Diego Gonçalves*, Pragmatismo Político
Em doze de janeiro de 2016, durante uma manifestação do Movimento Passe Livre (MPL), que sofreu intensa repressão policial (antes mesmo que o ato tivesse início), eu fui agredido com cassetete por diversos policiais e terminei perdendo muito sangue com um ferimento na cabeça. Em memória desse fato, abro debate sobre o transporte público!
I – Urbanização e Transporte
Entre as décadas de 40 e 80 ocorre no Brasil intensa concentração demográfica nas áreas urbanas, através de um processo batizado por Milton Santos de urbanização corporativa, caracterizada por:
1. Urbanização voltada aos interesses de grandes empresas, priorizando investimentos econômicos, em detrimento de gastos sociais. Da especulação imobiliária, da viabilização da produção e logística de transporte, suporte a grandes eventos e calendário econômico, valorização de áreas comerciais e principalmente das condições bases para manter um estilo de vida consumista por parte da população, etc.
2. Cidades espraiadas, ou seja, permeadas por vazios passiveis a futura comercialização. A área urbana expande devido a especulação, resultando em periferização da população, empurrada cada vez mais para áreas mais distantes. Para haver especulação é preciso também haver escassez habitacional de qualidade, o que implica em concentração de atividades econômicas (comércio/empregos) e serviços públicos, desvalorizando as demais áreas onde a população de menor poder aquisitivo habita, forçando-a a se locomover mais e gerando carências no transporte, o que cria áreas ilhadas, a higienização social.
Além do aspecto estrutural-economico, existe o fator social do processo de higienização, fundamental para manutenção de uma desigualdade estrutural, seja pela integridade do patrimônio privado, ou mesmo para setorizar os espaços e serviços (mesmo que públicos) a parcelas restritas da população, inibindo a circulação e usufruto pelos demais.
As grandes empresas não servem as cidades, ao contrário, as cidades servem e moldam-se para servir as grandes empresas. Por tanto, como as cidades são corporativas, os problemas que afetam suas populações se arrastarão, enquanto os mesmos não comprometerem o funcionamento das grandes empresas.
Considerando tal quadro, é evidente que toda a vida urbana e cidadania está condicionada a capacidade de locomoção dos indivíduos, ao passo que, inversamente, para tratar e solucionar a questão do transporte é preciso rever o processo de urbanização e distribuição de bens e serviços pelos territórios.
II – Aumento das Passagens e Subsídios
Ano após anos assistimos o contínuo aumento das tarifas no transporte público. Enquanto o salário-mínimo teve reajuste abaixo da inflação, a tarifa do ônibus subiu de 3,80 para 4,20 à 4,50, em várias cidades, valor acima da inflação. Esse processo de encarecimento, e subsequente sucateamento do transporte coletivo, se dá: primeiro pela opção de investimento e incentivo no transporte privado, visando interesses econômicos em detrimento de uma mobilidade sustentável, enquanto o transporte coletivo entre 2000 e 2012 subiu bem acima da inflação, o transporte individual manteve-se bem abaixo da inflação, como resultado de uma politica de incentivo a compra de carros e motos, hoje no Brasil há 12 vezes mais subsídios para transporte privado do que para o público; em segundo no Brasil o transporte coletivo é quase que totalmente financiado pelas tarifas, logo é a população mais pobre que arca com a conta (por mais que toda a sociedade se beneficie da circulação de mão de obra, consumidores, diminuição de congestionamentos e demais problemas gerados pelo transporte privado). Dessa forma, o encarecimento da tarifa implica em um ciclo vicioso de menos pessoas aptas a pagar (usar), e contínuos aumentos sobre a demanda decrescente, o que sucateia o transporte público e torna o investimento no privado mais atraente. Apesar de metrôs e trens apresentarem ganho em demanda, os mesmos correspondem a meros 5% da demanda total do transporte público.
