Esquerda

Caso ‘Miriam Leitão’ revela que a esquerda brasileira é a mais pacífica do mundo

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Neurose de bom mocismo: a esquerda brasileira é, seguramente, a esquerda mais pacífica e bem comportada do mundo. As reações às acusações de Miriam Leitão mostram, inclusive, que ela é, em verdade, um tanto paranoica em relação a isso

Miriam Leitão

Os dois textos abaixo abordam o ‘bom mocismo’ da esquerda brasileira com base na denúncia da jornalista Miriam Leitão, da Globo, que alegou ter sido agredida por ‘militantes petistas’ recentemente em voo da Avianca (saiba mais aqui).

O primeiro texto é do cientista político Luis Felipe Miguel, publicado em seu Facebook. O segundo, do jornalista Miguel do Rosário, editor d’O Cafezinho.

BOM-MOCISMO É A MARCA DE UMA ESQUERDA QUE TEM MEDO DO EMBATE POLÍTICO
Luis Felipe Miguel

Eu não queria mais falar do affair Miriam Leitão, mas há algo que está incomodando demais. É a epifania que o episódio gerou em alguns, a visão de que há uma “selvageria” que a esquerda precisa a todo custo extirpar. Com argumentos delirantes e um bom-mocismo de gelar os ossos.

Primeiro, muita gente ignora um fato central: a tal agressão provavelmente nunca existiu. Há as incongruências do relato dela, há o timing estranhíssimo, há os depoimentos, vários, que a contradizem. Daí eu leio gente dizendo que não se pode duvidar da vítima. Isso, me perdoem, é uma demência. Há uma falha lógica. Se não houve agressão, não há vítima, então não há porque deixar de duvidar…

A regra de aceitar a denúncia da vítima como ponto de partida nasceu no contexto do descaso generalizado das polícias diante de casos de violência sexual. É uma regra muitíssimo razoável. Mas não implica negar a possibilidade de denúncia falsa, muito menos estabelecer um dogma de que qualquer pessoa que acuse outras de uma violência sempre merecerá crédito irrestrito e a despeito de quaisquer evidências contrárias.

Parece que o que sobra são algumas cantorias esparsas contra a Rede Globo em momentos isolados do voo, algo pouco educado, talvez, mas que nem de longe justifica tamanho auê. Muito menos que se compare com linchamento, amarrar em poste etc. É o tipo de discurso que evoca um clássico da minha infância, sempre útil para encerrar a discussão: apelou, perdeu.

Caso a agressão tivesse se desenrolado de fato da maneira como Leitão a narra, caberia discutir a gravidade dela. Eu, pessoalmente, acho que o escracho é algo sério, que deveria ser reservado para circunstâncias igualmente sérias. Acho, sobretudo, que é necessário pesar seu resultado líquido: escrachar um torturador tem certamente um resultado diferente de escrachar uma jornalista reacionária. O torturador é desnudado; a jornalista pode posar de mártir da liberdade de expressão. Portanto, o escracho no avião teria sido provavelmente uma besteira, um exercício mal direcionado de agressividade, uma catarse politicamente mal calculada. Mas está longe de ser um crime de lesa-humanidade.

Li também gente dizendo que não se podia escrachar Leitão porque ela é reacionária mas “sempre defendeu os direitos humanos”. Com que conceito de “direitos humanos” se está trabalhando, em que a proteção ao trabalhador e a garantia da velhice digna, por exemplo, não entram?

O meu incômodo, afinal, está nisso. Tanta indignação porque, aparentemente, está faltando finesse do nosso lado. Enquanto isso, a opressão cotidiana das maiorias continua normalizada. Antes que saquem a carta de gênero, não custa lembrar que, com o retrocesso nos direitos, as mulheres trabalhadoras são as primeiras vítimas do golpe que Leitão contribuiu, no limite das suas forças, para produzir. Então vamos pensar no tamanho da violência sofrida, entre a jornalista da Globo no avião e a operária, a balconista ou a camponesa, e calibrar nossa indignação de acordo.

Esse bom-mocismo é a marca de uma esquerda que tem medo do embate político, que vê o conflito social como diletantismo, que está focada na admiração de suas próprias qualidades.

Minha linha divisória não está nas boas maneiras; é quem quer a democracia e a garantia dos direitos contra quem não quer. Do lado de cá, tem gente rude, tem gente que perde a cabeça, tem gente que xinga, tem gente com uma visão política que acho limitada. Discordo, muitas vezes, às vezes posso até me exasperar, mas discordo estando do mesmo lado.

O caso de Míriam Leitão, mesmo que fosse verdade, estaria longe de justificar tamanha revolta moral. Afinal, estamos falando de política, do futuro de milhões de pessoas de carne e osso e do envolvimento muitas vezes apaixonado com causas e ideais. E no Brasil. Não estamos falando de um baile a fantasia em alguma Noruega mítica.

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UM PEDIDO DE DESCULPAS
Miguel do Rosário

Eu quero pedir desculpas aos petistas presentes ao voo de Miriam Leitão. Provavelmente não disseram nada demais à jornalista e foram vítimas de uma campanha de difamação sórdida, que contaminou até mesmo jornalistas de esquerda, como este que vos fala.

