O dia em que Fidel Castro mobilizou o New York Times: uma das mais repercutidas matérias jornalísticas da história política internacional completa 60 anos
por Bruno Moreira*, noOutras Palavras
No último mês de fevereiro, tornou-se sexagenária uma das mais repercutidas matérias jornalísticas da história política internacional, feita no dia em que o New York Times foi à Sierra Maestra entrevistar um homem que, escondido na selva com um punhado de companheiros, queria tomar o poder num pequeno país dominado por uma ditadura.
Em 1957, os conflitos internos em Cuba decorrentes da resistência à ditadura de Fulgêncio Batista entravam numa fase de instensificação. O grupo rebelde intitulado Movimento 26 de Julho, liderado pelo jovem advogado e líder político Fidel Castro Ruz, já havia feito uma ação importante quatro anos antes, na tentativa fracassada de tomada do quartel Moncada. No evento, vários rebeldes morreram. Fidel, por sua vez, foi preso. Anistiado em 1955, exilou-se no México.
Em dezembro de 1956, Fidel regressa a Cuba acompanhado de 81 guerrilheiros, entre eles o argentino Che. Utilizando um arremedo de embarcação carinhosamente chamada de Granma (vovó, em inglês), o grupo partiu do México em direção à ilha. Como estratégia central estava a de que, uma vez em território cubano, a guerrilha buscaria ganhar força a partir de um trabalho de arregimentação e articulação com a classe trabalhadora, principalmente campesina.
Três dias após o desembarque, porém, um ataque violento das tropas de Batista é feito contra os rebeldes. Dele, só vinte guerrilheiros sobrevivem e se instalam na selva, iniciando os esforços para organizar a luta e enfrentar as primeiras batalhas. Batista e seus apoiadores, por sua vez, espalham o boato de que Fidel está morto. Neste momento, parte de Castro uma ideia ousada para tentar reverter o efeito negativo produzido pela informação de sua morte. Através de contatos urbanos clandestinos, Fidel consegue fazer chegar ao então editor-chefe do New York Times, mais influente jornal do mundo, uma oferta de entrevista exclusiva. Os objetivos eram mostrar aos cubanos e ao mundo que ele estava vivo, que em Cuba havia uma guerrilha e que Batista precisava ser derrubado. A entrevista seria ainda uma ótima oportunidade de potencializar o alcance do foco guerrilheiro, angariando corações e mentes para a causa. Herbert Mathews, o editor, eufórico pela oportunidade da exclusiva, aceita o convite, e os dois se encontram numa manhã de fevereiro no meio da selva.
Escolhendo palavras simpáticas para descrever o que testemunhava, Mathews caracterizou o movimento 26 de julho como um movimento que buscava um nova ordem para Cuba, “radical, democrática e portanto anticomunista”. Ressaltou os esforços dos rebeldes e de Castro em tentar se livrar de uma ditadura violenta, corrupta e nociva. A entrevista ganhou a capa do periódico e se transformou numa série de reportagens publicadas em fevereiro. Mathews e Castro tornaram-se amigos, e, mais que isso, O movimento 26 de julho, por sua vez, tornou-se amigo da imprensa. Jornais de todo o mundo seguiram o tom simpático da narrativa de Mathews e a imagem de Fidel como um justiceiro romântico correu o mundo.
A despeito do fato desta amizade ente a guerrilha cubana e a imprensa ter durado poucos anos, a ação de 1957 demonstrava uma habilidade absoluta. A escolha ousada de tentar fazer propaganda através do jornal mais importante do mundo culminaria com o efeito positivo desejado por Castro, num momento crucial em que o movimento precisava ganhar força. Mais ainda, ao evitar demonstrar qualquer linha ideológica que não fosse a ideia de uma revolução que sanearia Cuba e derrubaria um déspota, Fidel ganhou a simpatia do mundo e evitou que recaísse sobre si o que até então era uma pecha que a imprensa burguesa fazia questão de explorar: o do enquadramento estereotipado no conjunto de representações da propaganda anticomunista.
Menos de dois anos após aquela entrevista, o movimento já se transformara numa guerrilha altamente organizada, e que atingiria o êxito de depor o presidente ditador Fulgêncio Batista. Em 1º de janeiro de 1959, eles entrariam em Cuba nos braços da população trabalhadora e se tornariam, desde então, um governo revolucionário. Evidentemente, a matéria e o efeito produzido por ela não foram os únicos elementos de constituição desta força, mas teve sua importância num momento em que a maneira como o movimento era “dado a ler”, utilizando uma expressão de Roger Chartier, era crucial para se angariar apoio interno e externo.
Como já dissemos, a simpatia das agências internacionais de notícias pelos barbudos rebeldes cubanos não duraria muito. Num cenário de acirramento da propaganda anticomunista, num momento ápice da Guerra Fria, à medida que as declarações e os passos dos revolucionários foram se aproximando da URSS e de princípios marxistas-leninistas, que os tribunais revolucionários foram punindo com penas de morte pessoas envolvidas em crimes cometidos na época de Batista, entre outras ações; o teor simpático e conciliatório foi gradualmente sendo abandonado até culminar com a percepção jornalística hegemônica de Cuba como exemplo de ameaça mais temível para os demais países da América. A partir de 1961, com a declaração de Castro de formalização do caráter socialista da Revolução, a grande imprensa internacional, com raras exceções, passou a perceber Cuba em seus editoriais como um mal a ser combatido.
O que nos chama a atenção neste evento de 1957 é que Fidel já apresentava ao mundo sua perícia de habilidoso interlocutor. Ao preocupar-se em estabelecer uma representação favorável na imprensa internacional, estrategicamente elaborada no jornal de maior alcance, Fidel já sinalizava um traço que o marcaria enquanto porta-voz da Revolução: o cuidadoso uso da palavra, a preocupação minuciosa com a produção de representações. Ao longo da trajetória da Revolução Cubana, isso ficaria demonstrado em diversos momentos, desde expedientes mais simples como a preocupação em montar uma rádio clandestina como uma das primeiras ações revolucionárias após se instalarem na selva, passando pela elaboração cuidadosa de discursos históricos proferidos na assembleia da ONU, ou até mesmo nos vários convites feitos a intelectuais de todo o mundo para visitarem e conhecer in locu a Revolução Cubana, acompnhado pelo luxioso ciceroneamanto e discursos do próprio Fidel.
A representação inventa o mundo. São as palavras que criam e recriam o cotidiano, e forjam a maneira como nos apropriamos da realidade que nos cerca. Com relação a tais percepções Fidel Castro pareceu sempre estar muito atento. Neste sentido, demonstrou ainda compreender que Revolução também se faz com propaganda. E que as vezes os instrumentos disponíveis para isto podem ser, com criatividade, os próprios meios que muitas vezes estão comprometidos com a manutenção da ordem instituída.
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*Bruno Moreira é Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor de História do Instituto Federal da Bahia (IFBA) – Campus Santo Amaro.
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