A luta de uma mãe para curar o filho de uma das doenças mais raras do mundo
"Mamãe, vão me picar hoje? Por que eu vou tanto ao hospital e as crianças da minha turma não?". Dent: A doença que, de tão rara, obriga uma mãe a buscar sozinha os recursos para a cura
“Mamãe, vão me picar hoje?“. “Sim“, responde Eva Giménez sem hesitar. “Hoje você será picado, Nacho.”
“Mamãe, por que eu vou tanto ao hospital e as crianças da minha turma não?”
“É porque você tem a doença de Dent. Não sabe?”
“Ah, sim, claro, mamãe, por isso. Ok, ok.”
Nacho mora na Espanha, tem 7 anos e sonha em ser jogador de futebol, mas está proibido de correr ou jogar bola, exceto por um curto período de tempo a cada duas ou três semanas. Tudo porque sofre de uma grave osteoporose.
“Nós vamos dois dias ao hospital e três dias à escola“, explica Eva ao telefone à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC. Mas ressalta que “Nacho é o garoto mais feliz do mundo“.
“Queríamos que Nacho vivesse suas limitações e sua doença com alegria, porque não é algo passageiro. É para a vida toda.”
Seu filho é tratado por oito especialistas diferentes, entre cardiologistas, nefrologistas, ortopedista e endocrinologista. Ele foi internado seis vezes com risco de ataque cardíaco e redução drástica no nível de potássio. Todos os dias, toma sete remédios a cada oito horas.
Mas os medicamentos não podem curá-lo. Apenas repõem oralmente o que Nacho perde pela urina em grandes quantidades: cálcio, potássio e fósforo.
‘Desespero e impotência’
Em 2012, após o diagnóstico de Nacho com Dent, Eva sentiu tanto “desespero e impotência” que decidiu levar a cabo uma luta pessoal contra a condição de seu filho.
E ela começou com o básico: fundar uma associação para levantar fundos para um projeto de pesquisa para encontrar uma cura, uma vez que, de acordo com Eva, “não há nenhum no mundo“.
Dent é uma doença rara e hereditária que, na maioria dos casos, é causada por uma mutação genética no cromossomo X e afeta os rins. Apenas algumas centenas de pessoas sofrem desse problema em todo o mundo.
Foi assim que nasceu o Asdent, que agora tem 700 membros e tornou-se um ponto de referência para as famílias dos pacientes de Dent de outras partes do mundo que procuram informações na internet.
“Dão o diagnóstico da doença de Dent, mas não oferecem nenhum tipo de tratamento. Então, seus pais se desesperam. Eles entram na internet e me encontram“, explica Eva. “Guardo o áudio de uma mãe argentina que me arrepia, (dizendo) ‘você é a nossa esperança’.”
Pernas tortas
O áudio era um pedido de ajuda de dois pais desesperados, Natalia e Esteban.
“Aqui na Argentina e, particularmente em Córdoba, ninguém sabia o que fazer com o Gabi ou como tratá-lo, fosse em hospitais públicos ou privados“, diz Natalia à BBC. “Enviamos um e-mail para Asdent pela manhã e, à noite, nós já estávamos falando ao telefone com Eva.”
Natalia levou o filho ao ortopedista quando ele tinha um ano e meio porque estava preocupada com suas pernas “muito tortas“.
E assim ela começou uma saga por diferentes especialistas e hospitais, com exames de sangue intermináveis e testes de urina que terminaram num diagnóstico de raquitismo hipofosfatêmico – um distúrbio causado pela deficiência da absorção intestinal de cálcio.
Mas esse não seria o fim de sua odisseia: duas semanas depois, após uma análise mais aprofundada, os médicos contaram aos pais que havia 80% de chance de Gabi ter uma tubulopatia rara chamada doença de Dent, que afeta principalmente os rins.
“Sabemos agora que o raquitismo é uma das consequências dessa doença“, explica Natalia.
Como existem várias doenças renais chamadas “tubulopatias“, Gabi precisou ser submetido a um estudo genético – não disponível na Argentina e no exterior – de US$ 6 mil para confirmar o diagnóstico de Dent.
A prioridade agora é que Gabi passe a ter cuidados paliativos o mais rápido possível, “para evitar que as coisas que não podem ser recuperadas, como a deformidade das pernas, não continuem se agravando“.
“Por seu filho, você tira forças de onde quer que seja, mesmo sem tê-las“, diz Natalia.
Passado quase um ano desde o diagnóstico inicial, “agora Gabi não está tomando nada, apenas a vitamina D e um leite especial porque tem desnutrição“. Mas ele deve começar um tratamento em Buenos Aires, ainda neste mês.
