Em cada jovem africano que busca o Ocidente, as pegadas do capitalismo: da escravidão negra à lógica que reduz o continente a eterno fornecedor de matérias-primas. Se quisessem de verdade ajudar a África, os países ricos teriam que tomar cinco singelas medidas
Ignacio Ramonet, Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho
Com a chegada do verão europeu, voltamos a assistir aos repetidos e às vezes trágicos assaltos contra as muralhas alambradas de Melilla, levados a cabo com sofisticadas técnicas e artimanhas de assédio medieval, por disciplinadas colunas de jovens subsaarianos. Em outras zonas (Canárias, a ilha italiana de Lampedusa, as costas da Sicília, da Grécia, do Chipre, de Malta e a ilha francesa de Mayotte, perto de Madagascar), os “invasores” chegam quase sempre às praias à noite – quando não soçobram –, em silenciosas embarcações, como faziam outrora sem dúvida os vikings, normandos ou sarracenos.
Na Europa e em outras partes do mundo rico, muitos (entre eles o presidente estadunidense Donald Trump) tendem a considerar esses “assaltantes” como agressores, delinquentes e até criminosos. A extrema direita europeia reclama mais linha dura para repelir os intrusos, menos consideração, e a adoção urgente de medidas mais radicais. Mais vigilância, mais polícia, mais exército, mais expulsões… E nem sempre se pergunta: por quais causas essas pessoas estão dispostas a correr tantos riscos para colocar definitivamente, e por um preço vil, sua força de trabalho a serviço de conforto e alto nível de vida dos europeus?
A Africa Subsaariana é uma das regiões mais empobrecidas do planeta.
Sua pobreza extrema explica-se por diversos fatores. Em primeiro lugar, o tráfico de escravos, crime e genocídio que esvaziou durante séculos a região de milhões de seus homens e mulheres mais jovens, sadios e fortes, obrigando comunidades inteiras a viver escondidas e asiladas nas profundidades da selva, sem contato algum com os progressos da técnica e da ciência.
Recorde-se também que a África foi, até há apenas algumas décadas, terra de colonização. De uma colonização imposta pelas potências europeias a sangue e fogo, à base de guerras, extermínios e deportações. Todos os poderes locais que ousaram opor-se e resistir aos conquistadores – portugueses, holandeses, britânicos, franceses, alemães, italianos ou espanhóis – foram esmagados.
No aspecto econômico, as potências coloniais estabeleceram, de modo autoritário, uma economia fundada na exportação de matérias-primas para a “metrópole” e no consumo obrigatório de produtos manufaturados produzidos na Europa. Dessa maneira a África perdeu nos dois lados. Essa dupla exploração, no essencial, não mudou.
Por exemplo, a Costa do Marfim, primeiro produtor mundial de cacau (40% do volume mundial), nunca pôde desenvolver uma indústria de chocolate exportadora. O mesmo se pode afirmar do Mali ou da Nigéria, dois dos principais produtores de algodão, que se viram na impossibilidade de montar uma verdadeira indústria têxtil. E isso porque, em geral, as excessivas tarifas aduaneiras impostas pelos países importadores ricos aos eventuais produtos elaborados no Sul arruínam toda possível competição com os produtos fabricados no Norte.
Os países desenvolvidos querem conservar a exclusividade da transformação das matérias-primas, ou, no marco da globalização liberal, aceitam deslocalizar suas fábricas para a China ou Bangladesh, onde a mão de obra é hábil, dócil e sobretudo barata. Mas não estão absolutamente dispostas a investir na Africa, nem em desenvolver nesse continente um setor industrial importante. A divisão internacional do trabalho, realizada em favor dos interesses dos países do Norte, atribui à Africa um papel subalterno, marginal, que impede esse continente de entrar na espiral virtuosa do desenvolvimento.
As fabulosas riquezas minerais e florestais do continente africano são vendidas a preços de liquidação, para o maior enriquecimento das empresas importadoras e transformadoras do Norte. Desse modo, não se criam empregos nem sequer na agroindústria, setor básico a partir do qual se pode edificar um verdadeiro desenvolvimento agrícola, e mais tarde industrial. Por isso, também, a África é o último continente que ainda conhece, com regularidade, crises alimentares e até fome.
Essa região do mundo, tão frequentemente qualificada pela mídia dominante do Norte como “subdesenvolvida”, “violenta”, “caótica” e “infernal”, não teria conhecido tal instabilidade política – golpes de militares, insurreições, massacres, genocídios, guerras civis, terrorismo jihadista – se os países ricos do Norte (começando pelas antigas potências coloniais) lhe tivesse oferecido possibilidades reais de desenvolvimento, ao invés de continuar a explorá-la. A pobreza crescente converteu-se em causa de desordem política, de corrupção, de nepotismo e de instabilidade crônica. E essa mesma instabilidade desestimula os investidores, tanto locais como internacionais. Com isso fecha-se o círculo vicioso do labirinto da pobreza.
Tudo isso explica por que hoje um (ou uma) jovem do sul do Saaara, em plena saúde e frequentemente boa formação educacional, não deseja seguir vivendo no que é o calabouço do mundo. Dezenas de milhares estão, neste momento, dirigindo-se aos botes precários que conduzem à Europa, com a esperança de poder viver, finalmente, uma vida normal. E talvez também com a reivindicação inconsciente de que a Europa lhes deve algo de sua atual riqueza.
