Embora sem pretensões políticas, “Últimos dias em Havana”, de Fernando Pérez, expõe um país ambíguo, sensual e maroto, quase sempre oculto pelos clichês
José Geraldo Couto, blog IMS
Em nosso quase monolítico circuito exibidor, a mera presença de um filme cubano é um fato a ser valorizado. Sobretudo quando se trata de um filme muito bom, como Últimos dias em Havana, de Fernando Pérez.
É um daqueles dramas sociais que buscam um equilíbrio delicado entre estudo de personagens concretos e observação crítica do espaço histórico-geográfico em que se movimentam. Não muda o mundo nem o cinema, mas é uma obra íntegra e envolvente, temperada por um humor saboroso. Chega a lembrar o cinema social italiano pós-neorrealismo.
Em seu núcleo dramático está a amizade peculiar entre dois homens de meia-idade que dividem um apartamento num cortiço de Havana: Diego (Jorge Martínez), homossexual soropositivo que, debilitado pela doença, passa seus dias na cama, vendo filmes pornográficos, e Miguel (Patricio Wood), seu amigo de adolescência, que cuida dele e da casa e trabalha numa lanchonete.
Diego, embora próximo da morte, é exuberante, espirituoso, maroto. Miguel, ao contrário, é um homem lacônico e taciturno, que ocupa seu tempo livre tentando aprender inglês com um dicionário e uma versão em prosa de As you like it, de Shakespeare. Sua ideia fixa é migrar para os Estados Unidos, e ele vive à espera do visto que chegará pelo correio.
Miséria e energia
Em torno dessa relação central gravitam personagens diversos, todos plenos de contraditória humanidade: a tia perua decadente de Diego; sua sobrinha Yusi (Gabriela Ramos), grávida aos 15 anos; a velha negra Fefa (Carmen Solar), uma espécie de síndica informal do cortiço; o garoto de programa P3 (Cristian Jesus Pérez) etc.
Mais do que isso: a narrativa é porosa ao rebuliço da vida cotidiana na Habana Vieja, com suas habitações coletivas, sua algaravia, seus imóveis e automóveis caindo aos pedaços, sua pluralidade étnica, sua mistura inextricável de miséria e energia vital. Em muitos momentos, abstraindo o idioma e certos detalhes (como a presença de bicicletas de entrega, em vez de motoboys), poderíamos pensar que estamos no Brasil – mais precisamente na Bahia.
A decupagem é clássica, sem grandes invenções visuais, mas com algumas sutilezas dignas de nota. Há um aproveitamento sagaz da situação de contiguidade/promiscuidade implicada pelo ambiente de cortiço. Muitas coisas são vistas de passagem, por frestas, portas e janelas entreabertas, corredores parcialmente atulhados de cacarecos. Algo parecido com o desvelamento coletivo do hotel fuleiro de Amarelo manga, de Claudio Assis.
A câmera está sempre à altura do olho. Mas do olho de quem? Essa é a questão. Nas cenas no quarto de Diego, vemos tudo à meia altura, correspondendo ao nível dos olhos do personagem, ainda que sem adotar exatamente o seu ponto de vista. Uma cena, em particular, é admirável nesse aspecto. Começa com o quadro quase todo escuro, com uma única fresta vertical por onde vemos e ouvimos fragmentos de uma conversa de Diego com sua prima. Quando a prima sai do quarto, abre-se a porta do guarda-roupas e de dentro sai a adolescente Yusi, que estava ali escondida da mãe.
Sair ou ficar
Outro ponto admirável é a desenvoltura com que se acompanham as caminhadas de Miguel pelas ruas de Havana, com seu contraste entre o ambiente diurno e o noturno. Compare-se o movimento deslizante das primeiras caminhadas com a última, filmada com uma brusca e dramática câmera na mão, sublinhando visualmente o estado emocional do personagem.
