Destrinchando a maconha paraguaia
Matias Maxx, Agência Pública
A pouquíssimos quilômetros da fronteira entre o Paraguai e o Brasil, pequenas comunidades trabalham duro em gigantescas plantações escondidas para garantir a maconha fumada por milhões de brasileiros.
Enquanto turistas e negociantes cruzam a Ponte da Amizade atrás de ofertas de eletrônicos, roupas, bebidas e outros produtos, mais ao norte, na fronteira entre Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e Pedro Juan Caballero, no Paraguai, o clima não é tão amigo. Há turistas, sacoleiros e estudantes de medicina, mas também há narcotraficantes que de lá despacham cocaína boliviana e a maconha paraguaia para todo o país.
Só nos seis primeiros meses deste ano, a Polícia Federal apreendeu mais de 126 toneladas de maconha, a maior parte oriunda do Paraguai. Trata-se do “prensado paraguaio”, que chega ao país em blocos rígidos de 1 kg e, no varejo, são fracionados em pedaços menores. É a maconha que está na boca dos brasileiros: segundo estudo do IBGE, 4,1% dos alunos do 9º ano fazem uso da erva. Oito milhões de brasileiros, 7% da população adulta, já experimentaram maconha alguma vez na vida, segundo o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo. Usuários frequentes equivalem a 3% da população adulta do país, ou 3 milhões de pessoas.
Iniciada na década de 1960 no distrito de Amambay, fronteiriço ao Brasil, a área de cultivo de cannabis no Paraguai vem se expandindo para o norte e centro do país. O governo paraguaio estima que hoje tais cultivos ocupam de 6 a 7 mil hectares. Segundo dados da Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai (Senad), 80% da produção de cannabis paraguaia é contrabandeada para o Brasil. Mas, diferentemente de outros países produtores, como o Marrocos e a Colômbia, onde o cultivo – não o comércio – é permitido, a maconha paraguaia é ilegal e de péssima qualidade.
Para conhecer a realidade dessas plantações, fui a campo e passei 15 dias visitando roças de maconha no país vizinho. Conversei com indivíduos e famílias que há gerações sujam a mão de terra para cultivar cannabis, para entender suas técnicas, perfil etnográfico e, sobretudo, como a proibição impacta suas vidas. Sem em nenhum momento esconder minha condição de jornalista, conversei com patrões, gerentes, roceiros e peões para entender como entraram no negócio, suas perspectivas de vida e os valores pagos pelo trabalho na roça. Surpreendeu-me a naturalidade com que falam do trabalho e o sentimento de impunidade, garantido por uma rede de policiais e autoridades corruptas.
Minha primeira parada foi a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, com 140 mil habitantes. Lá se cruza a fronteira com a cidade brasileira de Ponta Porã (88 mil habitantes) literalmente atravessando uma rua. Por essa cidade passam as principais rotas de tráfico da maconha, assim como armas, cocaína boliviana e outros contrabandos. Atualmente o controle dessas rotas é disputado entre as facções criminosas brasileiras Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC). Em junho de 2016, o chefão Jorge Rafaat, filho de paraguaia com brasileiro de origem libanesa, foi assassinado em Pedro Juan Caballero dentro de sua Hummer blindada, alvejado por 16 tiros vindos de uma rajada de mais de 200, disparada por uma metralhadora .50 montada dentro de uma picape Hilux. A execução do crime, atribuído ao PCC, teria custado R$ 1 milhão, segundo o serviço de inteligência da Senad.
Assim como no negócio da cocaína, a maior concentração de capital gerado pelo tráfico do prensado paraguaio está nos intermediários, enquanto nas pontas (quem planta e quem vende ao consumidor) o volume de capital é pulverizado em pequenos grupos e indivíduos.
Chamam atenção as insalubres condições de trabalho e as péssimas relações trabalhistas – que replicam o que acontece também em outros ramos do agronegócio. Afinal de contas, é disso que se trata, um agronegócio extremamente lucrativo, em grande parte devido justamente à sua ilegalidade.