Ainda sobre o transporte individual, um estudo estima em 98 Bilhões os custos gerados pelos congestionamentos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o que evidencia como o transporte individual implica grande custo a mobilidade urbana (além de acidentes, poluição, etc.), somado a perpétua demanda por obras viárias que viabilizem seu uso, e sustentam os lucros para o setor automobilístico (vital para lógica econômica vigente). Da mesma forma, o transporte privado encarece o público ao piorar as condições gerais de mobilidade e pela carência de politicas que priorizem a circulação de veículos coletivos.
E como baixar os preços? A primeira resposta encontra-se na necessidade de subsídios e desonerações para o transporte público.
Porém antes de qualquer resposta, é preciso tirar o transporte público da lógica do lucro, devolvendo a gestão dos mesmos para o Estado, de forma transparente (planilhas de custos abertas e confiáveis)e com ampla participação da população (combatendo a corrupção), evitando que investimentos e desonerações sejam convertidos em maiores margens de lucros e voltando o sistema aos princípios da eficiência e qualidade. Para tanto, não há exclusivamente necessidade de estatização, a exemplo de São Paulo, o fretamento de ônibus privados permite igualmente uma gestão pública.
Outros defendem a desregulamentação, e liberação do transporte informal, porém além do mesmo se limitar majoritariamente a veículos de menor porte, acarreta uma série de problemas colaterais. Apesar de que, novas dinâmicas no uso e compartilhamento de carros, que aproveitam novas tecnologias (a exemplo do Uber ou BlablaCar), vem mostrando seu potencial e expõem a necessidade de maior abertura no setor.
Indo para os subsídios e desonerações, propriamente, um grande exemplo é o francês onde há a Taxa de Contribuição para o Transporte, que é um imposto que incide sobre as empresas, simultaneamente ao vale transporte (semelhante ao brasileiro), o que viabiliza grandes subsídios para o transporte coletivo como um todo e acesso aos trabalhadores informais e desempregados. Na maioria das cidades europeias os subsídios ultrapassam a casa dos 50% do valor total das tarifas. Possibilidades para viabilizar subsídios vão desda criação de um fundo nacional financiado por impostos do setor produtivo, sobre o combustível, propriedade de veículos privados, taxação de estacionamentos, impostos sobre imoveis valorizados pelos investimentos em mobilidade ou que venham impactar a mobilidade local, etc (recomendo um estudo do IPEA sobre o assunto). Também para lidar com a cultura do automóvel, uma taxa sobre publicidade de veículos poderia ser revertida em campanhas de incentivo ao transporte coletivo.
Há também o problema do subsídio cruzado, onde são os próprios passageiros que arcam com os benefícios concedidos para determinados grupos, como gratuidades para idosos, estudantes, bilhete único, e demais programas. Logo é preciso que tais benefícios sejam sustentados de forma extra-tarifária. Assim como befécios como os para estudantes, com passagens contadas, que limitam-se a grade escolar, precisam passar a ser ampliados e encarados como políticas de cidadania fundamentais para a vida em âmbito geral.
Encerrando a questão, é evidente que precisamos rever as contas públicas, da política econômica do superavit à tributação, que precisa ser progressiva (mais ricos pagam mais), a fim de termos suficientes recursos para simultaneamente baratear o transporte e fazer significantes melhorias, tornando-o atrativo para as demais camadas, em detrimento do transporte individual. Porém é preciso reconhecer as limitações das políticas de mobilidade urbana e fazer drásticas mudanças no modelo de urbanização, superando a lógica centro-periferia, valorizando a cidade como um todo. Também é tempo de enxergar como a progressiva concentração de capital e de pessoas é insustentável alongo prazo, o que implica a necessidade de reversão do êxodo rural.
III – Tarifa Zero e Transporte de Qualidade
O transporte coletivo é o único serviço público pago de maneira direta. Entendido como condição básica para o real acesso aos demais programas sociais, assim como empregos, cultura e cidadania, a pauta pelo direito ao transporte (direito a cidade) é histórica. Nesse contexto de luta, destacam-se organizações como o MPL, que tem como pauta a Tarifa Zero, ou seja, o transporte gratuito, pago de forma indireta por toda sociedade (de forma progressiva). Em termos econômicos, nada mais é do que um subsídio 100%, mas em termos sociais, a gratuidade muda tudo!
