Diretas já!, mas sem ilusões
João Miranda*, Pragmatismo Político
Como é sabido, faz alguns anos que o país vive uma situação de crise política. Em alguns momentos nesse processo, tudo se concentra e as mudanças ocorrem quase que instantaneamente. Os trechos das delações premiadas dos donos da JBS, Joesley Batista e Wesley Batista, reveladas pelo jornal “O Globo” no início da noite desta quarta-feira (17), que incluem gravações em áudio e vídeo que atingem diretamente o presidente Michel Temer e o Aécio Neves, criaram esse clima intenso em que tudo pode acontecer concomitante e rapidamente. São choques não apenas cumulativos, mas, sobretudo, de intensidade atordoante.
O governo Temer já não tinha legitimidade. Alçou o comando do Executivo passando ao largo do crivo das urnas, via um golpe parlamentar, e implementou a passos largos uma agenda retrógrada, através da qual os nossos direitos históricos e arduamente conquistados são rifados dia-a-dia, nos fazendo retroceder décadas em poucos meses.
Agora, com as denúncias que caem como uma bomba sobre os ombros desse presidente golpista, é absolutamente inviável a manutenção de seu governo. Os trechos das delações constam pedidos e pagamentos de propina e a tentativa de manter calado o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, antigo aliado de Temer. Essas ilegalidades atribuídas ao presidente datam de março de 2017, quando ele já estava há quase um ano no comando do país. Isso significa que Temer será investigado pelo Supremo Tribunal Federal e sua queda é eminente.
É um momento fundamental para percebermos que com a Operação Lava-Jato grande parte dos políticos perderam com ela, já que desde que foi protocolada, a investigação pôs pressão sobre diversos deles. Seria um erro não ressaltar que, como já apontei num texto publicado aqui no Pragmatismo, o ônus maior da operação caiu sobre os esquemas que mantiveram o PT como força ativa de 2003 em diante, mas a investigação não se limitou aos petistas.
A recente delação em que Temer foi gravado em um diálogo mais do que embaraçoso, e Aécio é exposto pedindo R$ 2 milhões a Joesley, são alguns dos exemplos – talvez os mais escandalosos – que apontam que a Lava-Jato não se limitou ao PT, desvendando os caminhos seguidos pelos principais partidos e grupos políticos para financiar suas atividades e campanhas eleitorais. Dessa forma, a operação tem cortado os dutos que alimentam o modo predominante de prática política no país.
Inclusive um dos fatores que contribuiu para a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff foi isto: ela era vista como incapaz de “estancar a sangria”. Quanto mais a operação avançou, mais foi produzindo efeitos desorganizadores sobre o governo dela, gerando descontrole no sistema de megacoalizões. A prisão de Delcídio do Amaral em novembro de 2015 foi, com certeza, a gota-d’água para o pemedebismo isolar o governo Dilma e conceberem a sua queda como uma meta a ser alcançada para barrar a operação.
Acho fundamental termos isso em mente e não cairmos em análises simplistas que minimizam a complexidade da Lava-Jato a uma operação forjada unicamente para atacar o PT e suas figuras principais. Prova cabal disso é o governo Temer estar, após a gravação da JBS, à beira do abismo.
Temer pode sair através de um impeachment, por meio da cassação da chapa Dilma-Temer ou, ainda, via renúncia. O impeachment foi protocolado pelo deputado Alessandro Molon (Rede-RJ) na noite de quarta (17/5), pouco após divulgarem que o presidente deu aval para a compra do silêncio de Cunha. Quanto a cassação da chapa, a votação deve começar em algumas semanas. A saída mais rápida seria através da renúncia, algo que Temer não aceitará facilmente, como ficou claro no pronunciamento que ele fez na tarde de quinta-feira (18/5).
Saindo, Temer seria, a princípio, substituído por meio de uma eleição indireta pelo Congresso. Contudo, estou convicto de que ninguém deixará essa decisão nas mãos desse sindicato de ladrões composto, com raras exceções, por vários deputados provincianos, delinquentes e hipócritas; creio que, após o show de horrores que, há pouco mais de um ano, assistimos na votação do impeachment de Dilma no Congresso, dia em que as câmeras do plenário mostraram, como um espelho, a podridão dessa instituição, ninguém supõe aceitável que os parlamentares decidam quem será o nosso próximo presidente.
Diante das veias abertas do sistema político brasileiro, Temer continuar no poder ou o Congresso eleger o seu substituto, são possibilidades que gerariam uma grande revolta na população, com consequências para além de imprevisíveis. A única saída aceitável é a eleição direta, a qual pode vir a acontecer se houver a cassação da chapa e se o STF usar a ADIN ajuizada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, sobre a mini-reforma eleitoral para entender que o prazo mais curto do código eleitoral vale para a cassação.
Contudo, é fundamental não concebermos a eleição direta como panaceia para todos os males. Na situação atual de funcionamento disfuncional das instituições, é comum muitos crerem em soluções rápidas, definitivas e ilusórias. Foi assim que uma parcela considerável da população acreditou que a queda de Dilma resolveria a situação de crise que o país enfrenta. É assim que a proposta de eleição direta surge agora como meio para remediar todos os problemas. É preciso entender que, ainda que a eleição ocorra, haverá muita instabilidade política.
Vale lembrar que o favorito nas pesquisas é o Lula que é um político que segue uma prática conciliadora. Por causa dessa característica inerente à personalidade do ex-presidente, a eleição dele pode editar uma espécie de “pemedebismo 2.0”, em que as alianças e conchavos entre as elites que formam a classe política e o setor privado são reorganizadas para se adaptar a um país pós-Lava-Jato. Ou seja, a eleição de uma personalidade não-confrontacionista como a de Lula, pode criar o ecossistema político necessário para o sistema se reorganizar de modo a manter intacto o pacto conservador. Como de em tempos em tempos acontece, o país corre o risco de agora transforma-se para, paradoxalmente, continuar o mesmo.
