Temer e o Fuck off à República
Temer se apresentou com uma mensagem explícita: a democracia atrapalha a boa governança em tempos de neoliberalismo decadente
Douglas Rodrigues Barros*, Pragmatismo Político
Há uns meses atrás se ouviu uma fala inusitada de Michel Temer que parecia saída de uma peça de teatro do absurdo. Questionado sobre sua baixa popularidade, o interino sacou: “É muito bom ter baixa popularidade tendo em vista que a alta popularidade não permite que se faça as mudanças necessárias no país”. Tal qual uma personagem burocrata de Gogol, Temer se apresentou com uma mensagem explícita: a democracia atrapalha a boa governança em tempos de neoliberalismo decadente.
Essa mensagem, no entanto, não deve ser interpretada como se Michel Temer fosse um bicho-papão, senão como a verdade de um sistema que faz entrar em cena o obsceno. As palavras de Temer são como um recado da crise permanente: a democracia é quando o mercado governa. Em tempos em que a crise se tornou uma técnica política de governo, vemos a república – res-publica – ser desmontada pelo triunfo do capitalismo de crise.
Desde então foram muitas as mudanças propostas à toque de caixa. A começar pela impensável PEC 287/2016 que modifica as regras previstas nos artigos 40 – que se refere aos servidores públicos – e 201 – concernente aos trabalhadores dos setores privados – da Constituição. Ante o desmonte e refluxo dos setores organizados que poderiam combater tal medida, essa proposta de emenda constitucional visa restringir – usurpar – os mais elementares direitos de Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social). Em suma, trata-se de roubo legalizado dos recursos da seguridade cujo patrimônio é construído e mantido com dinheiro da população.
O recado é simples: danem-se as pessoas que precisam da aposentadoria e dos municípios cuja economia é dinamizada por elas. Temos um único objetivo: garantir a perenidade no pagamento de juros e amortizações da dívida para os bancos e investidores privados. Não bastasse a PEC que congela por 20 anos os gastos e investimentos no setor público, os iconoclastas da República buscam agora um desmonte neoliberal ortodoxo cujo resultado calamitoso é difícil de prever. Trata-se diretamente do saque dos cofres e da entrega do dinheiro público para os mais ricos com respaldo legal.
Com a falência e crise de estados da federação, com a falta de recurso em hospitais e com a-já-desmontada educação no país, o quadro de um governo parasitário revela uma situação periclitante que só é oculta nos meios oficiosos de comunicação. É evidente que a aparente calmaria na superfície oculta indignações de toda espécie, independente do espectro político. Uma indignação que vindo à tona não se sabe onde vai dar.
Agora, fica patente que o ódio criado era só uma solução provisória frente uma calamidade embrionária que renderia bons frutos à elite e cujo partido, outrora no governo, já não dava mais conta e nem agradava essa mesma elite. Sabemos que o elemento do ódio, que ainda vigora como uma espécie de castração em sentido freudiano, se torna mais forte quando não é uma ameaça efetiva. Uma ameaça que não pode se tornar efetiva é, no entanto, uma assombração perpétua para aqueles que se sentem ameaçados. Nossa infância foi permeada por esses monstros que moldaram nosso comportamento.
O mesmo vale para o anticomunismo atual: o discurso belicoso anticomunista constrói um espectro do comunista que não é encontrado em lugar nenhum da realidade e usa essa cisão, entre o comunista inexistente e os petistas existentes, como argumento “legitimo” para seu ódio. O Outro do meu ódio não é só o que nega a minha crença, aquilo que sou, mas, é aquele que é completo e feliz. O ressentimento é formatado a partir da perspectiva que o Outro tem acesso pleno à Coisa que determina minha própria completude.
