Boa parte da população brasileira demonstra não saber ao certo o que está acontecendo e segue anestesiada (ou bestializada?) ao assistir a aprovação da Terceirização na Câmara dos Deputados. Na hora em que cair a ficha, e se a ficha cair, qual será a reação?
Por Leonardo Sakamoto*
A Câmara dos Deputados aprovou, na noite desta quarta (22), o projeto de lei que permite a terceirização de todas as atividades de uma empresa.
Foram 231 votos a favor, 188 contrários e oito abstenções. Segue para sanção de Michel Temer (VEJA COMO VOTOU CADA DEPUTADO AQUI).
Apresentado durante o governo Fernando Henrique, em 1998, o PL 4302 foi ressuscitado por ser menos rigososo com as empresas e um atalho às mudanças, uma vez que já havia sido aprovado pelos senadores em 2002. O PL 4330/2004, que trata do mesmo tema e é menos danoso ao trabalhador, está tramitando no Senado.
Enquanto o 4330 prevê responsabilidade solidária entre a empresa tomadora de serviço e a prestadora de serviço, o 4302 prevê a responsabilidade subsidiária. Com isso, a empresa contratante pode ser envolvida apenas se a contratada não conseguir, diante de um processo judicial, arcar com suas obrigações. O que significa mais tempo de espera ao trabalhador.
A ampliação da terceirização pode levar a um comprometimento significativo dos direitos trabalhistas, com perda de massa salarial e de segurança para o trabalhador. No limite, poderemos ter um grande problema social quando milhões de trabalhadores perceberem que perderam salários e garantias e nem mesmo podem reclamar com o patrão.
Situações que hoje oprimem certas categorias podem ser universalizadas. E o Judiciário não terá condições de processar e julgar todas as ações trabalhistas decorrentes.
Grandes empresas tendem a concentrar os lucros, mas sem empregos, e uma constelação de pequenas empresas sem qualquer lastro financeiro ou independência, ficarão com todos os empregados. Periodicamente, tais empresas encerram as portas, deixando para trás enorme passivo, gerando avalanches de reclamações trabalhistas.
No médio prazo, a ampliação da terceirização tende a rebaixar salários médios em todos os setores. Estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que, em média um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto.
Apesar do projeto não liberar a ”pejotização” geral, muitas relações tendem a deixar de ser entre patrões e empregados, previstas e tratadas pelo direito do trabalho, passando a ser entre empresas e empresas pessoais, como se ambas fossem livres e iguais entre si. Hoje, isso já acontece aos montes, apesar de ser proibido, pois os trabalhadores temem reclamar e perder o serviço ou entrar em alguma ”lista suja” do setor.
E no caso de trabalho análogo ao de escravo, em que muitas fazendas e empresas se utilizam de cooperativas e empresas fajutas em nome de prepostos para burlar direitos trabalhistas, o projeto vai facilitar a impunidade das contratantes que, no máximo, terão que bancar salários atrasados, dificilmente sendo punidos pelos crimes encontrados.
Mas o importante é que, agora, ninguém segura esse Brasil, não é mesmo? Afinal de contas, todos têm que dar o seu quinhão de sacrifício em nome do crescimento do país e você está preparado para abrir mão da dignidade (conquistada com base em sangue e lágrimas por gerações antes de você) para que setores do empresariado nacional e internacional não precisem passar por atrocidades como taxação de seus lucros e dividendos.
Atendendo a uma das principais demandas do empresariado, o governo Michel Temer ganhou sobrevida. Se ele aprovar a Reforma da Previdência e o restante da Reforma Trabalhista (com livre negociação entre patrões e sindicatos mesmo passando por cima da lei), então conseguirá chegar ao final do seu mandato.
Aliás, uma gigantesca dose de pragmatismo talvez seja a razão de muitos empresários terem aplaudido toda vez que um representante do governo ou de sua base de apoio no Congresso Nacional (muitos envolvidos em denúncias de corrupção até o pescoço) defendeu a ampliação da terceirização legal em eventos corporativos. Do que adianta vociferar contra a relação incestuosa de certos sindicalistas com o poder público se é adotada a mesma ética?
Porque ”compliance” é palavra bonita em certos relatórios de responsabilidade social que, pelo visto, não valem o papel em que são impressos.
Apenas um governo que não foi eleito e que não poderá ser reeleito – e, portanto, não possui compromissos com nada além de si mesmo – pode fazer o que pareceria impossível para PSDB e PT.
”Direitos Trabalhistas” deveria ser disciplina obrigatória no currículo escolar, tanto da educação básica quanto na formação de jornalistas – para não acreditar em qualquer groselha que circula via redes sociais e para que colegas desconfiem de verdades absolutas ditas por membros do governo.
Como sempre escrevo aqui, a sociedade muda, a estrutura do mercado de trabalho muda, a expectativa de vida muda. Portanto, as regras que regem as relações trabalhistas e previdenciárias podem e devem passar por discussões de tempos em tempos. E, caso se encontrem pontos de convergência que não depreciem a vida dos trabalhadores, não mudem as regras do jogo no meio de uma partida e atendam a essas mudanças, elas podem passar também por uma modernização.
E como isso envolve direitos que garantem uma qualidade mínima de vida dos mais pobres, a discussão não pode ser conduzida de forma autoritária ou em um curto espaço de tempo.
No ritmo em que as coisas andam, não me espantaria ver anúncios estampados em páginas duplas de revistas semanais de circulação nacional (se a internet não tiver as engolido antes), dizendo: ”O Banco X pensa em seus empregados. Ele paga 13o salário a todos. Isso sim é responsabilidade social”.
Ou algum prêmio do tipo ”Melhor Lugar para se Trabalhar no Brasil” anunciar que a vencedora é uma empresa Y que garante 30 dias de férias ao ano para seus empregados, ops, quer dizer, colaboradores.
E nossos filhos olharão para aquilo e, espantados, perguntarão: ”Mãe, o que é 13o? Sua empresa não tem essa tal de férias?” Ou, no limite, ”Pai, o que é emprego?”
Uma candidatura que se venda como representante dos interesses dos trabalhadores, em 2018, seja para a Presidência da República ou para o Congresso Nacional, terá que abraçar, no mínimo, um referendo sobre essa mudança como promessa de campanha.
A classe trabalhadora segue assistindo a tudo bestializada, dada a velocidade dessas alterações, sem saber ao certo o que está acontecendo. Na hora em que cair a ficha, e se cair a ficha, vai haver muito ranger de dentes. Mas também deputado que não irá se reeleger.
*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela USP
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook