A grande dificuldade do setor elétrico brasileiro não são os seus problemas específicos, mas a atual fragilidade das instituições brasileiras. A definição de uma agenda para o setor passa por três movimentos básicos
Ronaldo Bicalho, Infopetro
A definição de uma agenda para o setor elétrico brasileiro passa por três movimentos básicos:
Em primeiro lugar, é necessário inserir essa agenda no contexto das grandes transformações estruturais que definem o momento atual do setor elétrico no mundo.
Em segundo lugar, é preciso situar essa agenda no quadro de esgotamento do modelo de operação/expansão do setor elétrico brasileiro baseado na exploração do potencial hidráulico via construção de grandes reservatórios.
Em terceiro lugar, é imprescindível articular as duas agendas representadas pela transição elétrica mundial e pela transição elétrica brasileira, de maneira a estabelecer um horizonte de possibilidades que incorpore as amplas oportunidades abertas pela reestruturação mundial da indústria elétrica em direção às renováveis.
Tanto a transição mundial quanto a brasileira partem do esgotamento das suas bases de recursos naturais tradicionais. Esse esgotamento é gerado fundamentalmente por pressões de caráter político institucional que se traduzem nas restrições ao uso dos combustíveis fósseis e à construção de usinas hidrelétricas com reservatórios. Essas limitações nascem, respectivamente, da necessidade de mitigar os efeitos da mudança climática e de reduzir os impactos socioambientais locais da construção dessas grandes barragens, principalmente na região amazônica.
Uma característica importante comum às duas transições é que elas não ocorrem a partir do esgotamento efetivo dos respectivos recursos. Nem elas se dão em função do surgimento de novos recursos mais promissores. De fato, elas resultam de um impedimento institucional de acesso a esses recursos. Nesse caso, pode-se afirmar que a idade da pedra não está acabando por falta de pedra, tampouco porque surgiu algo melhor do que as pedras. Na verdade, ela está acabando porque foi proibido o uso das pedras.
Embora partam da mesma situação de indisponibilidade institucional da sua base tradicional de recursos naturais, os destinos das duas transições não são necessariamente os mesmos.
Se no caso dos países centrais o resultado esperado é a descarbonização da matriz elétrica, no caso brasileiro o resultado esperado pode ser exatamente o contrário, ou seja, a carbonização da matriz de geração do país.
Descontextualizada do que acontece no mundo, a transição brasileira leva à utilização crescente das térmicas, com a introdução das novas renováveis (eólica e solar) acirrando os problemas resultantes da redução da capacidade de regularização dos reservatórios.
Nesse quadro, as novas renováveis são um problema a mais e as térmicas são uma solução. Solução que é reforçada justamente a partir da introdução dessas renováveis. Desse modo, as novas renováveis, além de não serem solução, são, de fato, um problema.
Por outro lado, as térmicas, assim como a carbonização nelas embutidas, além de não serem problema, são, na verdade, uma solução.
Essa é a concepção que estrutura a agenda real do setor elétrico brasileiro hoje e que a encaixota dentro de limites extremamente estreitos.
A questão aqui não é simplesmente reconhecer a importância dos incentivos à introdução das fontes renováveis, mas compreender a natureza das transformações profundas que essa introdução engendra. Não basta identificar os problemas a serem resolvidos nessa introdução, mas identificar as enormes oportunidades representadas pela transformação radical do setor elétrico que essa mesma introdução enseja. Em outras palavras, não se trata de problemas a serem resolvidos, mas oportunidades a serem aproveitadas.
Isso não é frase de livro de autoajuda, mas o que de fato está acontecendo no setor elétrico no mundo. A estratégia alemã é fruto da identificação da transição energética como oportunidade. O mesmo se repete com a estratégia chinesa.
Nesse sentido, o primeiro movimento de construção de uma agenda estratégica do setor elétrico brasileiro é contextualizar a nossa transição no interior da transição elétrica mundial.