Natalia também aguarda os resultados de outro teste genético que a Asdent bancou para a irmã gêmea de Gabi, para averiguar se ela tem ou não a mutação genética do irmão.
Para a sorte de Natalia, do outro lado do Atlântico estava Eva, que já tinha passado por todo esse processo e tinha muitas respostas.
Ajuda
“Eu teria adorado que, no começo (do diagnóstico de Nacho) alguém do outro lado do mundo tivesse dito: ‘Eva, venha por aqui, vai ser melhor. Você não vai ficar bem, mas vai se sentir melhor’. Então decidi fazer isso com todos os pacientes de Dent que encontro“, conta a espanhola.
Quando conversou com a BBC, Eva tinha acabado de voltar da Argentina e do Equador, para onde viajou para atender Gabi e também Daniel, outro paciente com Dent, de 18 anos.
Há dois anos, o pai de Daniel bateu pessoalmente à porta da Asdent, em Barcelona, procurando ajuda para seu filho equatoriano, que tinha uma insuficiência renal em estágio avançado. Assim como Gabi, ele não seguia nenhum tratamento.
Em ambos os casos, Eva ajudou a organizar gratuitamente os estudos genéticos que eles precisavam e a fazer o necessário para retornar a seus países as com orientações médicas específicas sobre como tratar os efeitos da doença.
“Estou muito feliz em ver que, depois de tudo que eu passei, agora eu posso ajudar os outros.”
‘Fazer loucuras’
Nacho também passou por vários diagnósticos de doenças renais até os médicos concluírem, em 2012, que ele tinha Dent. Isso depois de um ano e meio.
“Naquela época, havia apenas 96 casos relatados em todo o mundo“, diz Eva, e “os médicos nunca tinham tido pacientes como ele.”
“E, a partir desse momento, eu comecei a fazer loucuras para levantar fundos e abrir um projeto de pesquisa.”
Uma das maiores loucuras foi em 2014, quando participou de uma corrida de bicicleta pelo deserto do Saara: percorreu 600 km em seis dias.
“Passei dias inteiros pedalando pelo deserto durante mais de 10 horas por dia contra a doença de Dent.”
Eva, a quem uma esclerose múltipla causou perda de força, diz que durante esses dias seu corpo foi exposto a um sofrimento extremo.
“O quanto eu chorei não está escrito. (Mas) isso me permitiu arrecadar 40 mil euros (R$ 147 mil)“, diz ela em tom quase incrédulo.
“E foi com esses 40 mil que eu paguei meus ratinhos.”
Pesquisas
Ela se refere a uma ninhada de cerca de dez ratos pelos quais ela ansiava havia dois anos, para as pesquisas de laboratório sobre medicamentos contra a doença de Dent.
Quem lidera as pesquisas são os médicos de Nacho: Felix Claverie-Martin, do Hospital Universitário Nossa Senhora da Candelária, em Tenerife, e Gemma Aviceta, do Hospital Vall d’Hebron, em Barcelona.
Juntos, eles estudam a parte genética e a parte clínica da doença desde 2014, quando Eva foi capaz de impulsionar um estudo do Instituto de Pesquisa do Hospital Vall d’Hebron com um orçamento inicial de 400 mil euros (R$ 1,4 milhão), que sua mãe se empenhou para arrecadar por conta própria por meio de campanhas.
Agora, uma nova fase de pesquisas exigirá 1,5 milhão de euros (R$ 5,5 milhões).
“E eu estou todos os dias à procura de recursos“, diz Eva.
‘Muito rentável’
“Mamãe, por que eu não tenho um xarope para me curar, como o Lucas da minha classe?“, perguntou Nacho certa vez a Eva.
“É só isso que a mãe quer, Nacho. Conseguir um medicamento que você possa tomar para ficar bem, sem nenhum problema.”
Eva deixa claro que se Dent fosse uma doença comum, já teria sido solucionada há tempos.
“O problema é que existem mais de 7 mil doenças raras com poucos pacientes, então é claro que não somos interessantes para um laboratório porque não é rentável criar uma droga para 400 pacientes. Mas, para mim, a vida do meu filho é muito rentável.”
O esforço dessa mãe virou tema de documentário, El reto de Eva (O desafio de Eva, em tradução livre), em que ela narra sua busca por financiamento e também por dar uma vida feliz a Nacho e a suas duas outras filhas.
“Nunca deixei que a falta de dinheiro fosse um obstáculo para o meu filho seguir adiante“, conclui Eva. “E se me pedem um milhão e meio (de euros), eu vou atrás. E se pedirem 6, eu vou buscar 6. E vou dedicar minha vida a isso.”
Inma Gil Rosendo, BBC Mundo