O ato final do ex-secretário de Meio Ambiente paulista foi sumir com uma estátua do guerrilheiro no Vale do Ribeira, esbravejando contra “herói ideológico”. Reavivou uma memória incômoda, que inclui bombardeios de napalm pela ditadura
Natalia Viana, Agência Pública
Encaixotado e escondido em um canto qualquer está o símbolo maior do ocaso do ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, Ricardo Salles (PP), que deixou o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) na semana passada. No dia 8 de agosto, um dia depois de ter assinado a carta de renúncia da pasta que comandou por um ano, Salles decidiu marcar sua saída com um gesto grandioso.
Em visita ao Parque do Rio Turvo, na região do Vale da Ribeira, sul do Estado de São Paulo, indignou-se com um busto do capitão Carlos Lamarca, líder guerrilheiro da organização VPR, que lutava contra a ditadura, e ordenou que o coronel Alberto Malfi Sardilli, comandante da PM Ambiental, que estava ao seu lado, retirasse a estátua. Além dela, o secretário proibiu de figurar no Museu do Parque um painel que contava a passagem de Lamarca e outros oito guerrilheiros por aquela região em 1970, onde estabeleceram um campo de treinamento.
Segundo relatos de funcionários do parque, o então secretário esbravejou que a estátua estava “plantando o comunismo no coração das crianças”.
“Pra mim ele não justificou nada não”, disse o prefeito de Cajati, que acompanhava a visita, à Agência Pública. “Simplesmente quando veio o secretário junto com o coronel, ele disse: ‘Pode tirar isso aqui’. Quem retirou foi o funcionário do parque, e perguntou se tinha como eu ajudar a tirar, pôr no carro.”
O gesto de Ricardo Salles, advogado e fundador da página Endireita Brasil, antecedeu em cinco dias o conflito que eclodiu em Charlottesville, nos Estados Unidos, por conta justamente dos planos de retirar a estátua em homenagem a Robert E. Lee, um general confederado durante a Guerra Civil Americana, símbolo dos brancos sulistas que defendiam a permanência da escravidão. Em protesto, uma marcha de brancos supremacistas levou a confrontos que deixaram três mortos e 34 feridos. Nos dias seguintes, dezenas de estátuas semelhantes foram derrubadas em diversas cidades dos Estados Unidos, abrindo uma grande discussão sobre o papel da preservação da história e a exaltação de ideologias racistas.
Por aqui, em Cajati, onde fica o Parque do Rio Turvo, os cerca de 30 mil habitantes mal ficaram sabendo da queda da estátua. O artefato tampouco lembra o garboso monumento americano: pesa 40 quilos, é feito de cimento e coberto de piche. E não guarda lá tanta semelhança com Lamarca.
Feita de maneira sorrateira e sem anúncio no Diário Oficial, a retirada do busto e do painel – este custou aos cofres públicos cerca de R$ 12 mil – foram justificados por Ricardo Salles por meio de nota ao site Direto da Ciência: “Narrar fatos é uma coisa. Erguer bustos com dinheiro público e em parque público é bem diferente. Marighella [sic] foi um guerrilheiro, desertor e responsável pela morte de inúmeras pessoas. A presença desse busto no local é inadmissível”. À coluna de Mônica Bergamo, na Folha, o secretário disse: “Parque não é lugar para ter busto de herói ideológico de nenhum lado”.
A retirada não gerou protestos da população, mas um zunzunzum no Facebook. A filha de Lamarca, Claudia Pavan Lamarca, chamou o ato de “autoritário”. “Resta a figura minimizada e patética do homem, travando uma ‘luta’ irracional com um fragmento de rocha e metal inerte. A cena, mais do que grotesca e medieval, traduz o MEDO que a figura do Lamarca ainda provoca nos representantes da direita”.
A professora de geografia e pesquisadora Lisângela Kati do Nascimento, que estudou o ensino de história nas escolas ao redor do parque, manifestou sua indignação em outro post. “Eu joguei nas redes sociais e falei a população não está sabendo sobre isso. Foi totalmente arbitrário da parte do secretário”, disse em entrevista à Pública. “A referência a Lamarca é superforte na memória da população de Cajati. Poderia ser retirado se tivesse uma consulta pública, junto à população, decidindo tirar. Mas ele mandar tirar é tipo chamar a população de ignorante.”
