Decisão judicial chancela as chamadas “terapias de reversão sexual” para homossexuais, de maneira a sugerir a homossexualidade como doença e, consequentemente, autorizando a aplicação da chamada “cura gay”
Fábio Góis, Congresso em Foco
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) vai recorrer da decisão de um juiz da 14ª Vara de Justiça do Distrito Federal que, proferida em caráter liminar (provisório), tem causado perplexidade e gerado reações enfurecidas nas redes sociais. Provocado a se manifestar sobre uma ação popular movida por uma psicóloga (veja vídeo abaixo), o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho manteve os termos da Resolução 01/99 que orientam profissionais de psicologia nos atendimentos sobre orientação sexual, mas errou na interpretação da norma, segundo o CFP. O juiz chancela as chamadas “terapias de reversão sexual” para homossexuais, de maneira a sugerir a homossexualidade como doença e, consequentemente, autorizando a aplicação da chamada “cura gay”.
O juiz Waldemar garante, na prática, que psicólogos que ofereçam tratamento para homossexuais não sejam punidos, desde que promovam tais atendimentos de maneira discreta, sem publicidade ou alarde. Para o magistrado, a resolução do CFP proíbe “o aprofundamento dos estudos científicos relacionados à (re) orientação sexual” e afeta a “liberdade científica” no Brasil. “E, por consequência, seu patrimônio cultural, na medida em que impede e inviabiliza a investigação de aspecto importantíssimo da psicologia, qual seja, a sexualidade humana”, acrescenta o magistrado.
A ação foi movida pela psicóloga Rozangela Alves Justino (CRP 1977), que sofreu processo de censura pública no CFP por oferecer tratamento para pessoas que querem deixar a atração por pessoas do mesmo sexo. Graduada em Psicologia no Rio de Janeiro desde 1981, Rozangela diz que a postura do Conselho é “nazista” (veja no vídeo abaixo).
Veja no vídeo:
“Estou sendo discriminada e acusada injustamente. Sempre tive uma afeição muito grande pelas pessoas que vivenciam a homossexualidade. Até mesmo os ativistas do movimento pró-homossexualismo eu trato de forma respeitosa”, diz Rozangela, que há 21 anos defende o tratamento para pessoas que o procurem voluntariamente. “Existem muitas pessoas em estado de sofrimento psíquico que, numa revisão de vida, querem a oportunidade de serem apoiadas para sair da homossexualidade.”
O Conselho Federal de Psicologia diz que a decisão do juiz, na prática, deturpa o texto normativo segundo o qual a homossexualidade não é tratada como doença, distúrbio ou perversão, abrindo expediente “perigoso”. “A decisão liminar, proferida nesta sexta-feira (15/9), abre a perigosa possibilidade de uso de terapias de reversão sexual. A ação foi movida por um grupo de psicólogas (os) defensores dessa prática, que representa uma violação dos direitos humanos e não tem qualquer embasamento científico”, diz trecho de texto publicado pelo CFP (leia íntegra abaixo).
Defendendo os termos de sua resolução, a entidade enfatiza o entendimento da Organização Mundial de Saúde sobre orientação sexual. “Na audiência de justificativa prévia para análise do pedido de liminar, o Conselho Federal de Psicologia se posicionou contrário à ação, apresentando evidências jurídicas, científicas e técnicas que refutavam o pedido liminar. Os representantes do CFP destacaram que a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) – entendimento reconhecimento internacionalmente. Também alertaram que as terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico”, acrescenta a entidade, alertando para os efeitos deletérios da decisão para a questão do combate à homofobia.
A liminar do juiz federal, publicada na última sexta-feira (15), acata parcialmente a ação popular, que na verdade abre brechas para que terapias de “reversão sexual” virem um nicho de mercado no Brasil. O juiz estabelece que a Resolução 01/99 pode ser livremente interpretada por profissionais de psicologia que atendam pacientes em busca de reorientação sexual. Para o CFP, trata-se de uma decisão indevida, uma vez que a livre interpretação estimularia as terapias de reversão sexual – que, para a entidade, podem intensificar o sofrimento psíquico dos pacientes em conflito de identidade.
“O que está em jogo é o enfraquecimento da Resolução 01/99 pela disputa de sua interpretação, já que até agora outras tentativas de sustar a norma, inclusive por meio de lei federal, não obtiveram sucesso. O Judiciário se equivoca, neste caso, ao desconsiderar a diretriz ética que embasa a resolução, que é reconhecer como legítimas as orientações sexuais não heteronormativas, sem as criminalizar ou patologizar. A decisão do juiz, valendo-se dos manuais psiquiátricos, reintroduz a perspectiva patologizante, ferindo o cerne da Resolução 01/99”, reclama o CFP.
