Precisamos exercer a habilidade da empatia na nossa rotina
Lucien de Campos*, Pragmatismo Político
No início deste ano assisti o filme “Hacksaw Ridge” (na versão brasileira, “Até o Último Homem”), dirigido por Mel Gibson. Me abstenho comentar sobre a produção e outros aspectos cinematográficos deste filme, até porque não é esta a minha especialidade. Contudo, provoco apenas uma reflexão acerca do personagem principal: o médico de guerra norte-americano Desmond T. Doss, cujo seu contributo foi salvar dezenas de combatentes feridos na Batalha de Okinawa/Japão, durante a Segunda Guerra Mundial.
Recusando-se carregar armas no campo de batalha, Doss resgata e socorre incansavelmente dezenas de soldados, inclusive combatentes inimigos. Entretanto, uma frase do médico me chamou atenção. Interrogado pelos seus superiores (inconformados com sua atitude pacifista, diga-se de passagem) Doss responde que “enquanto o mundo está disposto a se autodestruir, não me parece uma má escolha tentar reunificá-lo”.
Talvez o verdadeiro Doss nunca tenha exclamado precisamente esta frase. Provável que seja apenas uma cena hollywoodiana propositalmente criada para impactar. E, pelo menos pra mim, estudante das relações humanas, esta frase impactou. Repentinamente refleti: o que nós poderíamos fazer para não deixar o mundo se autodestruir?
No atual cenário internacional, as tensões regionais e os discursos radicais que disseminam o ódio, preconceito e a intolerância faz-nos relembrar os períodos das Duas Grandes Guerras Mundiais. Sejam jovens, adultos ou idosos, homens e mulheres de todos os continentes, a conclusão aparenta ser universal: crescimento absurdo de um vazio de valores consequente de uma decursiva impulsão de manifestações extremistas que pregam o nacionalismo exacerbado, preconceito e o sectarismo. Novamente a difusão do ódio pode ser responsável pela gradual autodestruição do mundo que vivemos.
A resposta para uma possível eliminação deste vazio de valores pode estar na empatia, puro e simples sentimento que, embora se manifeste como expressão sui generis da pessoa humana, sua prática está sendo cada vez mais esquecida no tocante as atuais relações interpessoais.
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Não é uma tarefa árdua exercer a empatia no dia-a-dia. Vivemos todos na nossa própria versão de realidade limitada por um comportamento influenciado pela nossa família, classe social, mídia e experiências pessoais. Na maioria das vezes acreditamos que é a nossa própria realidade a mais adequada para se viver. Contudo, é de suma importância para o nosso crescimento pessoal, assim como para as relações humanas e para a sociedade como um todo que nos esforcemos na tentativa de compreendermos as realidades diferentes.
A habilidade da empatia é exercida quando tentamos compreender a perspectiva de uma pessoa ou grupo de outra realidade. Desenvolver a empatia é compreender as emoções, sentimentos e a essência da realidade de outrem. Somos por natureza sociáveis e dotados pela habilidade da comunicação. Nesse sentido, entender diferentes realidades se torna a pedra angular para a manutenção das relações interpessoais.
É cientificamente comprovado que a habilidade da empatia está interligada ao nosso cérebro. Sabe-se que a região do Giro Supramarginal Direito é responsável pelo processo de diferenciação entre o nosso estado emocional com o das outras pessoas, desempenhando uma função crucial no que se refere a habilidade de observar e avaliar realidades diferentes. Já os neurônios espelho, localizados no córtex pré-motor, estimulam determinadas ações mímicas quando presenciamos atitudes e/ou gestos de outras pessoas (como por exemplo o bocejo), assim como provoca uma sensação de alegria ou sofrimento ao presenciarmos alguém feliz ou triste. Todavia, essas reações se manifestam apenas como momentâneos reflexos subconscientes. É nesta perspectiva que elas precisam ser estimuladas por intermédio da empatia.
Teóricos políticos, filósofos e sociólogos adeptos da teoria cosmopolita denominam como lealdade plural este sentimento que envolve uma comoção para com as minorias vulneráveis que sofrem de preconceitos, ódio e violência. Ao contrário da lealdade unilateral, cuja estabelece apenas uma fidelidade restrita com seus pares (a família, amigos, “irmãos de igreja” e compatriotas), o sociólogo Ulrich Beck delimitou a lealdade plural como uma componente da empatia que desperta valores de solidariedade, sensibilidade intercultural, tolerância e hospitalidade com pessoas de outras realidades.
O exercício da lealdade plural depende de cada um de nós. Ser uma pessoa verdadeiramente empática é pensar para além da sua realidade e suas preocupações pessoais. Para colocar isto em prática basta observar aqueles dos quais passam por realidades diferentes. É importante sair desta rotina diária composta por insignificantes distrações digitais das quais já estão penetradas na sociedade global. Tais distrações individualistas impossibilitam a observação dos que estão ao nosso redor, principalmente aqueles que se encontram à margem da sociedade.
Faz-se necessário compreender as realidades em vez de categorizá-las. Desafie-se a se preocupar genuinamente com o bem-estar de quem vos rodeia. A curiosidade com a realidade dos outros é o primeiro passo para estimular a empatia.
Uma atitude de quem dissemina o ódio é o combate verbal quando se defronta com alguém de outra realidade. Geralmente essas pessoas não permitem que o outro finalize seu argumento, não havendo uma saudável troca de ideias.
Uma comunicação saudável requer cortesia, consideração e avaliação das diferentes opiniões. Por este ângulo, a empatia desenvolve um papel crucial no que corresponde ao entendimento e absorção de realidades e ideias. Ouvir e refletir ajuda a expandir nossa própria opinião referente aos assuntos importantes para o desenvolvimento social. Aprender com as experiências de pessoas com outras realidades faz com que vejamos o mundo sob outra perspectiva. Por outro lado, exprimir nossa opinião, sentimentos e experiências também é fundamental, visto que a habilidade da empatia é uma “via de mão dupla” com entendimento mútuo.
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Desenvolver uma mente aberta liberta-nos de cairmos na tentação dos discursos que disseminam a intolerância, racismo e preconceito. Somente o exercício da habilidade da empatia permite uma saudável relação interpessoal a fim de partilharmos visões, ideias e experiências. Talvez seja com estes gestos e atitudes que poderemos deixar nosso contributo para um mundo mais humano.
*Lucien de Campos é pós-graduado em Crise e Ação Humanitária pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e mestre em Diplomacia e Relações Internacionais pela Universidade Lusófona de Lisboa e colaborador em Pragmatismo Político.