” de Raduan considere que a democracia foi abalada. Diz que “quem dá prêmio a adversário político não é a ditadura” e destaca que o prêmio foi aceito, mencionando que não é apenas reconhecimento, que “há prêmio mesmo, para que todos saibam”. Defende que o governo é democrático por “permitir” que um “adversário político” receba um prêmio e a prova está naquele evento, em que “foi permitido” ao homenageado que “falasse e imaginasse” o que quisesse.
Ora, só até aí o disparate já era imenso. Em primeiro lugar o Prêmio Camões foi instituído em 1988 por Brasil e Portugal, não é algo de um ou outro governo.
Confunde-se de saída Estado com governo. Trata-se de recursos públicos e não um presente do governante do momento. A escolha do premiado é feita por um júri internacional, não por membros do ministério de Freire. Além disso, Raduan foi escolhido tendo seu nome divulgado em maio de 2016, mês da saída da presidenta Dilma Rousseff.
A truculência e aspiração ditatorial, fazem com que Freire, querendo defender o governo como democrático, dê como prova disso ter “permitido” que Raduan fosse premiado e falasse. A mesquinharia o faz destacar que há prêmio em dinheiro, sem considerar que o valor de cerca de 300 mil reais não deve causar nenhuma cobiça ao homem que há poucos anos doou terras a trabalhadores e uma fazenda com maquinário, cujo conjunto é avaliado em cerca de 20 milhões de reais, para a Universidade Federal de São Carlos, onde hoje funciona o Campus Lagoa do Sino, em que estudam aproximadamente 500 alunos, com eixos centrados no Desenvolvimento Sustentável Territorial, Soberania e Segurança Alimentar, e Agricultura Familiar.
E aconteceu o que Raduan deixara como última frase em seu discurso, não houve como ficar calado.
Augusto Massi, poeta e professor da USP, alertou Freire de que a obra de Raduan era uma obra política, e que o ministro não estava à altura daquele evento. Freire respondeu que Raduan pôde falar, que “nós o respeitamos”, ao que Massi apontou o óbvio: “hoje é o dia do Raduan, não é seu!”
Em meio aos aplausos pela intervenção de Massi, Freire ainda disse que foi Raduan quem não entendeu o que se fazia ali, o chama de adversário e passa a desqualificar, mas sem nenhum argumento, a narrativa do golpe.
E a plateia ouve. Não sei se por educação, curiosidade, ou, como eu, atônita ao presenciar algo assim. É impressionante a falta de pudor, como estas pessoas ficam à vontade para, mesmo diante de um público crítico, fazer uma fala quando não vazia de significado ou distorcendo a realidade, simplesmente autoritária. E esse caráter se acentuou.
“O silêncio é de praxe!”, bradou a filósofa Marilena Chauí.
Freire tenta seguir “tomando” a palavra. Pois não havia o que responder, não havia argumentos. Apenas precisava falar mais, falar por cima, falar de cima.
E, talvez justamente porque saiba que “não há argumentação possível com o fascista”, como disse numa entrevista ao Jornal da Unicamp em 2016, Laymert Garcia dos Santos, professor desta universidade, se dirige à plateia: “não é possível que nós continuemos ouvindo isso aqui!” “Não é possível, pois é um desrespeito ao próprio Raduan”, diz Laymert. E Freire, então, vem com a pérola de que Raduan “desrespeitou a todos nós”. Diz que está representando um governo, blá, blá, blá… Laymert brada que “o prêmio é maior, ele é um prêmio da literatura da língua portuguesa”. O ministro, corroborando o discurso de Raduan, quando denunciou a repressão violenta às manifestações políticas, diz que “esta oposição sionista evidentemente está com os dias contados”. A máscara caiu, Laymert ainda lhe indaga antes de as vaias começarem: “é uma ameaça”?
Ao descer do palanque que construiu, Roberto Freire vai diretamente a Laymert chamando-lhe de vagabundo e a Massi de idiota.
Raduan, com seus 82 anos, assistiu a tudo sereno. Depois recebeu cumprimentos, conversou, autografou.
Ouvi alguns aventando se ele deveria ter respondido. Não me parece de modo algum. Raduan também é maior.
Da mesma forma que a força de sua obra não vem da extensão – autor de dois livros e meio, como ele brinca –, não havia mais o que dizer. Já não havia resposta para o que dissera.
O evento político estava consumado.
Raduan fez com que os demais não ficassem calados.
*Rafael Alves é sociólogo, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo