Juristas

Moro, causador de todos os males?

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Sergio Moro (reprodução)

*João Miranda, Pragmatismo Político

Impossível não concordar que a conduta do juiz Sérgio Moro ao longo da operação Lava Jato é, no mínimo, questionável. Ninguém precisa conhecer muito Direito para perceber que o estado de coisas em Curitiba carrega problemas jurídicos graves. Práticas políticas questionáveis como toda a operação repressiva e espetacularizada envolvendo o depoimento do ex-presidente Lula quarta (10), assim como o vazamento seletivo de informações da Lava Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações, criam um clima ‘schmittiano’ de suspensão da lei, intensificado por uma relação promíscua entre Judiciário e ‘grande mídia’.

Até as pedras do calçamento viram as redes corporativas de notícias receberem da Lava Jato uma série de informações, delações, áudios vazados e, com todo esse aparato, cobrirem exaustivamente essa operação, explorando tudo em seus mínimos detalhes e, quase sempre, fazendo ilações, apostando em denúncias, até condenando moralmente os envolvidos nos esquemas de corrupção antes do julgamento.

Dessa maneira, além de o Judiciário investigar com atenção especial os crimes cometidos pelo PT, os esquemas protagonizados pelos petistas são superlativizados pelas lentes da grande mídia que, com a sua tradicional dramaticidade e forte tendencionismo, envolve em uma nuvem de fumaça e rouba o oxigênio do debate político. Com claros interesses eleitorais, dessa forma a mídia levanta bandeiras, superlativa os acontecimentos e vitamina os nervos da população contra o PT e suas figuras principais.

Mais recentemente, vimos Moro ferir gravemente os direitos de expressão e informação ao negar o pedido da defesa de Lula para fazer gravação em audiência, alegando que o acusado enseja transformar o interrogatório em um evento político-partidário. Outro ataque foi o fechamento temporário do Instituto Lula, ferindo de morte o direito de organização. Diante de todas essas atrocidades, a postura de Moro deixa evidente que suas ações não se tratam de apenas uma luta contra o crime. A cada dia fica mais explícito o ranço antipetista do juiz, algo muito comum no estrato superior da classe média, da qual ele foi recrutado e com a qual partilha dessa percepção negativa deste segmento com relação aos governos do PT e, com frequência, à política como um todo, assim como milhares de outros juízes, procuradores, desembargadores, defensores públicos, delegados, etc.

Em meio a alcateia de javalis que se transformou a operação Lava Jato, chega a ser engraçado ver a inquietação de Moro em atacar o PT e, ao mesmo tempo, compensar as atitudes rigorosas tomadas diante dos petistas com o prosseguimento do processo contra toda casta política, inclusive o PMDB e PSDB.

Ainda que haja todos esses graves problemas e seria nonsense minimizar e relativizar os seus efeitos, não são para mim suficientes para sustentar a defesa irrestrita ao ex-presidente Lula perpetrada por parte da esquerda, especialmente a ex-governista; defesa essa que, com frequência, se trasveste em santificação. Essa estratégia personalista é antiga na política brasileira, através da qual buscam mediar crises elegendo figuras tratadas como emblemas de época a quem todos devem seguir e adorar. Qualquer um que ouse não corroborar com essa adoração, é tratado como um inimigo a ser combatido. Assim, ao invés de implementarem medidas mais ambiciosas que construam de baixo para cima uma resposta a essa situação de crise, elegem Lula como o paladino a ser defendido e adorado, com quem devemos contar para salvar o país das garras dos herdeiros da colonização. E procuram justificar a opção gritando aos quatro cantos os resultados das pesquisas que apontam o ex-presidente com forte capital eleitoral, apesar de todas as acusações que recaem em seus ombros.

Compreendo perfeitamente essa relação que estabelecem com a figura do ex-presidente. Afinal, a eleição dele em 2002 significou o alçamento do povo ao poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estávamos todos representados na figura carismática de Lula e com ele subimos a rampa do Palácio em sua posse em 2003. E para mim é, de longe, desonestidade intelectual negar tudo o que os governos petistas fizeram pelo povo brasileiro. E falo isso partindo de minha própria experiência, por ter sido um dos milhões de beneficiados por suas políticas distributivas. Mas também não posso deixar de lado que tais políticas sociais não apontam para a universalização, pois não constituíram a institucionalização mais definitiva de novos direitos. Ainda que tenha sido um grande passo em direção à superação dos antagonismos sociais, foram focalizadas, temporárias e de governo. Como disse o cientista político André Singer, Lula promoveu a “redução da pobreza e da desigualdade, mas sob a égide de um reformismo fraco”[i].