Patrões, propinas e pistolas
Chapéus de vaqueiro, botas, cuias de tereré adornadas com estampas imitando pele de onças e cobras, tabaco e toda sorte de quinquilharia chinesa estão à venda no camelódromo de Pedro Juan Caballero, situado numa avenida de pista dupla; do outro lado já é Brasil. Não muito longe de lá, cassinos, motéis e puteiros fazem lembrar as imagens estereotipadas de outras notáveis cidades fronteiriças dominadas pelo crime, como a mexicana Tijuana, embora aqui não existam muros ou controle alfandegário de qualquer espécie. A “fronteira seca” do Paraguai com o Brasil é de fato uma linha imaginária.
Encontro Adriano*, um brasileiro de 25 anos, fluente em português e espanhol, além do guarani, idioma nativo, falado por 80% da população paraguaia, que também batiza a moeda local. Mas o guarani de Adriano é um segredo que ele guarda bem guardado. Prefere se fazer de bobo e fingir que não entende o idioma, deixando os paraguaios à vontade para falar. Atenção e cautela são fundamentais para sobrevivência nesse negócio. Dentro de sua organização, Adriano é um gerente, um homem de confiança do “dono” da roça, que fica a maior parte do ano acampado nas roças com os trabalhadores rurais, intermediando qualquer assunto entre eles e o patrão.
Ainda em Pedro Juan, sou levado a conhecer Gérson*, o patrão de Adriano. É um cara de uns 50 anos, também brasileiro, “dono” de duas roças de maconha e nascido numa família que sempre explorou o ramo na região. Ele não é de fato o dono legítimo das terras onde é cultivada a maconha, que geralmente são áreas públicas invadidas ou um pedaço arrendado em um latifúndio. Também me apresentam um paraguaio conhecido como Roque*, um “roceiro”. Responsável por uma das roças do patrão, da semeadura à colheita, ele literalmente coloca a mão na terra, escolhe as sementes, fertilizantes e técnicas que serão usadas nos cultivos, além de dar ordens aos trabalhadores que são trazidos para o serviço braçal, principalmente na época da colheita. Roque raramente vem à cidade, tendo permanecido os seis meses anteriores à minha visita acampado na selva cuidando de uma roça de 5 hectares, naquele momento em processo de colheita.
Ajudo a carregar uma picape Hilux 4×4 com alimentos e produtos de limpeza, e pegamos a estrada. Assim como a avenida central da cidade, a estrada brasileira e a paraguaia correm lado a lado; a única diferença é que, se o asfalto do lado brasileiro é ruim, o do paraguaio é péssimo ou inexistente. Durante o caminho, mudamos de lado – e de país – diversas vezes, buscando contornar postos policiais. Em vários trechos, um pequeno barranco separa as duas estradas, um obstáculo facilmente vencido com a picape, muitas vezes sem nem sequer precisar diminuir a velocidade.
Os policiais paraguaios não causam grandes problemas, dizem meus cicerones. De fato, em uma única blitz em que fomos parados no caminho, todo mundo manteve a calma. O policial se aproximou do veículo, sem abrir a boca; o patrão, ao volante, abriu o compartimento entre os bancos da frente, sacou de um bolo de dinheiro quatro notas de 100 mil guaranis (cerca de R$ 50) e entregou ao policial, que liberou o caminho e mais nada disse. Segundo eles, a polícia brasileira não é muito diferente, com exceção do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), órgão da PF no Mato Grosso do Sul, a única que realmente assusta os traficantes. “Com eles não tem jogo: é cadeia ou caixão”, diz Gérson.