Isso é só o começo, e não se sabe que tipo de muros se haverá de construir para desencorajar o fluxo. Porque o Banco Mundial acaba de advertir que já estourou a bomba demográfica, e que já há nos países pobres uns 2,5 bilhões de jovens menores de 22 anos que não encontram trabalho em seus países. E cuja única perspectiva é tomar de assalto os muros da Europa…
Para alguns países africanos do Sahel, região onde encontram-se alguns os Estados mais pobres do mundo, como Mali, Burkina Faso, Níger e Chade, o algodão, “ouro branco”, representa entre 30% e 40% do valor de suas exportações. É, portanto, um produto vital do qual vivem diretamente três milhões de agricultores e indiretamente mais de quinze milhões de pessoas… “O algodão está ligado à história da África e à penosa história da escravidão – diz Aminata Traoré, ex-ministra de Cultura de Mali –, mas hoje queremos que nos ajude a conquistar a liberdade, e não nos escravize novamente.
Esses países pobres, nos últimos decênios, sacrificaram outras infraestruturas e fizeram esforços consideráveis (construção de barragens, canais de irrigação) para aumentar as superfícies dedicadas ao cultivo do algodão. E hoje encontram-se numa situação dramática porque, apesar do baixíssimo custo de uma produção realizada por camponeses pobres, o algodão africano vai mal na exportação e acaba mais caro que produzideo em alguns países ricos como os Estados Unidos — que controlam 30% das exportações mundiais da fibra branca.
Como é possível que o algodão produzido a preço de ouro nos EUA termine mais barato que o que se cultiva a custo infra-humano na África? Simplesmente porque Washington dá a seus produtores de algodão subsídios anuais de uns 3 bilhões de dólares… Por isso o algodão estadunidense pode ser vendido no mercado internacional a um preço inferior ao de seu custo e até mais baixo que o preço do “ouro branco” africano.
Consequência: se esses subsídios forem mantidos mantêm, ocorrerá uma catástrofe econômica de grande alcance nos países africanos do Sahel, que já se encontram entre os menos avançados do planeta. Milhões de agricultores continuarão a abandonar o campo para alistar-se nos exércitos jihadistas que controlam grande parte da região; ou irão amontoar-se nas favelas das periferias urbanas, de onde a miséria e a fome empurrarão os mais ousados a emigrar para a Europa. A bordo de canoas até as Canárias, ou atravessando o deserto do Sahara até a Líbia, na tentativa de depois cruzar a Itália.
Do algodão para a canoa é só um passo. E ainda que aparentemente uma coisa nada tenha a ver com a outra, os países da União Europeia, e entre eles os mais expostos à entrada dos imigrantes clandestinos subsaharianos, deveriam insistir para que se suprimam os subsídios às exportações agrícolas, em particular as do algodão, que só beneficiam uns milhares de agricultores norte-americanos, enquanto arruínam milhões de africanos.
Recordemos que a atividade principal, em escala planetária, continua sendo a agricultura. De todos os camponeses do mundo, apenas uns 30 milhões dispõem de um trator, 250 milhões trabalham com instrumentos de tração animal e 1,3 bilhão usam ferramentas manuais. Essa é a dramática realidade da agricultura de hoje.
Em junho de 2005, para tratar da situação da África e como álibi diante da opinião pública mundial, os chefes de Estado do G-8 convidaram os presidentes da África do Sul, Argélia, Etiópia, Gana, Senegal e Tanzânia, além de Kofi Annan, então secretário geral da ONU. A ideia de Tony Blair, primeiro ministro britânico naquele momento e que presidia esse G-8, era reduzir a dívida externa dos países intermediários, depois de haver reduzido a de treze países pobres da África. Blair também propunha aumentar a ajuda pública ao desenvolvimento (APD) em 25 bilhões de dólares ao ano durante cinco anos, até alcançar 0,75% do PIB. O presidente estadunidense George Bush opôs-se, sob o pretexto de que a África não seria capaz de absorver tal quantidade de capital… No entanto, o auxílio proposto por Tony Blair era inferior ao que estava custando, então, a guerra do Iraque. Outros observadores recordaram que os Estados Unidos consentiram em consagrar, após a Segunda Guerra Mundial, não 0,75% do seu PIB, mas 1% ao longo de quatro anos, para ajudar a reconstruir a Europa com o Plano Marshall…
Se quisessem de verdade ajudar a África, os países ricos teriam que tomar cinco singelas medidas:
1 — suprimir definitivamente a divida externa africana (para cada dólar emprestado, a África já devolveu 1,30 dólares só de juros).
2 — suprimir os subsídios às exportações agrícolas que inundam, a preço de banana, os mercados dos países em desenvolvimento e destroem a agricultura local.
3 — abrir os mercados agrícolas da América do Norte, da União Europeia e do Japão aos produtos africanos.
4 — aceitar que os países africanos estabeleçam uma política protecionista em favor de suas produções locais, tanto agrícolas como industriais, sem que o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial lhes aplique sanções.
5 — reorientar a pesquisa farmacêutica para curar as epidemias endêmicas da África (hoje, 90% da pesquisa farmacêutica está orientada para melhorar a vida do 10% da população rica mundial).
Os recursos abundam e existem soluções para erradicar a pobreza na África e no resto do planeta. Falta vontade política. Quando finalmente se admitirá que, suprimindo a pobreza e as injustiças, suprimem-se as principais causas do terrorismo no mundo?
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook