Prestes a fazer 18 anos, ativista afirma que policiais ameaçaram “forjar flagrante” para deixá-la na cadeia quando for maior de idade. “Não quero ser o próximo Rafael Braga”, diz
Fausto Salvadori e Daniel Arroyo, Ponte Jornalismo
Putinha. Biscate. Vagabunda.
Ela conta que é chamada assim pelos homens fardados da Polícia Militar do Estado de São Paulo desde que tinha dez anos de idade e andava de skate pelas ruas da região central da capital paulista, onde vive. Depois que trocou o skate pela militância política e engrossou as manifestações que tomaram as ruas a partir de 2013, os xingamentos dos homens da lei pioraram, acompanhados de socos, chutes, ameaças de abuso sexual, gás lacrimogêneo, golpes de cassetete. E prisões: muitas delas.
Em menos de um ano, a adolescente de 17 anos — vamos chamá-la de Rosa, um nome fictício, em respeito ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) — já foi detida sete vezes pela PM quando participava de passeatas. Rosa, seus amigos e advogados não têm dúvidas: afirmam que a adolescente foi “marcada” pelos policiais e vem sendo vítima de detenções arbitrárias, com o único objetivo de tirá-la das ruas. “Eu não tenho mais liberdade de expressão”, define Rosa. “E a tendência é piorar.”
A menina faz 18 anos no final do mês, uma data que lhe dá mais medo do que alegria. Segundo Rosa, policiais militares e civis já disseram que, ao atingir a maioridade, vão dar um jeito de imputar a ela crimes que garantam sua permanência na cadeia. “Eu não quero ser o próximo Rafael Braga. Eu quero ter uma juventude, uma vida”, diz, referindo-se ao jovem negro, vítima de duas condenações controversas no Rio de Janeiro, cujo nome virou sinônimo de flagrante forjado.
Rosa diz que sente o cerco se fechar sobre ela. As ameaças e espancamentos, segundo ela, já ocorrem fora das manifestações. No Carnaval, diz, foi agredida no Largo da Batata, na zona oeste, por policiais militares que a reconheceram de passeatas. E, há duas semanas, durante um sarau diante do Theatro Municipal, conta que uma policial que já a havia prendido numa manifestação se aproximou dela e ameaçou “forjar um flagrante” de tráfico de drogas. “Só não me levaram porque estava na frente de todos os meus colegas e estavam gravando”, afirma.
‘Marcada’
Nas primeiras detenções, Rosa era apenas uma entre dezenas de outras vítimas das detenções da PM, que a ONG Artigo 19, especializada na defesa da liberdade de expressão e informação, qualifica de arbitrárias. O relatório mais recente da ONG sobre a questão registrou 1.244 detenções de manifestantes entre agosto de 2015 e dezembro do ano passado e afirma que, em várias delas, “a arbitrariedade fica evidente e não há nenhuma justificativa plausível para que a detenção ocorra”: o Estado prende porque sim. E, até nas ocasiões em que os policiais buscam apresentar justificativas para as detenções, são tão ruins que não colam, na visão da ONG: “mesmo nos casos em que as detenções seriam justificadas sob a suspeita de cometimento de crime, o quadro que permeia tais ações é o da arbitrariedade e ilegalidade, uma vez que na ampla maioria das vezes as detenções são feitas sem provas nem fortes indícios de que o manifestante detido estivesse de fato praticando algum ilícito”.
Assim, Rosa estava entre os 105 manifestantes detidos sem acusação durante um protesto contra os Jogos Olímpicos na Avenida Paulista, em 5 de agosto. No mês seguinte, nova detenção coletiva: a adolescente foi incluída entre as vítimas de uma operação da PM no Centro Cultural São Paulo, que contou com a participação de um capitão do Exército infiltrado e culminou na prisão de 20 manifestantes e um estudante que passava pelo local. Nos últimos meses, contudo, o cerco foi se fechando e os policiais passaram a mirar especificamente em Rosa.
Foi o que ficou claro na noite de 30 de junho, durante uma manifestação contra as reformas propostas pelo governo Michel Temer (PMDB). Rosa estava sentada no Viaduto do Chá, diante da Prefeitura de São Paulo, quando uma policial militar cortou caminho pela multidão, se dirigiu até a menina e a agarrou. Levada ao 78º DP (Jardins), foi acusada de quebrar uma vidraça na Universidade Presbiteriana Mackenzie, na Rua da Consolação, por onde a manifestação havia passado minutos antes — o apedrejamento, testemunhado pela reportagem da Ponte, foi praticado quando Rosa já não estava no local.