Inaugurada em 2012, a estátua foi uma decisão do Conselho do Parque, integrado por membros do poder público e da comunidade. Um deles é o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Adilson Vieira Alves. “A intenção quando se levantou essa proposta era ele ser mais um atrativo para visitação. Aqui no parque tem a própria cachoeira, com o nome de Noiva do Capitão, e tem uma cachoeira menor que tem o nome de cachoeira do Lamarca, que foi onde eles ficaram na época da guerrilha.” Os recursos vieram da construção de um pedágio da rodovia BR-116. O valor total da construção do museu foi de R$ 640 mil. “O mais interessante é que ele é o terceiro secretário que visitou o núcleo e os dois anteriores não se importaram, nem o Xico Graziano nem o Pedro Ubiratan.”
No dia da inauguração, alguns dos ex-integrantes da guerrilha foram participar das fotos oficiais. “Tem uma foto com os companheiros, o sargento Darcy Rodrigues também foi lá, eu fui convidado por um camarada que trabalhava na secretaria do Meio Ambiente”, relembra José Araújo Nóbrega, o sargento Nóbrega, um dos militares que se juntaram a Lamarca para treinamentos na região. “Pra ser sincero, eu nunca pensei que fossem chegar ao nível a que chegaram. Isso é muito baixo”, revolta-se. “Isso é tão pequeno… Eles vão mexer com um busto!”. Para ele, a ação do ex-secretário não foi nada mais do que uma “jogada de marketing”. “Ele fez isso pra aparecer. Pra poder aparecer como de direita.”
Passaram-se semanas até que a reclamação fosse ouvida por alguns políticos. Mais precisamente, dois. O deputado Luiz Turco, do PT, fez uma moção de repúdio na Assembleia Legislativa estadual no dia 24 de agosto. “Você já pensou se qualquer cidadão sair quebrando estátua por aí porque gosta ou não gosta? Pega o pessoal da esquerda e sai quebrando essas estátuas que tem aqui em São Paulo, com nome de torturador, generais?”, disse à Pública o vice-presidente da comissão de Meio Ambiente do Legislativo. “Não é justo. É uma coisa simples, mas simbólica.”
O deputado Carlos Giannazi, do Psol, foi além e protocolou uma ação do Ministério Público Estadual por improbidade administrativa e dilapidação do patrimônio público. A ação ainda não foi distribuída, mas, segundo o deputado, Salles terá de responder mesmo longe da vida pública. “Ele não podia ter feito aquilo pelo fato de ter diferenças ideológicas.”
Mas, afinal, onde foi parar o busto? Procurada pela Pública, a Secretaria do Meio Ambiente se recusou a responder. “A Fundação Florestal está apurando o caso, mas, como estamos passando por um momento de transição de comando tanto na FF como na Secretaria de Meio Ambiente, não temos nada a comentar no momento”, afirmou em nota a fundação responsável pelos parques paulistas.
Já o prefeito de Cajati, que garante que na cidade ninguém ligou muito para a retirada do busto, disse que também não tem nem ideia do seu paradeiro. “O busto saiu numa viatura da Policia Ambiental. Levou o busto, não sei se tá aqui no registro pra onde foi. Parece, pelo que eu vi, que iam devolver o rapaz que não recebeu o pagamento”, explica o prefeito. É que a pendenga também levantou fantasmas antigos, como o do pagamento do jornalista Luiz dos Passos, que garante ter feito o busto e jamais ter sido recompensado. Luiz disse que demorou 15 dias para fazer a estátua, que pesa 40 quilos e é feita de ferro, cimento e brita. “É bem artesanal mesmo. Depois que o cimento secou, foi pintado com piche para ficar preto”, diz ele, que se baseou em uma foto que achou na internet. A estátua, entretanto, ainda não está finalizada. “O que falta? Como só foi passado piche, não foi lixada, eu ia passar uma resina para ficar com a aparência bem legal.”
