Facções e falência do Sistema Carcerário
Diego Gonçalves*, Pragmatismo Político
De acordo com os indicadores atuais do crescimento da população carcerária vs da população brasileira, se mantivermos o ritmo, em 80 anos 100% da população estará atrás das grades.
I.
Em outubro de 2016 a ruptura entre PCC e CV oficializou-se com 21 presos assassinados na região norte (maioria do CV). Entre as motivações da ruptura estão diversos fatores como: dívidas do CV, controle da fronteira Brasil-Paraguai após assassinato cinematográfico do “Rei do Tráfico”, aliança do CV com facções rivais no Norte e Nordeste, mas principalmente pela investida do PCC no Rio, em essência o PCC se organiza de forma empresarial (estima-se que seria a 16ª maior empresa do país com faturamento de 20 bilhões), muito diferente da prática do CV, era eminente o choque frente a nacionalização da facção.
Isso nos leva ao massacre no Amazonas e Roraima que em dois episódios marcados por 56 mortes no Compaj em Manaus de autoria da Família do Norte FDN e a resposta do PCC em Boa Vista que deixou 33 mortos, além das mortes registram-se cerca de 200 fugas (das quais nem metade foi recapturada) e a insegurança obrigou juízes a soltar presos de menor periculosidade.
A FDN que tem origem nas gangues de Manaus e surge num contexto de barrar o avanço do PCC sobre o estado, aliou-se ao CV, fazendo da região norte palco inicial da guerra das duas maiores facções criminosas do país.
Enquanto parte da sociedade e deputados como Major Olimpio (SD-SP) e Deputado Fernando Francischini (SD-PR) (responsável pela repressão que deixou 200 professores feridos no Paraná ano passado) comemoram, secretário do Governo Temer, que pediu afastamento, declara “tinha era que matar mais” e “tinha que fazer uma chacina por semana”, o governador do Amazonas declara que “não havia santo no presídio”, entre outras manifestações lamentáveis que expõem o caráter de nossa sociedade e parte do próprio problema em questão; Temer culpa a empresa terceirizada em Manaus e promete investimentos na expansão e manutenção do carcere.
Frente a barbara realidade presente e terríveis exemplos vizinhos como da Colômbia, é preciso superar o senso comum, quebrar a cultura do ódio e entender e discutir sobre as facções criminais e a falência do sistema carcerário brasileiro.
II.
O Primeiro Comando da Capital surge em um pátio da Casa de Custódia em Taubaté (interior de SP), palco de incontáveis violações de direitos humanos, como resposta a uma política de repressão de estado que teve como estopim o Massacre do Carandiru que deixou 111 mortos (nas palavras da própria Veja em matéria recente “Eis o resultado que o Brasil colheu ao executar presos […] e manter policiais criminosos impunes.” . Seu lema paz, justiça e liberdade dava ao grupo legitimidade entre os presos, somada a extrema violência que marca sua ascensão até a consolidação de seu domínio.
Segundo a doutora Camila Caldeira, especialista na questão, podemos entender a facção em 3 momentos distintos:
1. 1993-2001 disseminação da facção e conquista de espaço, marcada por eliminação de oposição com extrema-violência (de decapitações até episódios de canibalismo).
2. 2001-2006 consolidação do poder, marcada pela rebelião de 2001 em 29 unidades prisionais simultâneas e onde o PCC ganha publicidade e o governo é obrigado a admitir sua existência (vale mencionar a desastrosa operação castelinho, resposta criminosa do Estado); e vai até os ataques de maio de 2006 com 74 unidades e ataques no “lado de fora” tendo como alvos a polícia, bancos, e sitiando a cidade de São Paulo (a resposta do Estado aos 59 agentes públicos mortos é a morte genocida de 505 civis nas periferias da cidade em 14 dias)
3. A partir de 2006 a facção assume hegemonia do controle carcerário no Estado e consolida-se como a maior organização criminosa do país. O que relaciona-se diretamente com a conduta e ordem imposta pela mesma, destacando-se: proibição do uso de crack e de porte de facas nas cadeias, corresponsabilidade de padrinhos ao aceitar novos membros e mediação de conflitos e controle das punições (já não mais necessariamente morte).
