Cultura

Belchior: perfil e anotações de um cidadão fora do comum

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A história de Antonio Carlos Belchior é a história de uma criança, saudável e feliz, que cresceu ouvindo música em casa e nas ruas cantadores repentistas. É a história de uma criança que apaixonou-se pela cultura do povo e para o povo cantou a vida toda

Vitor Nuzzi, RBA

Aí um analista amigo meu/ Disse que desse jeito não vou viver satisfeito” são alguns dos versos da Divina Comédia Humana, de Belchior. Esse analista existe, entrou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará junto com o futuro compositor – que trocaria o curso pelo de Filosofia – e foi localizado pelo jornalista Jotabê Medeiros, que prepara uma biografia a ser lançada no segundo semestre.

Reticente, o analista amigo dele acabou concordando em conversar, no horário de uma sessão, um dia depois do sepultamento de Belchior, que ocorreu na manhã de 2 de maio, em Fortaleza. Dois dias antes, o músico havia sido encontrado morto na pequena Santa Cruz do Sul (RS, 130 mil habitantes), última parada de um desaparecimento de anos.

A história de Antonio Carlos Belchior é a história de uma criança, saudável e feliz, que cresceu ouvindo música em casa e nas ruas cantadores repentistas. É a história de uma criança que apaixonou-se pela cultura do povo e para o povo cantou a vida toda“, escreveu em seu blog o jornalista paraibano Assis Ângelo, que várias vezes recebeu o artista em sua casa, já em São Paulo, servindo bons pratos de bacalhau. Assis desembarcou em terras paulistanas praticamente ao mesmo tempo em que Belchior começava a experimentar o sucesso, com o disco Alucinação (1976), depois que Elis Regina lançou Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, as duas primeiras faixas do disco Falso Brilhante, do mesmo ano.

Veloso, o sol não é tão bonito
Pra quem vem do Norte e vai viver na rua
(Fotografia 3 x 4)
Mas trago de cabeça um canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso
(Apenas um Rapaz Latino-americano)

Suas canções não são das que morrem. Ele prefigurou os anos 80 em termos globais e se instalou na memória profunda da história da criação de música popular no Brasil“, escreveu Caetano Veloso em artigo no jornal O Estado de S. Paulo. Caetano e os tropicalistas em geral foram implícita ou explicitamente citados em composições de Belchior, e o baiano, em seu texto-tributo, comentou as referências. “Todas as citações a canções nossas que estavam em trechos de canções de Belchior me agradavam por estarem dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante.”

Leia também: O Belchior que a crítica vulgar não viu

Caetano também interpretou na chegada do chamado Pessoal do Ceará (Belchior, Fagner, Ednardo e outros), no início dos anos 1970, a intenção de “exibir confronto com os tropicalistas“. “Sugeriam que nós, os baianos, já representávamos o estabelecido, o velho, enquanto eles seriam o novo e a verdadeira rebeldia. (…) No estilo de Belchior, soava justo“, comentou Caetano, lembrando que o Tropicalismo se opôs à Bossa Nova ainda que “louvando” João Gilberto, Tom Jobim e Carlos Lyra. E que a Bossa Nova se opôs à “velha”, mas louvando Dorival Caymmi, Ary Barroso e Bide&Marçal (dupla de compositores cariocas). “O pessoal do Ceará queria opor-se mesmo. Não chegava a isso e a recusa à louvação teria ficado vazia não fosse o talento e a personalidade de Belchior.”

Caetano contou ter encontrado Belchior pela última vez pouco antes do desaparecimento do artista. “Ele me procurou e conversamos bastante. Me trouxe de presente dois retratos de Drummond desenhados por ele, muito sugestivos e profundamente sentidos.”

Agora ficou fácil
Todo mundo compreende
Aquele toque Beatle
I wanna hold your hand
(Medo de Avião)
João, o tempo
Andou mexendo com a gente, sim
John, eu não esqueço
Oh no, oh no, oh no
A felicidade é uma arma
Quente, quente, quente
(Comentários a respeito de John)

A presença constante de referências – musicais e literárias, basicamente – no cancioneiro de Belchior chamou a atenção também do mundo acadêmico. Foi tema, por exemplo, de tese de mestrado, em 2007, na Universidade Federal do Ceará (Muito além de um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior), apresentada pela professora e radialista Josely Teixeira Carlos. Ela também é autora de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2014: Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior.

A pesquisadora lembra do início da relação entre Belchior e os Beatles, sempre lembrados em canções. Em entrevista de 1990, o compositor conta que, assim que saiu do mosteiro, viu em uma banca de jornal um texto criticando o grupo inglês, pelo aspecto “sujo e repugnante” das roupas e dos cabelos. Em seguida, ouviu no rádio Love me Do e outras canções.

