Recente entrevista de Lula voltou a acirrar os ânimos entre as militâncias petista e psolista. A esperança para o início do fim das agressões mútuas pode estar em conceitos de Freud e Bourdieu
João Miranda*, Pragmatismo Político
Na entrevista que concedeu na quinta (20) aos jornalistas José Trajano, Juca Kfouri e Antero Greco, o ex-presidente Lula realizou inúmeros críticas ao PSOL. Ele afirmou que gostaria de ver os psolistas chegarem ao governo de uma cidade como o Rio de Janeiro, pois, por ainda não terem tido essa experiência, não sabem o que é governar de fato e, por isso, são cheios de “frescuras”. E conclui afirmando que “eles ‘se acham’”, tratando assim o PSOL como um partido de moleques mimados que se acham a última bolacha do pacote da política.
Logo em seguida ao comentário do ex-presidente, houve nas redes sociais inúmeras manifestações por parte de psolistas, simpatizantes do partido, entre outras frações da esquerda, repudiando os ataques de Lula. Na outra ponta, inúmeros petistas e simpatizantes do PT defendiam o posicionamento do petista, afirmando que o PSOL se encobre com o manto da pureza e da autenticidade para esconder o fato de não possuírem um programa que responda adequadamente aos efeitos da crise que o país enfrenta.
Há muita fumaça no ar em volta dessa “treta” entre PT e PSOL. Mas, se observarmos com atenção, é possível perceber um comportamento padrão em ambos lados: a falta de autocrítica. Tanto a esquerda psolista, quanto a petista, ainda não dedicou a energia e o tempo necessários para realizar uma profunda e séria autocrítica que realmente promova uma mudança de rota. Alguns até ressaltam a importância de se fazer isso, mas, na maior parte do tempo, desperdiçam oportunidades atacando um ao outro, ao invés de rever a si próprio.
Talvez o que subjaz tantos conflitos entre PT e PSOL seja o fato de as diferenças entre ambos não serem tão grandes como os militantes, nos dois lados do front, aparentam crer que sejam. Não raro, atribui-se a razão do conflito entre indivíduos ou grupos aos contrastes existentes entre eles. Nesse sentido, acredita-se que, quanto maiores as diferenças, mais violentos são os confrontos. Entretanto, o conceito freudiano “narcisismo das pequenas diferenças” nos mostra a importância de não ignorarmos o fato de que, muitas vezes, os embates mais violentos são perpetrados entre indivíduos, grupos e comunidades que diferem muito pouco entre si.
São as distinções sutis, as pequenas diferenças, e não as grandes disparidades entre indivíduos e grupos que está na base de sentimentos de estranheza e hostilidade mútuos, causando uma série de conflitos, lutas e embates cruéis. Exemplificando o conceito, Freud afirma que “entre duas aldeias vizinhas, uma é a rival mais invejosa da outra; cada pequeno cantão olha com desprezo para os outros. Raças intimamente conectadas mantêm uma distância mínima entre si; o alemão do sul não suporta o alemão do norte, o inglês difama de todas as formas o escocês, o espanhol despreza o português”; seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos acrescentar que o brasileiro repudia frequentemente o argentino em parte pelas mesmas razões.
E, no mesmo sentido, o PT ataca o PSOL, e este ataca àquele. De um lado, existe uma parte da militância petista que, num esforço de resguardar o seu partido que está sujo com a lama dos demais (PMDB, PSDB, etc), ridiculariza ad infinitum o PSOL, taxando-o como um partido juvenil que se enrola e se aquece com os mantos do purismo autocongratulatório porque ainda não passou pelos “portões do poder” e, por isso, desconhece o que é governar de fato. Do outro, existe uma parte da militância psolista que, no afã de defender o seu partido que se criou para ser uma alternativa à esquerda, mas que não passa de uma franja da mesma e ainda não possui um programa bem definido, ridiculariza ad infinitum os deslizes drásticos do PT, como as alianças com empreiteiras, com pemedebistas, os escândalos de corrupção, etc.
Em ambos os lados se vê a falta de um sincero esforço de se fazer uma autocrítica descente que realmente coloque em debate as qualidades e os defeitos dos posicionamentos, os acertos e erros das próprias ações; sem ser superficial ao ponto de manter envolto em névoa o âmago dos problemas e sem cair num constante autoflagelamento imobilizante.
Bourdieu em seu livro “A distinção: crítica social do julgamento”, aponta a importância das pequenas diferenças para a formação e preservação da identidade. E propõe que a maior ameaça à identidade se origina daquilo que é mais próximo. Como ele afirmou, “a identidade social está na diferença, e a diferença se manifesta contra aquilo que é mais próximo, que representa a maior ameaça”. Ou seja, as semelhanças existentes entre dois grupos próximos são compreendidas como ameaças reais. Então, para que os efeitos sejam atenuados de modo que não haja uma aproximação, os grupos semelhantes se digladiam ressaltando as pequenas diferenças existentes entre eles. Como essas disparidades são sutis por serem semelhantes, os conflitos entre eles tendem a ser mais intensos e violentos para que as diferenças inconscientemente sejam, assim, superlativizadas.
PT e PSOL, no que tange a postura em relação à autocrítica (entre outras características), são semelhantes. Isso torna os dois partidos mais próximos do que os seus militantes desejam. Eles, então, no esforço inconsciente de se manter distante um do outro, espalham ataques constantes para elucidar os predicados que supostamente os separam (as pequenas diferenças). Chegar perto demais significa, assim, um insulto à honra. Então, a diferença é afirmada, reforçada e defendida com unhas e dentes contra aquilo que é mais próximo e, por ser próximo (logo, semelhante), representa a maior ameaça. Dessa maneira, o medo de contaminação leva à situações explosivas, como a vista entre petistas e psolistas.
Ambos partidos precisam superar esse narcisismo das pequenas diferenças e começar a realizar uma autocrítica séria, urgentemente. Enquanto continuarem dispendendo tempo e recursos para atacar um ao outro, ao invés de rever a si próprio, compreender a crise política e se atualizar teórica, política e ideologicamente, ambos partidos continuarão na periferia das lutas e não conseguirão encontrar, com o povo, uma saída para a crise política, econômica, social e moral que o país enfrenta.
*João Miranda é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa, foi colunista do Jornal da Manhã e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências
[1] FREUD, S. Civilization and its discontents. The Penguin Freud Library. Albert Dickson (ed.). Tr. And ed. by James Strachey. Civilization, Society and Religion, vol. XII, 243-340. Harmondsworth: Penguim Books.
[2] FREUD, S. Group psychology and the analysis of the ego. The Penguin Freud Library. Albert Dickson (ed.). Tr. And ed. by James Strachey. Civilization, Society and Religion, vol. XII, 91-178. Harmondsworth: Penguin Books.
[3] BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.
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