Existem diversas experiências ao redor do mundo, atualmente a mais promissora delas é na cidade de Tallinn, capital da Estônia, com 430 mil habitantes. Sobre o projeto, ele contou, além da gratuidade, com significativas melhoras na qualidade e frequência do serviço, ao custo adicional de 12 milhões anuais (considerando os 70% de subsídios prévios). Como é necessário o registro como cidadão para a utilização do serviço, o incentivo gerado ao registro de novos moradores faz aumentar a receita da cidade, viabilizando o projeto. A gratuidade se mostrou promissora para aumentar a demanda por transporte público em áreas mais pobres, porém evidencia que para fazer as pessoas trocarem os carros por ônibus é preciso onerar o transporte privado. O projeto pretende colocar Tallinn como a capital mundial do transporte gratuito e vem sendo observado de perto por outras cidades ao redor do mundo.
Uma outra experiência muito significativa foi em Hasselt na Bélgica que manteve por 16 anos o transporte gratuito, conseguindo um aumento em 10 vezes nos usuários de ônibus, fato que se dá também as grandes melhoras do serviço. Apesar do fim da gratuidade universal, jovens até 19 anos, idosos e outros grupos pontuais continuam beneficiados pela isenção. Nesse aspecto são diversas experiências, a exemplo de Barcelona, de gratuidades pontuais para parcelas específicas dos usuários. Ainda, iniciativas como em Singapura que oferece transporte gratuito até as 7:45 para aliviar o horário de pico matinal, e um mês depois resultados já mostraram queda em 7% do congestionamento; já em Sidney existem algumas linhas gratuitas, demonstram a variedade de possibilidades nesse sentido.
Já no Brasil, destaca-se a cidade de Marica, que desafiando empresas privadas que controlavam a região, instituiu a tarifa zero através de uma nova empresa da prefeitura. Apesar dos royalties do petróleo, para o especialista Lúcio Gregori, considerando que o PIB per capita de São Paulo é maior, o projeto é totalmente viável em larga escala. Também há inúmeras cidades pequenas no Brasil adeptas a tarifa zero, e existe até mesmo uma lista das experiências a nível mundial.
A tarifa zero tem que ser encarada não de forma imediatista, mas como um processo, de contínuo aumento de subsídios, políticas de inclusão social e principalmente melhora na infraestrutura do transporte público (acessibilidade, vias exclusivas, valorização de profissionais, melhores veículos, etc.). Vale-se mencionar, por exemplo, a necessidade de substituição de veículos a diesel, por ônibus elétricos, algo que vem ganhando força mundo afora, a exemplo até mesmo da Índia, e hoje no Brasil há experiências como em Minas Gerais ou o desenvolvimento de ônibus movido a energia solar pela federal de Santa Catarina. Nesse aspecto, é fundamental discutir o grande papel da inovação tecnológica para mobilidade urbana, em um país onde carros elétricos ainda são um sonho.
Tema para um outro momento, os metrôs são peças-chaves para a locomoção urbana. Se olharmos as previsões de 2012 da expansão da malha metroviária paulistana, o que temos hoje em 2017 é lamentável. É impossível comparar São Paulo com cidades como Nova York, Tokyo e Paris, porém comparando com a Cidade do México, fica evidente o problema.
Longe de mim querer encerrar o assunto aqui, mas concluindo, para chegarmos em um transporte de qualidade e acessível, capaz de responder as questões da mobilidade urbana, é preciso rever as contas públicas, os hábitos de consumo (que sustentam indústrias e empregos) e nossa organização geográfica.
Para tanto, considerando os interesses envolvidos (e os respectivos capitais e poderes políticos), as grandes soluções necessárias demandam um novo sistema político, social e econômico; ao passo que inversamente, a construção de grandes processos revolucionários, depende de um processo de conscientização e organização, que só é possível com a gradual melhora na mobilidade social, por todas as frentes possíveis!
*Diego Gonçalves é graduando em Ciências Sociais na FFLCH-USP e colaborou para Pragmatismo Político.
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