O velho e o Brasil
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
“Era um velho que pescava sozinho em um bote na Corrente do Golfo, e há oitenta e quatro dias não pegava nenhum peixe.”
Especialistas em Literatura ou em criação literária defendem a suma importância da primeira frase do texto, seja um livro ou uma crônica. Essa primeira frase deve, além de obviamente bem elaborada estética e literariamente, ser o resumo sintético do porvir.
Pra começar bem esta crônica, resolvi não arriscar e iniciei com a primeira frase de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Hemingway, aliás, é tido como um especialista em sucintez. Num filme a que assisti que conta um pouco da sua história, ele (a sua personagem) desafia um admirador a escolher um número de cinco a dez. Quando a outra personagem respondeu seis, Hemingway disse: “Vendem-se sapatos infantis. Novos. Nunca usados.” Eis um conto com seis palavras, ele disse.
Para além da literatura, da ficção, as primeiras palavras ditas em momentos de nossa vida também são importantes e também dizem muito do nosso pensamento quanto ao futuro próximo ou distante.
Tão logo assumiu o poder, o Fora Temer soltou sua frase inaugural – depois seguido dum discurso recheado de pedantes mesóclises: “não reclame da crise. Trabalhe!”
Recepcionando os prisioneiros judeus, tal qual uma bem elaborada oração dá as boas vindas ao leitor logo na primeira página dum livro que se quer de prazerosa leitura, havia no pórtico de entrada do Campo de Concentração de Auschwitz a seguinte frase: “o trabalho liberta”. A comparação, reconheço, talvez seja até injusta, pois eis que o Fascismo enquanto projeto político institucional acabou, mas a analogia é compulsória.
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Na excelente obra de Hemingway, cujo livro, aliás, não podia ser mais sucinto e objetivo, tendo pouco mais de oitenta páginas, o velho trava uma batalha com um peixe gigantesco, quase maior que sua pequena embarcação. Ao final (atenção, spoiler!), o calejado marinheiro consegue trazer o peixe à orla, mas só praticamente a cabeça e os ossos, pois a carne havia sido comida pelos tubarões.
O Fora Temer não merece ser comparado ao corajoso velho marinheiro retratado pelo escritor cubano, homem simples e dum vilarejo. Trabalhador honesto e sem nenhuma citação na Lava-Jato. Mas espera-se que, quando este ilegítimo governo acabar a sua cada dia mais turbulenta viagem, não sobre só os ossos do Brasil, pois que a parte boa foi comida pelos tubarões aproveitadores da pesca alheia.
E, enquanto isso, os mais pobres trabalham cada vez mais.
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*Delmar Bertuol é escritor, professor de história, membro da Academia Montenegrina de Letras e colaborou para Pragmatismo Político