O que chamou inicialmente a atenção de Belchior foi o fato de que aquelas músicas teriam um viés religioso, como “Eleanor Rigby” do LP Revolver de 1966, que tem arranjos exclusivamente de cordas e à moda gregoriana; uma música muito próxima àquela com a qual o futuro artista estava habituado na Igreja. Então, a experiência do seminário serviu como ponte para o ingresso na música. Como Belchior na época não sabia inglês, o que chamou a sua atenção inicialmente foram as músicas traduzidas; mas também o comoveram as canções originais em inglês, dentre as quais Belchior lembra “Penny Lane“. Logo depois dessa experiência, Belchior conta que comprou um violão e já começou a tocar.

Belchior foi frei Francisco Antônio de Sobral no mosteiro dos capuchinhos em Guaramiranga, região serrana do Ceará

Belchior foi o frei Francisco Antônio de Sobral no mosteiro dos capuchinhos em Guaramiranga, na região serrana do Ceará, conforme conta Jotabê Medeiros no início de sua ainda inédita biografia, que teve um trecho publicado na revista Piauí. Entrou lá em fevereiro de 1964, pouco antes do golpe. Uma das pérolas escavadas pelo escritor mostra um grupo de capuchinhos, entre eles Belchior, 17 anos, recebendo o primeiro presidente do ciclo militar, marechal Castelo Branco.

A bagagem que trouxe, em uma mala de mascate, era mínima como a dos demais noviços: dois lençóis, duas toalhas e três mudas de roupa, além de escova, pasta, saboneteira e sabonete. Espelho, pente e qualquer perfume eram proibidos. Uma hora após adentrar o mosteiro, seu cabelo foi raspado e o noviço foi enfiado num hábito rude, que a ele pareceu subitamente confortável. (…)

Logo descobririam: aquele jovem de Sobral trazia outras coisas para Guaramiranga além da bagagem exígua. Era capaz de improvisar repentes e emboladas durante até duas horas, para alegria de sua turma. A escolha do nome Sobral foi de um bairrismo orgulhoso, mas essa seria uma das raras concessões de Antonio à cidade natal ao longo de toda a vida.

Além de bem-humorado, Frei Sobral era atento, disciplinado, fraterno e cortês. Recitava capítulos inteiros da Regra de Vida (espécie de Constituição dos capuchinhos), todo o Testamento de São Francisco, longas passagens de Os Lusíadas, de Camões. Mostrava controlada tendência para o rigorismo (as penitências e os jejuns impostos pela ordem). Encarava o cilício quase com indiferença.

Um dos mais de 100 entrevistados por Jotabê para o livro, Hermínio Bezerra, lembra de alguns motes de improvisações feitas por Belchior, o que sugere que uma de suas principais canções, Galos, Noites e Quintais, tenha sido gestada ainda no convento. A música só foi gravada em 1977, no LP Coração Selvagem.

Jotabê Medeiros considera Belchior o artista mais outsider, mais “fora dos trilhos” que já apareceu no Brasil. “Ele nunca integrou nenhum tipo de panelinha. A produção dele era interiorizada, ele tinha uma atitude de filósofo”, diz o biógrafo, que define o compositor como “cavaleiro solitário”.

O jornalista havia conseguido a pista do paradeiro de Belchior, em Santa Cruz do Sul, mas não teve tempo de ir procurá-lo. Se, por um lado, a morte do compositor põe um ponto final na história (“Antes, era um livro aberto, existiam milhares de possibilidades”), por outro facilitou o acesso a fontes. “Por lealdade e até por laços de amizade, as pessoas falavam com restrições. Era mais difícil o acesso a certos personagens. Consegui personagens novos, que vão enriquecer o livro. Foi como se o livro abrisse de novo.”

O sumiço de Belchior parece ter galvanizado a idolatria em torno do artista. Jotabê observa que não é possível medir o quanto isso alimentou a chama, mas lembra que a maior parte dos seguidores mais fiéis é bastante jovem, como uma tatuadora de 25 anos que sabe tudo sobre o compositor. “A música dele também veio à tona para muita gente que não conhecia“, diz, o jornalista, para quem isso só demonstra a “profundidade e solidez” da obra, ainda mais considerando que o último disco de inéditas, o independente Bahiuno, é de 1993, e ele não tocava ou fazia shows havia pelo menos 11 anos. “Que tipo de artista permaneceria tão forte?

Hora do Almoço, homenagem a Belchior em fevereiro de 2016

Rick Ferreira, guitarrista, participou de gravações de cinco LPs de Belchior – Alucinação, Coração Selvagem, Todos os Sentidos, Era uma vez o homem e seu tempo (que ele chama de Medo de Avião, como a obra também ficou conhecida) e Objeto Direto –, de 1976 a 1980. “Posso dizer que os dois melhores artistas (com quem trabalhou), em termos de alto-astral, foram o Raul (Seixas) e o Belchior. Era um cara extremamente educado, sabia como pedir as coisas. Na parte musical, o Raul até dava mais pitaco. O Belchior comprava mais as ideias“, lembra.