Uma terceira crise entre PCC e Estado ocorreu em 2012, quando o Comando lança investida contra PMs em resposta a abusos (a ROTA na rua), o que culmina na morte de PMs e nova resposta genocida contra periferia, com aumento das mortes em ações polícias e cerca 306 pessoas mortas por grupos de extermínio.
Hoje com a cisão da aliança com o CV e a suposta formação do NarcoSul, uma nova fase parece iniciar-se na história da facção, o que amplia a urgência da discussão.
III.
Somos a 4ª maior população carcerária do mundo (622 mil em dezembro de 2014), da qual 80% esta presa por crimes ao patrimônio ou tráfico de drogas. Considerando o fluxo de pessoas presas e soltas, no período de 2014, pelo menos 1 milhão de pessoas vivenciaram o cárcere. Assustadores 40% são presos provisórios ainda não julgados. Apenas 2% tem ensino superior completo ou incompleto. Destaca-se a situação das mulheres, que embora ainda minoria, foram a parcela da população carcerária que mais cresceu. Mais da metade da população feminina é por tráfico de drogas.
Nos últimos 20 anos o Brasil saltou de 60 mil vagas para 306 mil, mesmo assim a superlotação prevalece; considerando o fluxo, são mais de 20 pessoas por dia em carcere, as cadeias com capacidade média de 700 à 800 presos, saem na faixa de 34 milhões. Sobe essas condições estabelece-se a prática sistemática de tortura por parte do Estado. Maiores riscos de tuberculose, AIDs e morte, apenas 30% dos presos tem acesso à saúde. Por fim, sobrecai sobre as famílias o peso de sustentar em boa medida os parentes presos, comprometendo cerca de 60% da renda familiar.
Apesar de a constituição prever a personificação da pena, os efeitos psicológicos, sociais e financeiros para as famílias são inegáveis. Vale esclarecer o beneficio do auxílio-reclusão, cedido apenas para famílias de presos que exerciam atividade regulada, contribuíam com o INSS, estão em regime fechado ou semiaberto e comprovam baixa renda. Destaca-se ainda a prática de revista vexatória, um estupro institucionalizado, aplicado até mesmo a crianças e adolescentes, que embora não demonstre qualquer eficiência em impedir a entrada de celulares, drogas e armas nas cadeias, continua sendo aplicada como forma de afastar as famílias do sistema; alternativas como espaços isolados para visitas com revistas nos presos e uso de aparelhos eletrônicos são apontadas por especialistas. Em uma sociedade que faz vistas grossas a realidade carceraria, o papel das famílias na luta pelo desencarceramento é central.
Por fim as mulheres são as que mais sofrem, juntamente a seus filhos e a culpabilização enquanto mães.
A agenda pelo Desencarceramento de 2014, aponta a necessidade entre outras coisas, da abolição de pena de prisão em diversos casos, do fim da guerra as drogas e da desmilitarização da polícia; também lança repudio a qualquer tipo de privatização do sistema carcerário.
É preciso entender que a falência do sistema carcerário não se resolve em si mesma, em um contexto de crise do capitalismo, desmonte dos Estados, desemprego que se intensificará com o desemprego tecnológico, entre outros fatores, está crise será mais sentida pelas camadas mais fragilizadas da população. Nesse sentido é preciso repensar as bases da organização social, revendo da propriedade privada à forma de produção e consumo, revertendo a desigualdade, até mesmo, e principalmente, revendo os valores sociais que enxergam de forma isolada a culpa por comportamentos socialmente danosos (não desencadeadas por devidos contextos) e acreditam no punitivismo, ao invés de trabalharmos os estímulos sociais que geram tais comportamentos.
O Estado autoritário não sobrevive sem a justificativa do inimigo interno e é ai que a guerra as drogas têm papel central nas estruturas de poder que garantem o status quo capitalista. Legitimado pela criminalidade, que fomenta medo e desorganização da sociedade civil, o Estado justifica seu domínio e controle social e maqueia a violência estrutural de opressão do trabalhador.
Não importa o que você faz. Apenas fique de bem consigo e esteja no grupo que vive pra notar a melhora ‘espontânea’ do mundo!
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*Diego Gonçalves é graduando em Ciências Sociais na FFLCH-USP e colaborou para Pragmatismo Político.