Não custa recordar que durante o processo de redemocratização do Brasil, iniciado principalmente após a formulação da Constituição de 1988, constrói-se no país o sistema chamado de “presidencialismo de coalizão”. A expressão foi cunhada pelo cientista político Sérgio Abranches num artigo pulicado em 1988, antes mesmo da promulgação da Constituição. O cientista foi muito perspicaz em, naquele momento, perceber que estava se formando grandes e consistentes coalizões governativas político-partidárias e, principalmente, partidário-parlamentares, e que isso pelos próximos anos caracterizaria o sistema político-institucional brasileiro.
Abranches defendia a tese de que por meio desse agrupamento de partidos, a democracia brasileira estaria passando por um processo de consolidação. Esperava-se no final dos anos de 1980 que as coalizões gestassem no seio do sistema democrático uma tensão saudável e produtiva entre Executivo e Legislativo, o que pensavam que propiciaria uma experiência coletiva formadora de fusões, aquisições e negociações político-partidárias. Acreditava-se que tal processo resultaria na comunhão de forças a partir de um norte definido coletivamente.
Alguns estudos mais recentes demonstram que, na realidade, o que aconteceu foi uma limitação de nossa jovem democracia através de sua progressiva imobilização. Pois, na prática, as coalizões impossibilitaram a separação de poderes, permitiram que o sistema democrático herdasse da Ditadura o autoritarismo – nos moldes de um autoritarismo civil – e ampliou e cimentou o divórcio entre o sistema político e a população.
Paulatinamente, as coalizões foram se fundindo e, a partir de meados da década de 90, culminaram em duas grandes frentes que, para serem melhor compreendidas, acho que podem ser divididas como cabeça e corpo. De um lado, o corpo do sistema político: um grande agregado sem perfil definido formado por um conjunto de partidos fisiológicos para os quais a localização no espectro ideológico importa menos do que as alianças realizadas para aquisição de cargos no aparelho estatal, para aumentar o tempo de tv durante as campanhas eleitorais e pelo suborno puro e simples. Todos estão sempre dispostos a aderir a qualquer governo, desde que recebam em troca essas e outras regalias. Do outro lado, a cabeça formada por dois partidos, PT e PSDB, especializados em coordenar, a partir de um projeto de governo, esse grande bloco de apoio parlamentar. A busca por votos e cargos foi terceirizada por esses dois partidos para os demais e ambos se concentraram unicamente na tarefa de coordenação da megacoalizão. E o coordenador é definido a cada quatro anos por meio de eleições presidenciais.
Esse sistema opera por meio de grandes blocos de maneira a permitir o fim de entrechoques e conflitos abertos. Não significa que não houve conflitos. Significa que os conflitos foram evitados o máximo possível. Ao invés de abrir o caminho para que os entrechoques aconteçam e estabelecer um debate democrático que permita chegar coletivamente a um acordo, tudo foi jogado para dentro da mala do grande corpo. Consequentemente, no lugar desse processo democrático, tomam o espaço inúmeras articulações políticas para atender ao jogo de interesses. No fim das contas, praticamente permite às instituições somente movimentos hesitantes e ampliou o divórcio entre o sistema político e a população.
Ao longo dos governos de FHC, Lula e no primeiro mandato de Dilma, os entrechoques e conflitos abertos foram, assim, evitados entre o mandatário-mor (Executivo) e a sua base. Esse jogo paulatinamente se inverteu com os efeitos da Operação Lava-jato e os embates de Dilma com o campo político e financeiro.
Tendo em vista essas características que permeiam o nosso sistema político, suponho que apostar hoje nas velhas máquinas partidárias e em figuras carismáticas como a de Lula, me parece que terá a função única de abrir caminho para produzir uma nova figura do pemedebismo em um novo tipo de presidencialismo de coalizões. Entre outras consequências, isso aprofundará ainda mais o já preocupante divórcio entre sociedade e sistema político e permitirá que as contra-reformas implementadas por Temer não só se mantenham, como também continuem sendo implementadas.
Na mesma linha, mas de vetor trocado, existem outros candidatos apresentados como paladinos, como o atual prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), um pirotécnico maníaco que faz parte e representa as elites brasileiras – e que, se por acaso chegar ao alto escalão do Executivo, ampliará ainda mais os antagonismos sociais. Um outro aventureiro de plantão apontado como preferido é o Deputado Jair Bolsonaro (PSC), um político tão violento e desrespeitoso dos direitos humanos que uma publicação australiana o elegeu como o político mais abominável do mundo.
Diante de tudo isso, a saída imediata é a eleição geral, mas precisamos ir em luta por ela sem cair em ilusões de que esse mecanismo será a solução final e completa para a situação de crise em que estamos mergulhados até a cabeça.
Não podemos, portanto, cair no discurso das formas tradicionais de organização que simplesmente afirmam que não há alternativa à institucionalidade e que todo o impulso vital da base da sociedade deve ser canalizado para a eleição de figuras como a de Lula. As exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção, além de um descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, percorrem de alto à baixo a população brasileira. É esse anseio de mudança que devemos ouvir, ao invés de nos conformarmos com as opções apresentadas pelos “donos dos portões institucionais”.
*João Miranda é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa, foi colunista do Jornal da Manhã e colaborou para Pragmatismo Político.
Referência
1 – ABRANCHES, Sergio (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: Revista de Ciências Sociais, vol. 31, n. 1, Rio de Janeiro: IUPERJ, pp. 3-55.