Não é difícil perceber que o ódio contra os programas assistenciais do ex-governo, ou contra as pautas LGBT’s e feministas, se fundamenta no bode expiatório de um grupo que me nega e se apossa da coisa que poderia me completar. Aí todos os ressentimentos egóicos da subjetividade estão postos e não há qualquer argumento racional que possa demovê-los da Ideia fixa, pois é ela que completa a personalidade daquele que odeia. Em sentido hegeliano, minha identidade se efetiva por aquilo que me nega. Isso é válido para quem se diz de direita ou esquerda.
Esse ódio, todavia, pode estar fundamentado em algo simples. Por exemplo, o Brasil experimentou um processo fundamental de mudanças que fora engendrado, entre outras coisas, pela renda mínima aprovada por Lula em 2004. Abriu-se algo inédito na história da sociedade capitalista de “livre escolha”, qual seja: fora aprovada a liberdade de escolher não trabalhar.
Houve então, no plano da percepção, uma inversão superficial da lógica de exploração. Esta tornou-se menos a exploração capitalista sobre os trabalhadores e mais a exploração de não trabalhadores sobre todas as camadas produtivas da sociedade. Em suma, a perda da visão sobre a luta de classes que vigora hoje em ambos polos políticos – esquerda e direita. A retórica criada contra os “vagabundos” do bolsa família demonstra a verdade dessa aparência que foi trabalhada com afinco pelos setores mais reacionários da sociedade.
Ademais, a renda mínima possibilitava a escolha mais reflexiva sobre os empregos sem deixar que o processo de circulação via consumo entrasse em declínio. Quem não se lembra da televisão, até pouco tempo, noticiando o desemprego voluntário? Naturalmente, em um país que, da esquerda à direita, enxerga com bons olhos a exploração do trabalho – até mesmo do trabalho infantil: mente vazia oficina do diabo – essa política encontraria resistências ideológicas infernais e psicóticas.
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Não se deve esquecer, por outro lado, que a aposta no consumo (isto é, a política baseada na ideia de que a classe baixa poderia se satisfazer com mercadorias produzidas em massa) tornou-se “meia” realidade com os programas sociais do governo petista. Entretanto, os pressupostos dessa solução foram: a permanência no capitalismo com uma política de redistribuição imposta de fora pelo aparelho do Estado. Toda retórica anti-Estado em um degenerado anarco-capitalismo baseado no pró-fascismo de Hayek traz consigo essa desconfiança de um Estado centralizado. Isso fomentou o monstro imaginário dos adeptos do neoliberalismo e a retórica vazia de seus asseclas bem pagos.
Os limites de tal política se evidenciava no fato de que, embora houvesse uma pequena prosperidade por meio da redistribuição de renda, tais medidas só funcionavam num jogo em que um partido “popular” representava um pacto de paz social entre classes antagônicas nos limites de um Estado-nação. O descontrole das finanças públicas, porém, gerado por um Estado inchado e o boicote do mercado trouxera então, para se divertir com Freud, o retorno do reprimido na figura de Michel Temer.
Não há como pensar Temer como uma figura da solução de contrato, senão como um sintoma que entra em cena causando um grande trauma. A Casa Grande voltou à casa para colocar “as coisas no devido lugar” e para tanto usa toda a simbologia necessária: a mulher-boneca-de-porcelana, o uso irrepreensível do português e o tom amigável de um coronel.
Como demonstra Žižek, no seu Vivendo no fim dos tempos (2012, p. 280-280), nós temos duas posturas opostas e complementares de democracia. Por um lado, aquela confiança em que a maioria do povo é justa e racional na hora de tomar uma decisão, por outro, a convicção de que o povo é tão corrupto que não se pode confiar nele. O que ambas têm em comum é o fetichismo. Tal fetichismo nos protege do núcleo radical da própria democracia como governo popular. Com a democracia institucionalizada, num jogo conciliatório, se perde o antagonismo radical entre forças sociais que, sem esse fetichismo legal, poderia perturbar a noção universal de sociedade.