“Eu nem vi que tinham quebrado o vidro do Mackenzie. De repente, uma policial me pegou no meio da multidão e me arrastou”, relata Rosa, indignada, na casa de uma amiga onde recebeu a reportagem. Olhando assim para ela, falando “mano” e “tá ligado” a cada duas frases, tem hora que parece mais nova do que seus 17 anos. Ao mesmo tempo, soa mais velha quando narra as violências por que já passou. Como naquela noite de 30 de junho: “Me colocaram dentro da viatura, ali atrás, os caras andando a milhão com a barca, e eu batendo a cabeça, passando mal. Quando eu cheguei na delegacia, todos os policiais acho que já me conheciam das manifestação. Começaram a me chamar de putinha, biscate, vagabunda, falaram que meu sonho era fazer um anal com os PMs. A Civil começou a falar bosta para mim: ‘essa vagabunda a gente já conhece‘”.
Não que apedrejar vidraças seja uma atividade estranha para Rosa. Ela já fez uso das táticas black bloc, que entende como uma estratégia de defesa: “nas manifestações, a polícia vai para cima das pessoas, quem tenta proteger é o black bloc”. E como prática de protesto. “A tática black bloc não é terrorismo, é uma tática de defesa e ação contra o sistema. Quando quebra a vidraça de um banco, é porque ali tem uma mensagem contra o capitalismo. Mas um black bloc nunca vai te atacar”, diz. Pergunto sobre o cinegrafista Santiago Andrade, morto por um rojão disparado por black blocs no Rio de Janeiro em 2014, mas Rosa não conhece o episódio. Ela afirma discordar do comportamento dos “emocionados”, manifestantes que partem para o quebra-quebra sem motivo. “Quem está na linha de frente tem que saber o que está fazendo”.
Na linha de frente
Espancamentos, humilhações, prisões arbitrárias, ameaças de prisão e de violência sexual. Muitos ativistas mudam de atitude após passar por experiências assim nas mãos da polícia. Tem quem abandone a militância para nunca mais colocar os pés numa passeata. Tem os que adotam estratégias discretas para se manter na luta com discrição, cortando o cabelo, evitando aglomerações e mantendo distância de policiais. Rosa não fez nada disso.
A adolescente faz questão de se manter numa “linha de frente” permanente, o tempo todo lutando contra o que considera injustiça e fascismo. Anteontem mesmo participou de um protesto do MPL (Movimento Passe Livre) que terminou em pancadaria nas mãos dos seguranças da estação Sé do Metrô e até agora exibe no corpo os vergões vermelhos dos golpes de cassetete — pelo menos, conseguiu fugir antes de contabilizar uma oitava detenção.
Nas discussões com a polícia que a Ponte testemunhou, Rosa, como outros jovens da sua geração, não abaixa a cabeça nem o tom de voz. Discute de igual para igual, como se acreditasse que um policial fosse um ser humano igual a ela, que não pudesse humilhar e espancar pessoas que se manifestam nas ruas sem sofrer consequências e como se o país em que ela vive fosse uma democracia real.
Numa das vezes em que foi presa, em 11 de setembro do ano passado, uma semana após a detenção no Centro Cultural São Paulo, a menina apavorou-se ao ser levada para o 78º DP e ouvir da boca dos PMs que ela ficaria trancada na Fundação Casa. Mesmo algemada, com as duas mãos para trás, saiu correndo da delegacia em direção à rua. “Eu pensava que, mesmo algemada, ia dar para correr até um ponto de ônibus, pegar um busão e aí já era. Era um instinto meu, eu só pensava que não queria ficar na Fundação Casa. Minha mãe tinha ficado triste para caramba com a prisão no Deic e eu não queria dar esse desgosto para ela de novo”, relembra. A fuga algemada, claro, não deu certo: na saída do DP, foi derrubada no chão pelos policiais. “Deram uns tapas na minha cara, uns murros na minha barriga e me levaram. Depois fui liberada”.
A prisão seguinte ocorreu em 2 de outubro, quando andava pela Praça Roosevelt, também na região central, e viu uma dupla de policiais militares agredir um jovem durante uma abordagem. Não teve dúvidas: foi até lá reclamar da atitude dos PMs. “Eu sentia que tinha que ser ‘pra frente’, ainda mais que um pouco antes tivesse feito uma tatuagem com a bandeira antifascista”, explica. O bate-boca terminou com a menina sendo presa, algemada e agredida pelos policiais, acusada de desacato, desobediência e resistência. Na versão dos PMs, a força usada foi apenas a necessária para conter uma jovem que estava “muito exaltada”.