O trecho final da viagem passava por uma estrada com crateras lunares. Era época de chuvas e boa parte estava alagada ou enlameada. Vi alguns veículos atolados pelo caminho. O sonho de consumo de todo mundo é ostentar uma picape cara, uma ferramenta de trabalho em regiões rurais – e não seria diferente numa região produtora de maconha. Antes de chegar à base de operações de Gérson, atravessamos, com os vidros fumês fechados, uma pequena cidade de menos de mil habitantes. Eles não podem correr o risco de que alguém os veja.
Do punhado de brasileiros envolvidos na operação de Gérson, apenas dois iam até essa cidade em busca de suprimentos, sobretudo gasolina. Os demais não podiam correr o risco de serem vistos, frequentando apenas a “base” e as roças. A base, ou “fazenda”, ficava numa casa dentro de uma enorme propriedade rural. Uma casa simples, com um quarto cheio de beliches, um banheiro com água quente e uma TV com antena parabólica. Adriano me explica que em cinco anos no negócio é a primeira vez que tem tal conforto; normalmente ele passa meses acampado nas plantações. Outros brasileiros vivem na casa, fazem parte da operação de Gérson e se comunicam usando celulares antigos, com botões, cujo maior recurso é o “jogo da cobrinha”. Por não terem GPS, seriam supostamente mais difíceis de ter sua localização rastreada.
Adriano, Gérson e os demais brasileiros andam constantemente armados com pistolas Glock tinindo de novas. O porte e o comércio de armas são quase banais no Paraguai, dizem. “Você chega na loja e compra; se apresentar a identidade, ganha até desconto”, brinca Adriano. Vou compreendendo que estamos numa zona de exclusão, um narco-Estado paralelo, distante dos domínios das facções e agências policiais. Diferentemente da fronteira, na roça as disputas entre grupos quase inexistem, e as operações policiais costumam ser anunciadas e negociadas. Ninguém quer trazer muito barulho ou chamar atenção para a região. Segundo Gérson, políticos receberiam dinheiro para atrasar o avanço do asfaltamento das estradas que conectam às regiões produtoras, ajudando a complicar qualquer operação policial. A desculpa para o armamento constante seria defender-se de outros grupos, policiais ou ladrões, além de eventuais ataques de animais selvagens.
Nos acampamentos na selva, onde existe alguma possibilidade de ataque da onça- pintada – “jaguareté” em guarani –, peões e roceiros possuem apenas um par de espingardas .22, sempre largadas em algum canto. Eles contam que confrontos são raros, mas, na iminência de uma operação policial, algum gerente dispararia tiros de alerta ao alto para que todos pudessem fugir.
Outras vezes, a arma na cintura é sinal de status, a forma mais clara de diferenciar os patrões e traficantes brasileiros dos roceiros e trabalhadores rurais paraguaios.
Numa noite, chegou a notícia de que um carregamento de 1 tonelada que havia sido despachado pelo grupo havia “encostado” em São Paulo; Gérson colocou o carregador de 32 munições em sua pistola automática e disparou todas para o alto, numa rajada que durou menos de três segundos, num barulho de explosão que fez pular quem já estava na cama. No dia seguinte, ordenou que matassem um boi.
Roque o descarnou, jogou a picanha imediatamente na grelha, separou as costelas e demais carnes nobres no congelador e salvou os ossos e restinhos de carne para enviar aos peões na roça. A postura dos chefes dentro de casa era praticamente num clima de família, com muitas risadas, brincadeiras, fofocas – e baseados grossos, que eles chamavam de “dedo de gorila”. Na roça, agiam bem diferente: muito mais secos, contidos, tratando de cultivar uma imagem autoritária e agressiva.
Muitos cachorros, galinhas e outros animais habitavam a casa e proporcionam os momentos lúdicos do dia a dia. Todo mundo acordava bem cedo, tomava café e dividia as tarefas domésticas. Depois eu saía com Adriano para visitar as duas roças do patrão, passando de moto por 40 a 60 minutos em trilhas fechadas e cheias de barro. Cheguei a ficar quatro noites acampado numa das roças, acompanhando o processo de colheita e prensagem.