Ora, podemos nos perguntar então: com a fala supracitada de Temer, no início desse artigo, não está claro de que o jogo acabou? Tal fala não representa um “Fuck off” à república cujo diálogo está posto no cassetete da polícia? O que vemos nesse sentido é que Temer faz um jogo inconsciente de seus resultados, joga cartas no escuro pois não tem o “peso da popularidade”. De fato, o que se apresenta aí é uma tranquilidade de que a crise é elemento fundamental de governança.
Ora, contra a retórica tradicional de que os momentos de crise podem levar à uma ruptura definitiva com o capitalismo, tornou-se fato que a dinâmica perpétua do capitalismo em sua autorrevolução é o adiamento ad infinitum de sua impossibilidade. A crise tornou-se uma normalidade para o capitalismo desde pelo menos 1970, ou melhor, tornou-se o modo pelo qual esse ponto de impossibilidade estimula sua atividade contínua.
Talvez, a novidade mais importante, para nós cujo sangue é vermelho, seja a de que, longe de temer as crises, o capital e sua “governança” esforça-se por produzi-las. O neoliberalismo impõe seu discurso de “do it yourself”, formatando e condicionando as intersubjetividades ao agressivo empreendedorismo de si mesmo. E, assim, se previne com a crise permanente uma crise efetiva. As mortes oficiais e não-oficiais no Espírito Santo são só a demonstração bárbara de sua concretude.
Em outras palavras, a crise revela a contínua expansão, e não é por acaso, o fato dos bancos lucrarem milhões com ela. É por isso que os banqueiros, representados pela equipe econômica no Governo, querem ampliar – com a Proposta de Orçamento da União de 2017 – para 50,66% os gastos com pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Nesse sentido, tais significados da conjuntura Temer revelam algo para além do que se mostra na superfície. Por exemplo, ao pensarmos o clássico referencial de exploração de classe, vemos que tanto trabalhador e capitalista se encontravam no mercado como sujeitos de pleno direito, iguais na ordem legal. No entanto, esse quadro de igualdade legal refluiu e se dissolve com as formas cada vez mais sofisticadas de exclusão social legitimadas por um parlamento de exceção.
É como se voltássemos para um processo de acumulação primitiva em pleno século XXI! David Harvey chama isso de movimento global de acumulação por despossessão. Em outras palavras, para manter a lógica da rentabilidade é preciso excluir direitos. Paralelamente à regressão do lucro, fora ressuscitado formas pré-capitalistas de exclusão direta – a própria legalidade jurídica, que antes dinamizava as relações de exploração, tornou-se um entrave para a exploração radical necessária à manutenção da taxa de lucro, precisando ser constantemente alterada por medidas provisórias e emendas constitucionais que são anticonstitucionais.
Tais acontecimentos são vistos, todavia, com silêncio constrangedor. Há nisso, talvez, uma resultante típica do pós-modernismo que grassou por aqui nos últimos anos e, que se baseia na “participação sem participar”, no café sem cafeína e no cigarro sem nicotina por parte da esquerda. Enquanto isso, a direita se fundamenta na antipolítica sustentada e guiada por uma mídia centralizadora que faz do discurso de sexagenários moda entre a juventude. Nada mais repugnante que jovens envelhecidos como queria Nelson Rodrigues.
Com efeito, sem dúvida, essa resignação cínica abre arestas para o populismo de direita que domina doravante grandes partes do globo. (Na Hungria, por exemplo, cogita-se até mesmo a criação de campos de concentração como solução para os refugiados). Mas… por que sabemos de tudo e não queremos saber de nada?
Aqui se revela a verdade de uma sociedade “pós-ideológica”, a saber: o capital em sua financeirização precisa tomar emprestado do futuro, acumulando débitos que jamais serão pagos. Por isso, a confiança no sistema é fundamental.
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A questão é: a esquerda de fato não confia no sistema, ou, a desconfiança radical no sistema acabaria com sua própria razão de ser, e desse modo, ela teria que dar um passo para além de seus limites?
*Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutorando em filosofia e membro do CEII (Círculo de estudos da ideia e da ideologia) e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências:
Karl Marx, O capital. São Paulo: Boitempo 2012.
HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.