Formas autônomas de viver
Rosa voltou a ser enquadrada por resistência no Primeiro de Maio deste ano, quando se recusou a dar seu nome para policiais que a abordaram a caminho de uma manifestação, na Rua da Consolação. No boletim de ocorrência, registrado no mesmo 78º DP, os PMs disseram que detiveram Rosa porque ela havia se mostrado “agressiva” ao ser presa sem motivo. Na ocasião, dois criminalistas ouvidos pela Ponte afirmaram que a PM não tinha base legal para prender a adolescente e qualquer resistência adotada por ela poderia ser considerada uma ação de legítima defesa contra uma violência estatal.
Mas parece que os policiais não precisavam de motivos reais para prender Rosa. Até uma camiseta que ela usava, com o emblema da banda californiana Red Hot Chilli Peppers, foi fotografada e filmada como se fosse uma “bandeira” usada por um grupo perigoso. “Não posso ir numa manifestação e ter uma posição política porque os caras vão me levar presa e eu não posso fazer nada. Eles acham que têm a liberdade de fazer o que quiser comigo, mas não é assim”, reclama a adolescente.
“Ela foi presa apenas porque está ‘marcada’ pela polícia”, contou uma advogada que acompanha a trajetória de Rosa. O objetivo seria o de fazer a menina desistir das ruas.
Não vai ser fácil, porque Rosa é uma amante da rua desde que tinha dez anos, época em que trocou o balé e o culto na igreja ao lado da mãe pelas andanças sobre as rodas no skate. “Tudo começou com o skate. Comecei a conhecer outra realidade, conheci outros neguinhos que não tinha as coisas eu eu tinha, outra realidade que eu não vivia, e me envolvi com o rap, que me passou uma visão”, lembra.
Em 2013, ver as ruas tomadas por manifestações foi a deixa para Rosa largar a escola e passar a aprender sobre militância, esquerda e direita, fascismo, anarquismo. Começou a colar em diversos movimentos: autônomos, secundaristas, anarcopunks. “Nessa época, aprendi muito mais na rua do que teria aprendida na escola”, orgulha-se. Anarquista, adotou o que chama de “formas autônomas de viver”, sobrevivendo da venda de artesanato ou de exibições de malabares nos faróis.
Os avós que a criam, e a quem Rosa chama de pai e mãe, é que não gostaram nada disso. Os dois se desesperam a cada prisão da menina e nem querem saber da militância de Rosa, que consideram apenas uma outra palavra para baderna. Isso é o que mais incomoda Rosa: o distanciamento em relação à família, que ela ama, e com quem busca se reaproximar. “Depois de 2013, eu comecei a viver mais na rua do que na minha própria casa. Querendo ou não, isso foi ruim porque destruiu meu relacionamento com minha família. Só que eu estou tentando levantar de novo e construir”, diz.
E, mais uma vez, parece subitamente mais velha. É na hora em que fala: “Quando você é adolescente, acha que pode fazer tudo. Adolescente é foda. Mas, quando você chega nessa idade que eu estou agora, vê como é importante um relacionamento com a família, que pode dar uma base para você se tornar adulto. Tá ligado?”.
Outro lado
A respeito das acusações de Rosa, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB) enviou uma nota:
A Polícia Militar informa que, por ano, acompanha mais de 700 manifestações populares, somente na região central da capital, para garantir a segurança de todos os presentes, sejam participantes ou não de protestos. A PM está à disposição para registrar eventuais queixas quanto à conduta de policiais para que sejam devidamente apuradas pela Corregedoria da Corporação.
Na ocorrência de 1º de maio, a jovem foi levada ao 78º DP para prestar esclarecimentos, pois resistiu à abordagem com agressividade se negando a se identificar e dizer sua idade. Com ela foi apreendido um pedaço de madeira e uma tesoura. Na delegacia foi apurado que era menor de idade e, com isso, foi encaminhada à Vara de Infância e Juventude.
Em relação ao protesto de 30 de junho, policiais militares que atenderam a ocorrência contaram que a jovem foi identificada, através de imagens fotográficas, como sendo participante do dano à universidade. Ela foi encaminhada ao 2º DP, onde foi registrado um boletim de ocorrência de ato infracional.
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