Ele considera “inevitável” a comparação com Bob Dylan, tanto pelo tamanho (das letras) como pela parte musical. “Vejo ele como um músico folk“, diz Rick, que considera Medo de Avião o melhor trabalho de Belchior. “Foi um disco que eu deitei e rolei, com um pezinho na country music mesmo“, conta o músico, que tocou banjo e steel guitar, um instrumento que ele introduziu no Brasil.

O guitarrista lembra de um show em 2005, em Divinópolis (MG), baseado no álbum Baú do Raul, em que Belchior cantou Maluco Beleza e As Minas do Rei Salomão. “Embora sejam estilos diferentes – para os fãs, obviamente, o Raul tem um apelo inigualável, é um fenômeno“, diz Rick, referindo-se a Belchior. Para ele, os três grandes letristas brasileiros são, nessa ordem, Raul Seixas, Belchior e Zé Ramalho.

O músico levou um susto quando, durante a gravação de Objeto Direto (1980), recebeu uma letra de Belchior para pôr melodia. “Nunca fui de compor muito. Peguei essa letra e nada de fazer uma música, nada que eu gostasse, até que lembrei de uma música que eu fiz com uns 17 anos“, lembra Rick. A parceria, de 1981, com roupagem bem country, chama-se Meu Nome é Cem, inédita em discos.

Meu nome é legião
Não sou só um
Sou um cidadão comum
Meu nome é cem
(…)
O amigo que saiu pra ver a lua
Jaz anônimo na rua
(…)
A lei dos homens nos obriga
A ser normal
E como vivo comovido
Dizem que sou um bandido marginal

Jotabê estima em pelo menos 600 as composições de Belchior, muitas inéditas. Só Jorge Mello, um de seus parceiros mais constantes, tem pelo menos uma dezena. Dias depois da morte do artista, em um tributo realizado em Fortaleza durante o festival Maloca Dragão, o ator, diretor e dramaturgo Ricardo Guilherme declamou uma dessas inéditas, Madalena, feita para a peça O Morro do Ouro. Com 14 anos, Ricardo trabalhou com Belchior no programa Porque Hoje é Sábado, da TV Ceará. “Ele era de uma geração que tinha o sonho de liberdade e de democracia. O seu desejo de transgressão e superação é permanente. Sua obra fala sobre o rejuvenescimento permanente que o sonho deve ter“, declarou ao jornal cearense O Povo.

Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o professor da Federal de Pelotas César Augusto Ferrari Martinez falou sobre sua convivência com Belchior já durante o período de “sumiço” do artista para o grande público. Conheceram-se no final de 2012, quando Martinez ofereceu abrigo ao artista e sua companheira, Edna, com direito a “blindagem” contra jornalistas.

Ele me chamava de Professor. Eu lhe dizia Mestre. Ele arrumava meus livros, eu lhe contava meus planos. Nós compartíamos vinhos. Ele caligrafava, tocava, sorria. Fazia tudo, menos cantar. Não cantava mais.”

Não cantava, mas dedilhou Galos, Noites e Quintais, aquela mesma concebida nos tempos de mosteiro.

Talvez o último registro conhecido de Belchior cantando tenha sido feito em 7 de setembro de 2011, no Centro Cultural do Consulado do Brasil em Artigas, no Uruguai, como parte de um projeto chamado Ondas Sonoras – Primeiro Movimento, que não foi adiante. Mas ali o artista canta, entre outras canções, Velha Roupa Colorida, acompanhado ao piano por João Tavares Filho, que conheceu o compositor cearense naquele ano, após um concerto em Quaraí (RS), terra natal do músico, que hoje mora em Roma. “Muito me marcou a sabedoria, cultura e simplicidade desse grande artista que hoje partiu“, escreveu João no dia da morte de Belchior, em 30 de abril, aos 70 anos.

Em várias etapas da vida, o artista fala na tradução de A Divina Comédia Humana, de Dante Alighieri, um projeto no qual parecia permanentemente empenhado. Até ao mosteiro dos capuchinhos ele retornou, contando sobre seu trabalho. Em 30 de abril, o jornalista Thales de Menezes, em texto na Folha de S.Paulo, recordou uma entrevista feita com Belchior em 1987, em que ele contava sobre sua proposta de criar 3 mil desenhos inspirados na obra épica, escrita no século 14. “Uma paixão quase juvenil foi tomando conta de seu discurso. Dante era, sem dúvida, a maior influência comportamental, filosófica e artística assumida por Belchior.”

Tenho a impressão de que ele pode ter feito anotações, mas era um trabalho para não concluir“, comenta Jotabê Medeiros, sobre A Divina Comédia.

Se concluísse, talvez perdesse o sentido.

Ora, direis,
Ouvir estrelas,
Certo perdeste o senso
Eu vos direi, no entanto
Enquanto houver espaço, corpo e tempo
E algum modo de dizer não
Eu canto

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