O meu post em defesa de Miriam Leitão, conforme os que o leram na íntegra, traz inúmeras ressalvas ao possível exagero ou distorção do relato por parte da jornalista. Mas isso não foi suficiente, porque as ressalvas deveriam ter vindo no início do artigo, como premissa a todo o raciocínio.

Eu o escrevi, porém, com base numa preocupação. Independente de sua veracidade, ele representava um risco que eu precisava afastar imediatamente, que era atrair violência fascista contra o campo popular.

Miriam Leitão foi irresponsável, como de praxe. O que temos testemunhado, nos últimos anos, não são violências de “petistas” contra jornalistas, e sim de fascistas contra petistas e pessoas de esquerda em geral. E não são apupos politizados e quase delicados, como os que enfrentou Miriam Leitão durante o voo da Avianca, mas ofensas pesadíssimas, ameaças de morte, law fare, espancamentos, invasões e depredações de sindicatos e sedes de partido. Recentemente, essas violências evoluíram para crimes contra a vida de alguns companheiros do MST.

O texto de Leitão ignora tudo isso e, por isso, não só é profundamente desonesto, como é cúmplice dessas brutalidades, porque, ao pintar a si mesma, uma jornalista protegida por todos os poderosos do momento, como vítima, ela aumenta os riscos vividos por todas as pessoas que hoje, essas sim, vivem uma situação de extrema vulnerabilidade.

A suposta ironia que ela encontra no fato de ser chamada de “terrorista” por um dos petistas (e tenho certeza de que, se houve essa acusação, é obviamente no contexto de suas análises constantemente alarmistas, quando a economia ia bem, em contraste a seu ridículo chapa-branquismo no momento em que as coisas vão mal, sempre a depender do interesse político de seus patrões) existe, na verdade, como alguém lembrou, por ela trabalhar, hoje, na mesma empresa que sustentou a ditadura que a levou à cadeia.

Reitero, portanto: presto minha total solidariedade aos petistas, não apenas aos do voo de Miriam Leitão, como aos de todo país, difamados dia e noite pelo campo político do qual Miriam Leitão é uma das mercenárias mais bem pagas.

A esquerda brasileira é, seguramente, a esquerda mais pacífica, bem comportada e educada do mundo. A reação às acusações de Miriam Leitão mostram, inclusive, que ela é, em verdade, um tanto paranoica em relação a isso. A esquerda quer ser educada demais, bem comportada demais, pacífica demais.

A esquerda brasileira – ou pelo menos a sua suposta vanguarda política ou intelectual – tem neurose de bom mocismo.

Mea culpa, mea culpa, mea culpa.

Mas seria injusto, da mesma forma, exagerarmos esse defeito, até porque ele nasce, em verdade, de uma virtude, ou melhor, de um instinto, como eu já disse lá em cima: a preocupação de não estimular um clima de violência política que explode sempre no lado do campo popular.

As particularidades da nossa história política, e os fatos recentes confirmam isso de maneira trágica, nos tornaram uma esquerda extremamente cuidadosa contra o risco de ser descrita como truculenta, e, mediante esse artifício, ser exposta às truculências dos detentores do monopólio da violência.

No Brasil, o sistema de violência estatal se volta, sempre, contra aqueles que a mídia aponta como os “inimigos”: pobres, pretos, sindicalistas, membros de movimentos sociais, simpatizantes de partidos de esquerda, manifestantes contra o status quo.

Se você é um manifestante amigo da mídia, você estará para sempre protegido. Polícia, juízes, mídia, são todos seus amigos e protetores.

Se você não é amigo da mídia, cuidado!

A esquerda brasileira vive um ambiente tremendamente hostil do ponto-de-vista narrativo, porque sofre com uma das mídias mais violentas, fascistas e corruptas do planeta. De maneira que uma simples, educada e necessária manifestação política contra o monopólio da mídia, num vôo com a presença de uma jornalista da Globo, pode ser facilmente transformada em terrível violência verbal de bolcheviques enfurecidos, arrastando até mesmo experientes blogueiros e jornalistas de esquerda.

O caso Miriam Leitão é apenas mais um exemplo de que a grande mídia brasileira é o núcleo do golpe. É dela que partem, sistematicamente, os ataques mais canalhas.

A mídia brasileira não é vítima de nada. Ela é o verdugo mais cruel, brutal e impiedoso do povo brasileiro. O golpe – com todos os seus diabólicos desdobramentos jurídicos, políticos, econômicos e sociais – prova isso.

O principal esforço do campo popular deve ser remover a aura de “invisibilidade” da mídia. Ela deve ser mostrada como o principal partido político a ser combatido, e, portanto, os militantes petistas no voo de Miriam Leitão estavam ao lado da razão histórica.

Entretanto, pelos riscos e complexidades do tema, deve-se tomar sempre o cuidado de gravar qualquer manifestação contra a mídia.

Os petistas cometeram o erro básico de gravarem apenas vinte segundos de vídeo. Toda a manifestação deveria ter sido gravada. Miriam Leitão apenas esperou dez dias para se manifestar e só teve a coragem de fazê-lo, porque entendeu que, depois desse tempo todo sem publicar nenhum vídeo, os petistas não tinham registro do momento.

Essa é a principal lição desse episódio: gravem sempre, gravem tudo!

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