Há um comedimento, quase um pudor, que impede a queda no melodrama. Mesmo as pequenas epifanias suscitadas por música sublime recebem um álibi “realista”: uma ária de Händel sai da TV da lanchonete em que Miguel trabalha; uma sonata de Beethoven, do rádio do táxi-lotação que ele toma (numa das sequências mais belas do filme).
Permeando tudo, implícita ou explicitamente, está o dilema entre sair ou não sair de Cuba, que marca o cinema do país pelo menos desde Memórias do subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea. Vale reparar na diferença de atitude entre os mais velhos, que viveram os primeiros tempos da Revolução e ainda se pautam por suas questões e sua linguagem, e os jovens que se desinteressam da política e tendem a uma atitude pragmática, quase amoral, de viver da maneira mais prazerosa possível o dia a dia, momento a momento.
Um filme de cinema
Entra em cartaz também, dois anos depois de pronto, um documentário que é uma festa para os cinéfilos: Um filme de cinema, realizado por um dos maiores diretores de fotografia do país, Walter Carvalho, diretor, ele próprio, de filmes como Budapeste, Cazuza (em parceria com Sandra Werneck) e Janela da alma (em parceria com João Jardim), além de documentários sobre Raul Seixas e Antonio Nóbrega.
Aqui, Carvalho entrelaça entrevistas com grandes cineastas (Béla Tarr, Andrzej Wajda, Jia Zhang-ke, Julio Bressane, Ruy Guerra, Gus Van Sant, Ken Loach, Lucrecia Martel, Hector Babenco, Karim Aïnouz) com cenas de filmes desses autores e ensaios visuais em torno de temas relacionados ao cinema em geral, em seus aspectos de experimentação poética e de espetáculo popular.
Vale por um curso livre de cinema. O modo como Carvalho costura as conversas, girando em torno de algumas questões-chave, faz emergir uma diversidade enorme de concepções entre os diretores, que oscilam, grosso modo, entre a pesquisa estética radical (Bressane) e um cinema mais clássico, empenhado num corpo a corpo com a realidade imediata (Loach), com os muitos matizes entre um extremo e outro.
As entrevistas foram realizadas em distintos lugares e momentos, várias delas em sets de filmagem em que o próprio Walter Carvalho participou como diretor de fotografia: Carandiru, de Babenco, O veneno da madrugada, de Ruy Guerra, Filme de amor, de Bressane. Outras foram feitas em ambientes caros a seus realizadores: a sala de montagem de Béla Tarr, o ateliê de Gus Van Sant etc.
Aproximação estética
O interessante é que, com a ajuda dos diretores de fotografia Lula Carvalho (seu filho) e Pablo Baião, o diretor buscou uma aproximação entre o visual das entrevistas e o das obras abordadas. Por exemplo, a conversa com Béla Tarr parece buscar a textura granulada do preto e branco caro ao cineasta húngaro, com todos os matizes do cinza. Ruy Guerra fala sob a iluminação fantasmagórica, expressionista, de O veneno da madrugada, com sua sombra enorme projetada de baixo para cima na fachada de uma igreja.
Um toque ainda mais pessoal abre e fecha o filme: na parede de um cinema em ruínas no interior da Paraíba (estado do diretor) projetam-se imagens dos filmes pioneiros de Muybridge e Marey, anteriores ao próprio cinematógrafo Lumière.
Dois únicos senões. Um deles é o tempo que se perde com as considerações pseudocientíficas e filosóficas de um cineasta mediano e convencional como José Padilha, contrastando com a sabedoria de verdadeiros criadores como Tarr, Wajda ou Bressane. O outro é o bloco inteiro dedicado ao impacto da realização de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, sobre o vilarejo siciliano onde foi filmado. Daria talvez um outro filme, e bem interessante, mas soa um tanto deslocado no documentário.
Nada disso, porém, chega a empanar o brilho do filme, nem diminuir o prazer que ele proporciona.
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