Negociação com a polícia
Logo no meu segundo dia de visita, informantes de Gérson ligaram avisando que homens da Senad iriam realizar uma operação numa área onde havia uma roça sua e mais outras quatro de diferentes patrões. A informação foi confirmada pelos outros grupos.
Imediatamente saímos de lá e voltamos para a fazenda, enquanto os peões desmontavam e escondiam a prensa e as sacas de 30 kg de maconha já seca.
No dia seguinte, recebemos uma visita: Cabañas*, um senhor paraguaio de uns 70 anos, com chapéu de vaqueiro e pistola no coldre, acompanhado de um de seus homens de confiança. Ele é o “chefão” da região, tem inúmeras propriedades e age como intermediário entre os donos de roça e o governo paraguaio. Sem nenhum desconforto ou dissimulação, vários dos integrantes do negócio enchiam a boca para falar que abastecem uma rede de propinas que termina em “Assunção”, eufemismo para chamar o presidente da República.
Cabañas apresenta a proposta da polícia para cancelar a operação: 10 milhões de guaranis por patrão (cerca de R$ 5.500). Não sei quantos patrões havia, mas entre as duas áreas de cultivo a que eu fui, pelo menos dez, me disseram que há centenas dessas áreas de cultivo naquela região. Gérson me explica que é sempre a mesma coisa na época de colheita: eles ameaçam invadir só para recolher mais propina do que o usual. Curioso, perguntei a ele sobre as operações midiáticas, como a que ocorreu no ano passado, na qual o então ministro da Justiça brasileiro, Alexandre de Moraes, desceu de um helicóptero com homens da Sebad e derrubou a machetazos (golpes de facão) meia dúzia de pés de maconha. “Quando é assim, é tudo negociado, a gente entrega uma roça meio caidinha pra eles, tira tudo que vale alguma coisa de lá, deixa só as plantas. Pode ver que ninguém nunca é preso nessas operações”, diz. De fato, ninguém foi preso na operação.
Os números oficiais revelam que as autoridades paraguaias não têm tanto entusiasmo em combater o narcotráfico. Segundo dados do relatório da ONU de 2016, em 2014 o Paraguai tinha 6 mil hectares de área de cultivo de maconha e erradicou 2.474 hectares. Já os números do Observatório Paraguaio de Drogas disponíveis no site do Senad divergem. Naquele ano, a erradicação teria sido de 1.966 hectares. O órgão disponibiliza os dados dos últimos quatro anos; os de 2016, o mesmo da visita de Alexandre de Moraes, são os mais baixos. Naquele ano, teriam sido apreendidas 276 toneladas de maconha e 36 plantações, destruídas, totalizando 1.298 hectares. Das 338 prisões relacionadas à droga ano passado no Paraguai, apenas duas foram por cultivo de maconha e 287 por tráfico de drogas não especificadas.
A vida nas roças
O caminho até as roças era feito por trilhas estreitas e enlameadas, a bordo de motos que atolavam dia sim, dia não. Não dá para comprar motos melhores para não chamar atenção.
A primeira roça de Gérson era tocada por “Gatito”, um paraguaio de 20 anos que comandava uma plantação pela primeira vez. Ele dividia uma área enorme com outras quatro roças, cada uma com cerca de 5 a 10 hectares e pertencentes a diferentes patrões. Durante os quatro meses de crescimento vegetativo e flora, cada uma dessas roças é cuidada por um roceiro e mais duas ou quatro pessoas de confiança, geralmente parentes. Quando chega a hora da colheita, eles recrutam mais uns dez peões, que ficam acampados durante um mês, ajudando nos diferentes processos: colheita, secagem, zaranda, despalitada, estoque e prensa. Pelo trabalho nesses serviços, os trabalhadores, a maioria paraguaios de origem indígena, recebem 70 mil guaranis ao dia (cerca de R$ 40), com exceção da prensa, serviço de maior responsabilidade, limitado a trabalhadores de confiança que recebem 10 mil guaranis por hora (R$ 5,5). Esses valores, assim como os do quilo da maconha, são fixados entre os patrões, para evitar concorrência.