Esse movimento redimensiona a transição elétrica brasileira, colocando como objetivo final a ampliação significativa da participação das novas renováveis na matriz elétrica. Assim, embora os pontos de partida das transições sejam distintos, o ponto de chegada pode ser o mesmo.
Na medida em que os avanços tecnológicos, organizacionais e institucionais que irão configurar o novo setor elétrico no mundo sairá da resolução dos problemas técnicos, econômicos, organizacionais e institucionais associados à introdução das novas renováveis, fazer convergir a nossa agenda com a agenda internacional nos permite ser beneficiários desses avanços.
A partir dessa contextualização cabe identificar aqueles fatores que favorecem o setor elétrico brasileiro nessa transição.
A grande capacidade de estocagem de energia do conjunto de reservatórios brasileiros, a flexibilidade das centrais hidrelétricas e o sistema de transmissão extenso e robusto qualificam de forma indiscutível o setor elétrico do país frente a transição elétrica.
É evidente que o país detém vantagens competitivas na introdução das novas renováveis que vão além das condições privilegiadas do potencial eólico e solar no país.
Para aproveitar essas vantagens é necessário reinventar a indústria elétrica brasileira sob a ótica ampla da transição elétrica, sem perder de vista as nossas especificidades; principalmente aquelas que fundam o nosso sucesso inquestionável na exploração de uma fonte intermitente, como é a hidroeletricidade: a coordenação centralizada do conjunto dos reservatórios.
Contudo, esse tipo de visão estratégica demanda um protagonismo institucional que está completamente ausente no atual momento brasileiro em que o mote do Estado mínimo figura como o suprassumo da modernidade contemporânea. Mote que no caso do setor elétrico não é nem moderno, nem contemporâneo.
Se nos países centrais, o Estado assume um papel relevante e imprescindível na gestão/arbitragem dos elevados custos econômicos, sociais e políticos envolvidos na transição, por aqui advoga-se a sua completa retirada, baseada na nossa completa incapacidade de controlar nossa tendência a corromper ou ser corrompidos. Portanto, cabe reduzir ao mínimo a relação entre as esferas pública e privada. Se isto é bastante discutível como tese geral em uma sociedade capitalista, no caso do setor elétrico é uma impossibilidade. Se considerarmos o momento do setor elétrico no mundo e no Brasil isto é simplesmente uma insanidade; advinda de uma visão messiânica que contempla a automutilação do Estado como a única institucionalidade possível para conter a corrupção na relação entre o público e o privado.
A aceleração da liberalização dos mercados, via a expansão do mercado livre, e da fragmentação do setor, via as privatizações, implode o setor elétrico brasileiro e liquida com qualquer possibilidade de construção de um protagonismo brasileiro na nova indústria elétrica.
Nesse sentido, o setor elétrico brasileiro precisa de uma agenda que contemple uma visão estratégica que articule as transformações setoriais que estão acontecendo no mundo e no país. Não é uma tarefa simples, mas também não seria a primeira vez que isto ocorreria na história do setor elétrico do país. Os momentos em que se observou avanços significativos na indústria elétrica nacional foram justamente aqueles em que se conseguiu fazer essa articulação.
A grande dificuldade do setor elétrico brasileiro não são os seus problemas específicos, mas a atual fragilidade das instituições brasileiras. É essa fragilidade que explica, não apenas a mediocridade estratégica das propostas do governo Temer para o setor, mas, acima de tudo, a imensa irresponsabilidade econômica e social que elas ensejam, simplesmente detonando o setor elétrico brasileiro. Essa irresponsabilidade é fruto de um completo descolamento entre a agenda governamental e a dificílima realidade do setor elétrico no Brasil e no mundo. Um descolamento que raramente se viu na história desse setor, desde o seu começo em Campos dos Goytacazes, meses depois de Thomas Edison inaugurar a primeira central americana. O setor elétrico brasileiro nasceu sob o signo da contemporaneidade e pode morrer sob o peso da extemporaneidade.
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