O gigante voltou a dormir, ou jamais soube o que estava fazendo?
O incômodo silêncio diante de tudo isso faz refletir se o gigante de outrora voltou a dormir, ou se jamais soube o que estava fazendo.
Lucas Coradini*, Pragmatismo Político
Com uma velocidade fora do comum, medidas políticas de grande impacto, que repercutirão decisivamente no futuro das próximas gerações, são implementadas, uma a uma. Muitas delas controversas, mas nenhum debate com a sociedade tem sido possível na aligeirada agenda que se impõe. E essa talvez seja a palavra: imposição, por tratar-se de um programa jamais submetido às urnas e inimaginável num passado recente. Especialistas, acadêmicos e diversos movimentos sociais têm denunciado os retrocessos que batem à porta, mas, atônita, a população não esboça nenhuma reação à altura da gravidade do que se apresenta.
É importante salientar, primeiramente, que essa perplexidade diante do imobilismo social é sentida apenas por uma parte da sociedade. A maioria das pessoas é incapaz de fazer uma leitura da conjuntura que permita a compreensão do processo político em curso. Alguns, por alienarem-se completamente destas questões, outros, por um entendimento deturpado desse processo. Entre estes, estão os que engrossavam as fileiras das manifestações pró-impeachment e que, já sem o mesmo ímpeto e voluntarismo, são incapazes de mobilizar para a continuidade do “combate à corrupção”, apesar de a constatarmos de forma mais evidente e aguda do que nunca.
Não seria necessário um senso crítico muito apurado para perceber que a corrupção no Brasil tem se instituído, historicamente, de forma suprapartidária. Está enraizada no centro das estruturas, atuando de forma transversal em todos os níveis do poder executivo, legislativo e judiciário, do nível federal ao municipal. Do “caixa dois” dos partidos ao suborno de fiscais sanitários, das obras públicas superfaturadas ao inescrupuloso lobby parlamentar, da venda de sentenças à venda de projetos de leis. Importante frisar, corrupção perpetrada nos setores público e privado, como se demonstra nos casos recentes envolvendo a indústria da carne. Curiosamente, um único partido tem sido criminalizado, em detrimento de todos os outros que seguem agindo no mesmo modus operandi sem que nada lhes aconteça. Como um cordeiro imolado, criminaliza-se tão somente o PT, como se assim pudessem remir os pecados dos demais. E não se trata de defender as práticas comprovadamente perniciosas que levaram à hecatombe no partido dos trabalhadores, mas de aplicar igual tratamento àqueles que tradicionalmente atuam à sombra da lei.
Não é razoável que uma presidente seja afastada pelo crime de “pedalada fiscal” – que não existia antes de Dilma tê-lo praticado, e que deixou definitivamente de existir após seu impeachment – enquanto o seu sucessor naufraga em denúncias de incomparável gravidade, acompanhado de seu ministério e sua base parlamentar. É impossível crer em algum avanço no combate à corrupção nesse contexto.
Mesmo na Lava Jato, para desconhecimento de muitos, o partido mais implicado não é o PT, e sim o PP. Enquanto há pedidos de abertura de inquéritos pela Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal de 10 políticos do quadro do Partido dos Trabalhadores, esse número é de 33 entre políticos do Partido Progressista. Apesar disso, o Partido Progressista conquistou 494 prefeituras nas últimas eleições, se tornando a quarta força nacional em número de administrações, atrás apenas do PMDB, PSDB e PDS – partidos que, por sua vez, completam o time dos envolvidos na Lava. Se consultarmos então os dados do Tribunal Superior Eleitoral sobre os partidos com mais membros cassados pela Lei da Ficha Suja, identificaremos nas primeiras posições o DEM (69 políticos cassados), o PMDB (66 políticos cassados), o PSDB (58 políticos cassados) e o PP (28 políticos cassados). Os mesmos partidos que compõem o “centrão” e que estão hoje à frente do governo federal. O PT encontra-se na 9º posição, com 10 políticos cassados. Por que então o PT tem sido o grande alvo da mídia e das ruas nas cruzadas contra a corrupção?