Nenhum relato verbal, textual, em vídeo ou foto é capaz de transmitir o estonteante e estupefaciente odor da plantação, um cheiro forte, doce, herbal e resinoso que chega às narinas muito antes de se avistar o primeiro pé. No campo, a primeira coisa que eu vejo são lonas de plástico preto estendidas com centenas de quilos de flores fêmeas (os populares “camarões”) sendo manipulados por um par de trabalhadores. Dou uma volta pela plantação, vejo plantas tombadas apodrecendo e sementes germinando por toda parte. Adriano confirma o que eu já estava suspeitando: Gatito é um péssimo cultivador, e seu maior pecado, ser cabeça-dura. Apenas na semana anterior, resolveu colher seus cinco hectares, ignorando um período de chuvas anunciado pela meteorologia. Dadas as péssimas técnicas de secagem adotadas, toda a sua colheita apodreceu. Uma tonelada de maconha podre e fedida, aquele cheiro de amoníaco e azedo de maconha estragada. Mesmo assim, ela será vendida no Brasil.
Do meio da selva surgia uma pequena comunidade de umas 70 pessoas, espalhadas por cinco acampamentos. Para cada acampamento havia uma roça e um patrão diferente. Elas ficavam lado a lado, divididas por cercas feitas de troncos ou barreiras de mata natural.
Dezenas de hectares de mata natural são desmatadas todo ano para a produção de maconha, muitas vezes dentro de áreas de proteção ambiental, como o Parque San Rafael, no sul do país, com 78 mil hectares, e apenas quatro agentes florestais, e que é alvo de constantes operações da Senad.
Os acampamentos onde roceiros e peões dormem e realizam os processos posteriores à colheita da maconha estão ali do lado, no meio da fechada mata pantaneira. Troncos, tocos, lona, barbante e arame erguem as tendas. Cada acampamento tem seu alojamento e cozinha.
Feijão, arroz, charque, óleo, sal, açúcar, leite e um pãozinho redondo chamado “coquito” são os alimentos fornecidos pelos patrões.
A água vem de poços ou córregos, é quente, fosca ou amarronzada e geralmente bebida na forma de “tereré”, uma espécie de chimarrão no qual a erva-mate é servida com água fria e gelo. Pelo menos a erva mate disfarça o gosto e, principalmente, a cor nojenta da água. O acampamento é muito sujo, e garrafas pet de vinho barato e Fortin, uma cachaça local, estão por todo lado. Em todos os dias em que frequentei essas roças, vi apenas duas mulheres: uma bem jovem trabalhando na zaranda, processo de secagem para separar as flores das folhas através de peneiras, e outra, também jovem, cuidando de uma criança de uns 10 anos debaixo de uma tenda onde meia tonelada de maconha estava por ensacar. Nessa roça, a jornada de trabalho vai da manhã até o cair do sol, com exceção da prensa, que funciona sem parar, com iluminação provida por gerador a gasolina. Adriano me conta que já trabalhou em roças que funcionavam 24 horas durante a colheita, com fortes refletores iluminando os campos.
Vendo a criança brincar com um cachorrinho, comecei a imaginar um cenário hipotético onde, se a coisa sujasse, alguém, provavelmente Adriano, ia dar um tiro de alerta para o alto, todo mundo ia correr para dentro da mata, a criança ia correr atrás do cachorro, a mãe, atrás da criança e, no final, elas seriam as únicas detidas – elas e aquela meia tonelada. Talvez aquelas duas pessoas que foram presas plantando maconha no ano passado, segundo o site da Senad, tenham rodado assim.
