1,5 mil pessoas viviam na Cracolândia da Alemanha. Tudo começou a mudar após uma guinada nas políticas públicas para lidar com dependentes
Nos anos 1980 e 1990, 1,5 mil pessoas viviam perto da estação ferroviária de Frankfurt, no maior ponto de uso de drogas a céu aberto do país. Mas uma guinada nas políticas para lidar com dependentes mudou a situação.
No final da década de 1980, o maior ponto de uso de drogas a céu aberto da Alemanha ficava em Frankfurt: na região do parque de Taunusanlage, próximo à estação ferroviária central, viviam cerca de 1,5 mil dependentes de heroína, numa espécie de “Cracolândia” alemã.
Além de ser um problema social, Taunusanlage era uma questão de saúde pública: cerca de 150 dependentes morriam de overdose a cada ano. Atualmente, mais de 25 anos depois, a “Cracolândia” alemã faz parte do passado da cidade.
A extinção do ponto de uso de drogas foi alcançada graças a uma iniciativa que ficou conhecida como o “Caminho de Frankfurt” e serviu de exemplo para diversas cidades do país que enfrentavam problema semelhante.
“A mudança na política de drogas não ocorreu pela convicção nas opções que se tornavam populares, como terapias de substituição, mas pela necessidade de que algo novo precisava ser feito, já que o tradicional não estava funcionando“, avalia Dirk Schäffer, assessor para drogas e sistema penal da organização de combate à aids Deutsche Aids-Hilfe (DAH).
No início da década de 1990, conta Schäffer, a situação era dramática em várias cidades da Alemanha, com alta taxa de mortalidade decorrente do uso de drogas e grandes concentrações de usuários em locais públicos. A isso, somava-se o advento da aids e o medo de que o vírus se espalhasse para além dos grupos de risco.
Diante da situação em Taunusanlage, Frankfurt iniciou em 1988 uma série de encontros mensais em busca de uma solução para o problema da heroína na cidade. Deles participavam não somente políticos e policiais, mas também representantes de organizações de ajuda a dependentes químicos e comerciantes locais.
A principal revolução da política adotada foi a percepção do vício como uma doença, possibilitando a descriminalização do dependente. Essa mudança gerou impactos em ações policiais, direcionadas a combater o tráfico e não mais o usuário, e em medidas de saúde pública, concentradas em oferecer alternativas – não somente de moradia, mas também locais de consumo e possibilidades de tratamento – para tirar das ruas dependentes químicos.
Alternativas para dependentes
Entre as estratégias adotadas em Frankfurt estava o oferecimento amplo de terapias de substituição e a criação de salas supervisionadas para o consumo de drogas.
As terapias de substituição para usuários de heroína começaram a ser aplicadas na Alemanha no final dos anos 1980. Nela, a heroína é substituída por opioides, como a metadona, com quantidade estipulada e o uso monitorado por um médico. A abstinência não é necessariamente uma das metas visadas nesse tipo de tratamento, mas sim o controle do vício.
“Ao substituir heroína por opioides, o objetivo das terapias de substituição é melhorar as condições de saúde física e mental de dependentes e possibilitar sua reintegração social. Nesse sentido, essas terapias são as mais bem-sucedidas nos tratamentos de dependentes químicos“, afirma Uwe Verthein, do Centro Interdisciplinar para Pesquisa sobre Dependência da Universidade de Hamburgo.
Apesar do sucesso, esse tratamento só é possível para dependentes de opiáceos, como a heroína. Ainda não há terapias semelhantes para outras drogas, como o crack. Primeiros experimentos para a substituição da cocaína estão sendo feitos na Holanda, mas Verthein destaca que essa pesquisa ainda está bem no início.
Atualmente, a terapia de substituição faz parte da política federal de drogas na Alemanha. O país oferece esse tratamento para cerca de 77 mil dependentes químicos.
Além desta terapia, o Caminho de Frankfurt abriu também as portas para as salas supervisionadas para o uso de drogas na Alemanha. Em 1994, a cidade, quase ao mesmo tempo que Hamburgo, abriu o primeiro estabelecimento deste tipo. No local, dependentes têm acesso a seringas e todo material esterilizado para o uso da substância e recebem acompanhamento médico em casos de overdose.
O espaço possibilita ainda que assistentes sociais façam contato com dependentes e possam apresentar a eles opções de tratamento para o vício. Além disso, as salas contribuíram para tirar das ruas a grande massa de usuários que se concentravam em parques e próximos a estações de trem e reduzir infecções causadas pela reutilização de seringas infectadas.
A iniciativa foi seguida por outras cidades, como Berlim. Mesmo sem uma base legal, essas salas eram toleradas pelas autoridades. Somente em 2000, o governo federal legalizou estes espaços. Atualmente, há 24 salas supervisionadas para o consumo de droga, distribuídas em 15 cidades da Alemanha. Em Frankfurt, há quatro, por onde passam anualmente cerca de 4,5 mil dependentes por ano. Em Berlim, são duas salas e uma estação móvel, que recebem anualmente aproximadamente 1,2 mil usuários.
Ações policiais em paralelo também foram importantes para a desocupação de Taunusanlage. Porém, elas ocorreram apenas depois da disponibilização de locais para o uso de droga e abrigos, e eram voltadas a informar os dependentes sobre essas alternativas. Assistentes sociais também foram engajados para o trabalho de informação.
“Os dependentes não foram simplesmente expulsos, o que os espalharia pela cidade, criando outros pontos de uso de drogas“, destaca o sociólogo Martin Schmid, da Universidade de Ciências Aplicadas de Koblenz.
Exemplo para outros países?
Apesar de o problema da concentração de usuários em espaços públicos na Alemanha na década de 1980 estar relacionado à heroína, cuja possibilidade de terapia é diferente de outras drogas, inclusive do crack, especialistas afirmam que a percepção do vício com uma doença é um aspecto da política alemã que pode servir de exemplo para outros países.
“Ver o dependente como doente ajuda bastante a solucionar o problema das drogas, pois possibilita o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para o apoio ao usuário. Simplesmente prendê-los ou interná-los à força não contribui para resolver essa situação“, afirma Peter Raiser, do Escritório Central Alemão para Questões sobre Vício (DHS).
Schmid acrescenta que a abordagem da inclusão e da descriminalização do dependente pode ser a base, assim como foi na Alemanha, para países desenvolverem suas políticas de drogas de acordo com suas especificidades.
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