Para implementar as suas transformações dando aos pobres sem tirar dos ricos, Lula fez como FHC: optou por obter a adesão fisiológica das correntes e personalidades e, aliado a esse grande bloco de apoio parlamentar, implementou o seu reformismo fraco. Quanto mais esse processo se fixa, mais a identidade do PT foi corroída e mais da esquerda se afasta. Diante disso, vimos parte da esquerda se afastar dele (o que mais tarde resultaria na formação de outros partidos à esquerda do PT). Se afastam porque a esquerda, para fazer as mudanças que quer fazer, tem que ameaçar a ordem, o status quo, a estrutura, etc. Lula não faz isso. Enquanto essa esquerda se afasta desse partido que era anti-sistema e, paulatinamente, vai se tornando legitimador do sistema, setores da população em grande vulnerabilidade social vão ao longo do seu primeiro mandato aderindo em massa, já que essas camadas mais pobres são tradicionalmente apegadas à ordem e foram beneficiadas pelos programas sociais lulistas que não ameaçam essa estrutura.

Acho que não podemos mais nos contentar com isso e ir além, tendo clareza de que a crise é estrutural e a saída dela vai exigir tempo e muito esforço para rearranjar as instituições em um sentido novo e positivo. Para isso, creio que vai ser preciso transcender divergências ideológicas para além da esquerda e da direita, sem apelar para pretensas soluções mágicas como a eleição de Lula em 2018.

Além disso, não podemos cair em especulações que tratam a conduta (no mínimo irresponsável, ressalto) de Moro como as sementes para a origem no país de um ‘estado de exceção’, ou, ainda, um ‘estado policial’. Essa situação oposta ao Estado de direito percorre secularmente a história do país e hoje se mantém claramente visível nas periferias das cidades, para as quais o Estado comumente só envia a PM. Afirmar coisas como ‘agora vivemos num estado de exceção’, me parece, assim, uma atitude equivocada por estar ignorando as atrocidades que já ocorriam anteriormente.

Não estou relativizando o ataque, por parte de Sérgio Moro, aos direitos históricos e arduamente conquistados. Concordo que não podemos colocar em pé de igualdade a estrutura desigual que historicamente permeia o sistema judiciário e o que vem ocorrendo mais recentemente na primeira instância de Curitiba. Estamos presenciando uma intensificação da agressão efetiva por essas forças do aparato estatal, num movimento de repressão estatal que não se limita mais aos muros invisíveis das periferias e ao ataque a negros e/ou pobres, transcendendo-os em direção ao centro e pegando de surpresa muitos — mas não todos, ressalto — integrantes das classes médias para as quais ‘estado de exceção’ sempre significou um exercício de retórica feito nas aulas de história e sociologia.

Por fim e mais importante, não corroboro com afirmações que apontam Moro e seu ‘quartel’ sediado em Curitiba como uma espécie de epicentro da crise política que o país enfrenta. É preciso entender que a devastação da Lava Jato, e também o estelionato eleitoral de 2014 e a gravidade da recessão, introduziram os elementos que faltavam para produzir uma instabilidade estrutural que já vinha se formando anteriormente, como uma grande onda que cresce com a agremiação de uma série de pequenas ondas.

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Por tudo isso, se faz necessário um exercício de memória para transcendermos interpretações apressadas realizadas sob o impacto de circunstâncias acaloradas, de modo a evitar erros como o de taxar Moro como representante-mor dos descaminhos do Judiciário e como causador de todos os males que hoje permeiam o nosso cotidiano. Creio que problemas graves percorrem o Poder Judiciário, assim como todo o sistema político-institucional brasileiro, há muito mais tempo e esse juiz é só parte de um sistema injusto que age (conscientemente ou não) de acordo com interesses espúrios de manter intacto o pacto conservador.

Dito isso, ressalto ser fundamental continuarmos criticando a conduta incabível de Moro. Contudo, não podemos deixar de pesar nas balanças das análises que o diagrama de forças é mais complexo e está muito além desse juiz paranaense.

*João Miranda é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa e colaborou para Pragmatismo Político.

Notas:
[i] SINGER, André. Os impasses do lulismo. Brasil de Fato, 2013.
[ii] AVELAR, Idelber. Ascensión y caída del lulismo. Dossiê: Mientras La Antorcha Olímpica: los primeiros 100 días del Golpe en Brasil. Revista Transas: Letras y Artes de América Latina. 2016. Disponível em: < http://www.revistatransas.com/2016/09/15/ascension-y-caida-del-lulismo/>. Acesso em: 15/01/2017.