A roça de Roque
Bem mais afastada da fazenda, a roça de Roque tinha um clima muito diferente, até pelas “ruas” dentro da plantação, que é como chamam os corredores entre as fileiras de pés de maconha perfeitamente alinhadas. Foi dali que saíram 700 quilos da tonelada que renderam a rajada na fazenda. O patrão estava feliz com ele.
Roque tem 25 anos, começou a plantar aos 17, terminou o 2o grau e, como era menor de idade, não conseguiu nenhum emprego. A solução foi fechar com os irmãos mais velhos, que já haviam trabalhado em algumas colheitas de maconha. Após quatro anos trabalhando em “macheadas” e colheitas nas roças dos outros, pegou a mão do negócio e começou a tocar suas próprias roças, financiadas por Gérson.
O roceiro leva metade do lucro da venda da maconha, descontados os investimentos do patrão. Em caso de apreensão, ambos amargam o prejuízo. Concluindo sua terceira colheita, Roque diz que conseguiu tirar uma grana e quer montar um negócio para sua família, um varejo de suprimentos para roças de maconha, como as lojinhas que, na cidade, vendem lona agrícola, fita, alimentos, gasolina.
Porém, a sua próxima colheita terá um destino muito diferente. Ao fundo do campo havia 2 hectares com plantas saudáveis ainda na pré-flora. Roque cuidava deles com muito carinho e apelidava essa roça de “bucetinha”: ele gastaria todo o lucro com namoradas e prostitutas.
A roça fica horas a pé do vilarejo mais próximo, com bem menos de mil habitantes e muito, muito longe de qualquer cidade. A maior parte dos que circulam é de trabalhadores rurais temporários, trazidos em pau de arara de outras cidades. Praticamente não há mulheres, mas elas povoam seus corações, mentes e mensagens de WhatsApp. Sim, eles têm sinal 3G e trocam selfies, nudes e imagens das plantações que eventualmente vazam para a imprensa.
Numa das minhas várias conversas ao redor da fogueira, questionei o pessoal sobre histórias que ouvi de que, no Paraguai, haveria ainda cultivos familiares. Isso ainda existe em algumas regiões remotas do país, mas, devido à pressão da polícia, sobretudo nas regiões fronteiriças, a prática é cada vez mais rara, disseram. Os custos de manter uma roça não são altos, mas as propinas sim, então fica difícil operar sem um financiador. “Fica cada vez mais difícil trabalhar sem patrão. Porque a polícia tá pedindo cada vez mais dinheiro”, me explica Roque.
Por aqui, nenhum peão ou roceiro jamais trabalhou em outro tipo de agricultura. A maioria é muito jovem, beirando os 20 anos, são calados, desconfiados e transparece sua ambição no olhar, enquanto os mais velhos carregam o semblante tranquilo de quem viu a vida passar fazendo sempre a mesma coisa.
Durante seis meses, Gérson investiu 50 milhões de guaranis na roça de Roque (menos de R$ 30 mil) e colheu 6 toneladas de maconha, que, ao final do processo de secagem, vão virar 4,5 toneladas de prensado. Considerando que o quilo na fronteira custa R$ 30 e no sudeste brasileiro chega a R$ 600, o negócio é extremamente lucrativo e sedutor, mesmo com todos os gastos em propinas, frete e salários.
O dinheiro da maconha alimenta famílias e mantém microcidades funcionando no interior do Paraguai, mas não o suficiente para tirar essas pessoas da miséria. Os gerentes e roceiros que conheci tinham pouquíssimas posses, uma moto e algumas roupas de marca, viviam uma rotina de muito trabalho, paranoia – e a certeza de que são totalmente substituíveis. Se a grana do tráfico compensa, certamente não é para quem está na ponta do negócio.
*Todos os nomes foram trocados para garantir o sigilo das fontes da reportagem – Esse texto é resultado do Concurso de Microbolsa de Reportagem Maconha, realizado pela Agência Pública e CESeC – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.