A insensibilidade da Justiça que mata bebês no Brasil
A insensibilidade da Justiça que mata bebês no Brasil: juiz do RS negou atendimento home care a bebê com paralisia, mas este não é um caso isolado
Ana Paula Souza Cury*, Congresso em Foco
Ainda que se cogite o monitoramento domiciliar, não há garantia de evolução clínica do menino, tendo presente um quadro de provável irreversibilidade da situação. Este é o trecho do acórdão proferido por um magistrado do Tribunal do Rio Grande do Sul como justificativa para negar assistência à saúde domiciliar e fornecimento de aparelhos vitais a um bebê, de origem carente da cidade de Gravataí-RS, com paralisia cerebral e em estado de saúde considerado grave após complicações no parto.
Tal condicionante expressada pelo juiz é verdadeira declaração a favor da eugenia, ainda que indireta, travestindo-se em real sentença de morte num momento incerto e não sabido ao pequeno paciente. Pois não se deve mensurar a necessidade colocada como aposta de evolução em termos estritamente técnicos, mas sim como meio de conferir à criança um lenitivo ao sofrimento, já característico de sua breve existência.
Ao sugerir que a irreversibilidade da situação consistiria justificação idônea para a não concessão do tratamento de home care, o magistrado assume que tratamentos de saúde devam voltar-se unicamente para o ideal de cura, desconsiderando aqueles que estão fadados a uma vida marcada por doenças congênitas. Mas há muitas formas de existir e se a dor de doença momentânea já abate quem tem o privilégio de habitar um corpo cujas potencialidades atingem seu máximo, que dirá a dor vivida por corpos que desde seu nascimento convivem com inúmeras restrições funcionais. Essas restrições jamais podem atingir, também, a dedicação com a qual a justiça lhe direciona o olhar.
Deve-se pensar não na cura pura e simples, mas na dignidade que poderia ser agregada à trajetória do paciente e de sua família, que vivencia a dor da criança e a angústia de nada poder oferecer para aliviar suas chagas. Ressalta-se que não se trata de mero conforto ou conveniência. Pede-se, tão somente, que a justiça atente para a perspectiva segundo a qual não há existência mais ou menos valiosa conforme seu tempo de permanência entre os vivos. A vida se dá a cada instante e por meio das mais variadas manifestações. Se o bebê e seus familiares já são fadados a conviver com perspectiva de morte, o sofrimento pelo inevitável somente se agrava quando se soma a essa circunstância a precariedade à qual ele hoje está sujeito.
A citada indiferença do TJ Gaúcho exemplifica como o direito à vida e ao tratamento digno em casos urgentes de saúde, assegurados pela lei às crianças brasileiras, têm sido desconsiderados em tribunais de Justiça do país numa insensibilidade que, praticamente, condena crianças e pessoas consideradas incapazes à morte. Este mesmo tribunal, em menos de um mês, agiu duas vezes em favor da administração pública em detrimento da vida do pequeno cidadão. Ressalta-se que o bebê, com um ano de idade, tem paralisia cerebral e se encontra em estado grave de saúde após complicações no parto segundo laudos médicos feitos no sistema público de saúde do próprio município. Sua sobrevivência depende de equipamentos e de cuidados em saúde domiciliares.
O despacho do TJ Gaúcho, publicado na sexta, 18 de agosto, é a mais recente de sucessivas decisões que não acolhem o pedido da família carente pelo custeio público de aparelhos vitais e atendimento médico domiciliar. Esta última manifestação reconhece que os autos não deixam dúvidas da necessidade de cuidados especiais permanentes para o paciente. Diz compreender a aflição e o sofrimento tanto do menor quanto dos familiares, mas se recusa a obrigar o poder público ao fornecimento de aparelhos vitais e de home care ao bebê.
A negativa se dá pela suposição de que o acolhimento ao pedido da família representaria o desatendimento, em grande escala, de outros pacientes. Em outra sentença, proferida no fim de julho e após quatro meses de espera, o que fere a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a juíza da Vara da Infância e da Juventude também entendeu pela negativa de fornecimento dos equipamentos.
O caso está na justiça após a negativa do estado e do município em cobrirem a provisão de aparelhos e serviços de home care, ambos solicitados por médicos do SUS. Os exames indicam que a permanência em ambiente hospitalar traz mais riscos à saúde do bebê como eventual piora do quadro clínico por causa de infecções hospitalares. A despeito da recomendação médica, o Estado do Rio Grande do Sul e a Prefeitura de Gravataí persistem na recusa do fornecimento dos itens vitais à sobrevivência do menino. Mas a família não tem recursos financeiros para arcar com os cuidados necessários e aguarda há meses por decisão favorável ao custeio público para o tratamento.
A espera ocorre apesar do Brasil dispor duma legislação que garanta a prioridade de tramitação para temas urgentes de saúde relacionados às crianças. Há de ser considerada a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A lei dispõe que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. E, ainda, assegura o atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. Acrescenta-se que o diploma legal prevê atendimento especializado às crianças e adolescentes deficientes e incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.
Em termos, é possível dizer que a Justiça comete um crime contra a vida na tentativa de derrogar a Lei Orgânica da Saúde e, pior, a Constituição Federal que dispõe a vida e a dignidade da pessoa humana como pilares da República Federativa do Brasil. Dito isso, o que importa é a percepção de que o direito a um mínimo existencial independe de expressa previsão no texto constitucional para poder ser reconhecido, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana.
A Carta Magna assegura como um dos fundamentos do país a proteção à dignidade da pessoa humana e o direito à saúde como dever do Estado, razão pela qual não podem os entes estatais se esquivarem das atribuições com a chancela do Poder Judiciário, em claro desrespeito à Constituição Federal.
Nesse sentido, vale colacionar os enunciados das Súmulas 37 e 66 do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo. A primeira afirma que a ação para o fornecimento de medicamento e afins pode ser proposta em face de qualquer pessoa jurídica de Direito Público Interno. A segunda dispõe sobre a responsabilidade para proporcionar meios visando garantir o direito à saúde da criança ou do adolescente e é solidária entre Estado e Município. Ainda, o dever de fornecimento pelo Poder Público de remédios, insumos e tratamentos imprescindíveis a salvaguarda da integridade do cidadão é meio que efetiva a dignidade da pessoa. Esta não pode ser entendida apenas como um apelo à ética, mas ter seu conteúdo verdadeiramente terminado e seguido pela conduta estatal e individual.
São insensibilidades presentes na justiça como esta que praticamente condenam bebês em estado grave de saúde à morte. Isto com a ressalva de que não cabe ao poder público a impugnação de equipamentos, insumos, exames, medicamentos e tratamentos com indicação médica. A justiça, de fato, se tornará justiça no conceito mais estrito da palavra, se houver reforma destas decisões da primeira instância, reconhecendo a tutela de urgência, assegurando o tratamento de home care e garanta a provisão dos equipamentos essenciais como o aparelho ventilador mecânico com bateria e bomba de infusão por seringa para a alimentação do paciente. Além da proteção à vida, o fornecimento visa o mínimo de qualidade e dignidade para o bebê.
*Ana Paula Souza Cury é especialista em Direito da Saúde e sócia fundadora do Souza Cury Advocacia.