“Cura gay”
A questão da homossexualidade como doença ganhou força com o crescimento da bancada conservadora no Congresso, depois das eleições de 2014. Encabeçados pelo ex-deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ), preso por imposição da Operação Lava Jato e condenado a 15 anos e quatro meses de prisão, parlamentares da chamada “bancada da Bíblia” não só passaram a tratar a homossexualidade como doença como propuseram proposições para regulamentar o que chamam de “cura gay”.
Um dos expoentes desse movimento é o deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP). Ao menos oficialmente, ele diz não querer ver seu nome vinculado a polêmicas com a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), mas em abril de 2015 ele deu início a uma campanha em favor da tal cura gay. O parlamentar tentou articular, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara, a aprovação de legislação nesse sentido, e até sugeriu a realização de audiências públicas para ouvir os “ex-gays”, mas a forte reação de grupos LGBT frustraram o avanço da iniciativa.
Em sua página de Facebook, Feliciano chegou a postar vários vídeos com depoimentos de pessoas que “deixaram a homossexualidade” – segundo o parlamentar, após terem passado por outro tipo de “conversão”, a religiosa. Com os filmetes, o deputado queria chamar a atenção para o que ele chama de “duplo preconceito” vivido por pessoas que deixaram de ser gays.
Mesmo na legislatura anterior àquela protagoniza por Cunha, ex-presidente da Câmara, a questão era levada a sério. O deputado Anderson Ferreira (PR-PE) apresentou, em 3 de julho de 2013, um projeto de decreto legislativo para retomar a tramitação da cura gay. A proposta, que havia sido arquivada no dia anterior, pretendia justamente sustar a resolução do CFP, cuja leitura correta proíbe profissionais de tratarem homossexualismo como doença desde 1999. O conteúdo da proposta apresentada pelo deputado do PR é exatamente igual ao da que foi arquivada e, já encerrado o prazo para apresentação de emendas, está pronto para votação na Comissão de Seguridade Social da Câmara.
Leia a íntegra da manifestação do Conselho Federal de Psicologia:
A Justiça Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal acatou parcialmente o pedido liminar numa ação popular contra a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que orienta os profissionais da área a atuar nas questões relativas à orientação sexual. A decisão liminar, proferida nesta sexta-feira (15/9), abre a perigosa possibilidade de uso de terapias de reversão sexual. A ação foi movida por um grupo de psicólogas (os) defensores dessa prática, que representa uma violação dos direitos humanos e não tem qualquer embasamento científico.
Na audiência de justificativa prévia para análise do pedido de liminar, o Conselho Federal de Psicologia se posicionou contrário à ação, apresentando evidências jurídicas, científicas e técnicas que refutavam o pedido liminar. Os representantes do CFP destacaram que a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) – entendimento reconhecimento internacionalmente. Também alertaram que as terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico.
O CFP lembrou, ainda, os impactos positivos que a Resolução 01/99 produz no enfrentamento aos preconceitos e na proteção dos direitos da população LGBT no contexto social brasileiro, que apresenta altos índices de violência e mortes por LGBTfobia. Demonstrou, também, que não há qualquer cerceamento da liberdade profissional e de pesquisas na área de sexualidade decorrentes dos pressupostos da resolução.
A decisão liminar do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho mantém a integralidade do texto da Resolução 01/99, mas determina que o CFP a interprete de modo a não proibir que psicólogas (os) façam atendimento buscando reorientação sexual. Ressalta, ainda, o caráter reservado do atendimento e veda a propaganda e a publicidade.
Interpretação – O que está em jogo é o enfraquecimento da Resolução 01/99 pela disputa de sua interpretação, já que até agora outras tentativas de sustar a norma, inclusive por meio de lei federal, não obtiveram sucesso. O Judiciário se equivoca, neste caso, ao desconsiderar a diretriz ética que embasa a resolução, que é reconhecer como legítimas as orientações sexuais não heteronormativas, sem as criminalizar ou patologizar. A decisão do juiz, valendo-se dos manuais psiquiátricos, reintroduz a perspectiva patologizante, ferindo o cerne da Resolução 01/99.
O Conselho Federal de Psicologia informa que o processo está em sua fase inicial e afirma que vai recorrer da decisão liminar, bem como lutará em todas as instâncias possíveis para a manutenção da Resolução 01/99, motivo de orgulho de defensoras e defensores dos direitos humanos no Brasil.
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