E agora?
A saída de Salles foi à Trump: dois dias antes de sua renúncia ter aparecido no Diário Oficial, ele anunciou no seu Facebook com alarde que sairia da pasta, deixando a secretaria uma bagunça – e um rastro de acusações no seu encalço. É alvo de uma ação civil pública sob a acusação de ter alterado ilegalmente o zoneamento da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, que envolve 12 municípios , alterando mapas para beneficiar indústrias e empresas de mineração. O MP estadual também instaurou um inquérito para investigar sua iniciativa de chamar empresários para discutir a concessão ou venda de 34 áreas do Instituto Florestal sem a devida autorização do legislativo.
Além do busto, claro, que virou um enorme pepino para o novo secretário do Meio Ambiente, Maurício Brusadin, expert em comunicação digital e sócio de Xico Graziano.
“Essa é uma pergunta que eu faço querendo esclarecimento. O que ele [Ricardo Salles] fez com o busto? Ele vai ter que devolver esse busto. Vou acompanhar”, garante o deputado Carlos Giannazi, celebrando a saída do ex-secretário. “Já vai tarde.”
Procurado por e-mail, Ricardo Salles não respondeu ao pedido de entrevista.
Passada a onda de repercussão pelo Facebook, Lisângela Kati diz ter poucas esperanças de que a estátua volte à cidade onde nasceu. “Eu gostaria muito que tivesse alguma resposta, mas eu não acredito muito que tenha. Só teria se a população estivesse se mobilizando mais intensamente”, diz.
Já o sargento Nóbrega revela certo otimismo. “Aquele busto não atrapalhava nada, inclusive era um busto muito malfeito, me desculpe dizer. Tomara que agora façam um busto melhor.”
Um passado mais horroroso do que a estátua
Embora feio e coberto de piche, o busto de Lamarca representava, para a pequena comunidade de Cajati algo muito maior do que o próprio guerrilheiro: uma história de terror em que foi envolvida no ano 1970 e sobre a qual não se aprende nas escolas.
A Pública descobriu em 2015 que o local foi alvo de bombardeios de napalm pela Força Aérea Brasileira durante a ditadura, na busca para capturar Lamarca e outros oito guerrilheiros que alugaram um sítio no local para fazer treinamentos. Além de um documento relatando o uso, assinado pelo adido militar francês, encontramos fragmentos das bombas de napalm atiradas pelos aviões T6 e B26, da FAB. Os fragmentos foram entregues para o Ministério Público estadual. Encontramos 12 testemunhas dos bombardeios e fomos levados por moradores a locais onde ainda se veem crateras feitas pelas bombas.
A Operação Registro mobilizou 2.954 homens, entre membros do Centro de Informações do Exército, regimentos de infantaria e paraquedistas das forças especiais, policiais da Policia Militar e Rodoviária de São Paulo e do Dops. Durante 30 dias de cerco, a população foi torturada, houve prisões massivas e bombardeios. Os militares decretaram “toque de recolher” durante a noite. Os que se atreviam a sair sem permissão eram presos durante dias.
Luiz dos Passos, o jornalista e autor da obra, tinha apenas oito anos quando caíram as bombas. “Eu vi os bombardeios. A minha casa era de frente pra serra onde era feita a busca deles pelo Exército. E via o comentário das pessoas que vinham do sítio, contavam que o pessoal do Exército abordava os moradores”, lembra.
“Tem pesquisadores que dizem que o vale tem antes do Lamarca e depois do Lamarca”, explica Ocimar Bin, pesquisador do Parque do Rio Turvo e ex-gestor da área. “Depois vieram investimentos em infraestrutura, escolas. O Estado passou a ter um olhar para a região.” Para ele, o cerco é ainda mais relevante na memória de uma população que é extremamente rural ainda hoje. “O acontecimento na época foi uma coisa muito grandiosa, bombardeio, 3 mil homens, houve um grande tiroteio em Eldorado, que é uma cidadezinha. A figura de Lamarca ficou muito comentada. E essas histórias de tortura deixaram marcas nas pessoas.”
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