Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Chegou ao fim no dia 31 de agosto de 2017 a ocupação do Haiti pelas tropas da Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti). Liderados pelo Brasil, os primeiros soldados desembarcaram em Porto Príncipe em 1° de julho de 2004 incumbidos de “restaurar a ordem e estabilizar o país” após a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide. Em situação de extrema vulnerabilidade, o Haiti amargava um cenário de guerra entre gangues rivais, além de uma grave crise política e econômica.
Desnudado o cinismo, logo se descobriu que a justificativa do governo brasileiro para liderar a ocupação não passava de engodo. Disseminada como ação humanitária, a intervenção objetivava conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ao fazer o trabalho sujo de pistoleiro de aluguel, o Brasil seria recompensado com as credenciais que autorizariam sua entrada no seleto grupo dos quinze países autoconsiderados xerifes do mundo. Em suma, um descarado oportunismo trasvestido de ação humanitária.
Contando com a aprovação do nosso desmoralizado Congresso Nacional e com a complacência da corrupta elite haitiana, o Brasil cumpriu o desonroso serviço de capanga da ONU durante exatos 13 anos. Dois anos após a chegada das tropas, as gangues que rivalizavam pelas ruas já estavam desmanteladas e o país praticamente pacificado. Ainda assim, a ocupação permaneceria por mais 11 longos anos.
Segundo Ricardo Seintenfus, representante especial da OEA no Haiti entre 2006 e 2011, “A Minustah sofreu 186 baixas, sendo mais da metade por ocasião do terrível terremoto de 12 de janeiro de 2010. A maioria das demais baixas foi provocada por acidentes, suicídios e enfermidades, sendo raros os soldados mortos em combate. Assim, das 27 vítimas brasileiras, nenhuma o foi em ação. Como explicar esta situação? Por uma razão singela: ao contrário das demais Operações de Paz patrocinadas pelas Nações Unidas, no Haiti não havia e não há guerra. Excetuando-se as gangues de Bel-Air e Cité Soleil —liquidadas em 2006—, durante os 11 anos restantes, os militares da Minustah não enfrentaram inimigos.”
Calcula-se que os 13 anos de intervenção tenham custado astronômicos US$ 7,2 bilhões de dólares, já os traumas psicológicos deixados em jovens violentadas por soldados criminosos são imensuráveis. O número de ocorrências relacionadas a abuso e exploração sexual ultrapassa 250 casos, a maior parte cometidas contra crianças e adolescentes, sem contabilizar aqueles que por medo de retaliações optaram por manter o silêncio.
A mídia comercial cimentou seu alinhamento com os poderosos e construiu uma cortina de fumaça para ofuscar os desmandos das tropas no país caribenho. Sem nenhum constrangimento, disseminou imagens de soldados voluntariosos, solidários, solícitos distribuidores de alimentos cercados de crianças sorridentes. Tais imagens contrastam com as reiteradas denúncias de violações de direitos humanos que essa mesma mídia fez questão de silenciar. Um verdadeiro jornalismo canalha, para não recorrer a eufemismos!
Mário Joseph, respeitado ativista de direitos humanos do Haiti, dispara: “Na TV, os soldados brasileiros dão comida e água. No Haiti, eles matam pessoas.” Mas sua voz, assim com diversas outras que denunciam os abusos, são menosprezadas pelos meios de comunicação hegemônicos.
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A propósito, quem se importa com a sorte dos haitianos? Quem se sensibiliza com o drama de milhares de pessoas em um país dilacerado por sanguinárias ditaduras, guerras civis, furacões, terremotos e epidemias?
Nossa sensibilidade é seletiva e só fingimos alteridade quando essas melhoram nossa própria imagem. Caso contrário, nada justificaria o descaso, a inoperância e as promessas de ajuda humanitária logo esquecidas após o terremoto que devastou o Haiti em 2010 – o pior até aqui registado.
Há exatos 213 anos o Haiti declarava independência da França e colocava um ponto final no odioso regime escravista, ousadia que custou um criminoso embargo econômico imposto pelas potências do período e a posterior bancarrota econômica capitalizada por uma elite local parasitária.
Condenado ao ostracismo em 1804, a punição do Haiti não terminou e segue seu curso devastador. Os capangas da Minustad deixaram a ilha, mas os pistoleiros da “nova missão humanitária” denominada Minujusth (Missão das Nações Unidas para o apoio à Justiça no Haiti) já preparam suas armas para ocupar em outubro um país que sempre teve seu direito de autoderminação negado.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político
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