A cada dia fica mais nítido que a motivação da articulação parlamentar para o impeachment foi a autopreservação de uma classe política diante das investigações da Lava Jato. Um grande acordo nacional, que colocou Temer na presidência para “estancar a sangria” de uma operação que, caso prosperasse, atingiria a todos os partidos, como afirmou o líder do governo, Romero Jucá. Há quem justifique a seletíssima crítica ao PT e a tolerância às práticas do atual presidente com o argumento de que “eles também eram governo”, ou que “o eleitorado de Dilma é quem levou Temer ao poder”. Quem se referencia por esse argumento desconhece o funcionamento do sistema presidencialista e o fato de que somente através de coalizões é possível alguma governabilidade. Coalizões que, por sua vez, balizam a distribuição de ministérios, estatais, e indicações políticas para os mais diferentes órgãos da administração pública.
Ignorar que todos os partidos que estiveram à frente da presidência da república no período pós-redemocratização tiveram o PMDB como seu aliado é desconhecer a dinâmica da política nacional. Não é pretexto, contudo, para a conivência com o corrompido grupo que hoje se encontra no comando do país. Menos ainda, para não reconhecer que a agenda política e econômica em desenvolvimento nada tem a ver com o programa submetido às urnas pelo governo antecessor, apesar das coligações. É preciso assumir que o poder outorgado ao grupo que hoje lidera o país, composto pelo PMDB, PSDB, DEM, PP, PTB, PPS, PSD, PR e outros mais, emanou daqueles que bradaram pelo impeachment. A maturidade política que a jovem democracia brasileira anseia requer a honestidade e a responsabilidade também dos cidadãos comuns que, com seu apoio, referendaram a mudança política aí colocada. Ainda há tempo para reconhecer o equívoco. Mas, nesse compasso, logo será tarde.
Em dez meses de governo Temer o desemprego se agravou e o PIB despencou, em uma das piores recessões da história brasileira. A taxa de juros bateu em 8,97% e já se aproxima de dois dígitos. O déficit fiscal previsto em 70 bilhões no governo Dilma saltou para 170 bilhões. Nossa indústria civil, naval, bélica e petrolífera é duramente fragilizada, e a produção de carros cai 18,4% no período. Há um claro processo de desnacionalização da indústria, com interrupção da fabricação dos navios-sonda, abertura da exploração do pré-sal ao capital internacional, e concessões em setores estratégicos de infraestrutura, como portos e aeroportos. Em relação ao setor público, aprovou-se uma emenda constitucional que congela os investimentos por vinte anos, o que significará sucateamento e precarização dos serviços. Isso tudo ao mesmo tempo em que o governo acena para o perdão de uma dívida de 100 bilhões às empresas de telecomunicações. O Ministério do Trabalho impõe uma agenda anti trabalhador, que engloba desde a proibição da divulgação da lista de empresas flagradas com uso de mão-de-obra escrava (medida incompreensível), até a aprovação da terceirização irrestrita, abrangendo atividades fim. A reforma da previdência em curso, fundamentada em inverdades sobre as contas públicas, está em vias de acabar com a seguridade social preconizada na constituição federal. Também em trâmite no legislativo, um projeto de lei visa permitir a compra de até 100.000 hectares de território nacional por iniciativa internacional (área superior à de muitos países), ao mesmo tempo em que a pecuária e a indústria da carne, uma das mais importantes do país, perde parcela significativa do seu mercado de exportação. O pacote anticorrupção – proposto por Dilma, o que poucos recordam – é retirado do regime de urgência e seu texto é totalmente desfigurado, e hoje se discute inclusive a anistia ao caixa dois. Para fechar com chave de ouro, o governo nomeia para o STF um indivíduo que há poucos dias integrava sua base ministerial, com o único intuito de mudar a correlação de forças no julgamento dos indiciados com foro privilegiado na lava jato. Seria essa a política requerida pela população que foi às ruas pelo impeachment? O incômodo silêncio diante de tudo isso faz refletir se o gigante de outrora voltou a dormir, ou se jamais soube o que estava fazendo.
*Lucas Coradini é mestre em Sociologia, doutor em Ciência Política pela UFRGS, e Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul e colaborou para Pragmatismo Político.