Catalunha x Espanha. Baseada em 4 pontos, diretora do think tank britânico Institute for Government publicou no The Guardian uma proposta sensata e racional para solucionar a crise
Flávio Aguiar, RBA
Um filme francês de 1956 marcou minha primeira juventude: Se todos os homens do mundo…, de Christian-Jacques. Ambientado na época da Guerra-Fria, ele narra as peripécias em torno da tripulação de um pesqueiro bretão, o Lutèce, de Concarneau.
No tempestuoso e gelado Mar do Norte, os marinheiros se veem acometidos de botulismo, por conta de um presunto estragado que todos comeram. Todos? Não, o único que não comeu é Mohammed (Doudou Babet) que, como bom muçulmano, não come suínos e derivados. Em consequência disto, no clima paranoide que se instala no pesqueiro, alguns marujos o acusam de ter envenenado o presunto.
O operador de rádio, apesar do aparelho oficial estar avariado, consegue uma comunicação precária com um radioamador do Togo, na África. Através de uma rede intercontinental de radioamadores e da boa vontade de aeromoços e pilotos de companhias aéreas, é possível localizar as doses necessárias do antídoto para enviá-las à Noruega, de onde seria possível fazer com que chegassem ao navio. Um dos pontos mais dramáticos desta cadeia de solidariedade se dá em Berlim. O pacote com as doses do remédio chega a Berlim Oriental, e um piloto norte-americano deve apanhá-lo para levá-lo a Berlim Ocidental afim de pô-lo em outro avião para a Noruega. Mas o oficial é detido num posto de controle soviético, cujo comandante exige que seu conteúdo seja examinado em laboratório. Um precioso tempo se escoa, e o pacote perde o voo em Tempelhof, do lado ocidental.
Mas depois do exame, o oficial soviético ordena que ele seja posto em outro voo, do lado oriental, com o mesmo destino. Chegado à Noruega, o pacote adentra o outro avião salvador. Mas ele deve ser lançado de paraquedas sobre o convés do navio. O vento empurra o pacote e seu paraquedas para longe, e ele cai no mar gelado. Então o acusado e segregado Mohammed se joga no mar e consegue trazer o pacote para o navio, salvando os marujos que eram seus acusadores.
Em meio à irracionalidade da Guerra Fria, o filme sustenta a racionalidade solidária, utopicamente. Lembra aquela frase: “sejamos realistas, queiramos o impossível”. Uma curiosidade: no filme, o então praticamente desconhecido, depois astro, Jean-Louis Trintignant, faz uma ponta, a do radioamador parisiense Jean-Louis Lavergne.
Agora estamos diante de uma outra irracionalidade: Catalunha x Espanha, Puigdemont x Rajoy. Estamos marchando para o Apocalipse: pela primeira vez desde o fim do franquismo, um governo central espanhol vai intervir numa província, destituir o governo local, colocando-a sob a mira da Guardia Civil, “monitorando” seu Parlamento, ninguém sabendo o que vem a seguir.
No meio desta confusão, a diretora do think tank britânico Institute for Government publicou no The Guardian uma proposta racional para resolver a crise, que me parece bastante sensata, baseada em quatro pontos:
1. O governo espanhol propõe uma moratória de três anos na questão, comprometendo-se a ele, mesmo, governo de Madri, a organizar um plebiscito dentro deste prazo sobre a questão da independência, comprometendo-se a respeitar o resultado, idem por parte do governo catalão.
2. Além dos eleitores catalães, poderiam participar deste plebiscito:
a. catalães residentes fora da Catalunha, não só na Espanha, mas em terras distantes como o Uruguai, Brasil etc. por exemplo;
b. não-catalães, residentes na Catalunha.
3. Durante estes três anos, seria formulada a proposta do que representa a independência, em termos econômicos, políticos, de integração na União Europeia,e temas afins. Assim, os eleitores catalães saberiam com mais precisão sobre o que estariam votando, a favor ou contra. Idem, o governo espanhol promoveria propostas sobre o que oferecer a uma Catalunha que permanecesse na Espanha, para que os eleitores tivessem uma perspectiva sobre o que estariam votando, a favor vou contra.
4. O referendo seria organizado por uma comissão internacional independente, com mandato, por exemplo, da ONU e da União Europeia.
Parece simples, não? E de fato é. Mas…
Nada nesta história toda é racional, nem solidário.
1. Rajoy não tem o menor interesse em negociar o que quer que seja. Seu ideal é uma Espanha que oscile entre a herança do franquismo e o neoliberalismo que promove. é chefe de um governo fraco que quer se fortalecer às custas desta crise.
2. Puigdemont também é chefe de um governo fraco, numa província dividida, que quer se fortalecer às custas desta crise. Pode até ir parar na cadeia momentaneamente, mas a longo prazo ele tem melhores apostas a fazer do que o crepuscular Rajoy.
3. Os partidos de esquerda, ou assim supostos, na Espanha, preferem ficar nos seus nichos a arriscar o pescoço em novas aventuras. O racional seria que o PSOE e o Podemos propusessem um voto de desconfiança a Rajoy e que, uma vez este votado, propusessem novas eleições gerais não só na Catalunha mas na Espanha inteira. Vão fazer? Nem pensar.
4. Na União Europeia, nenhum dirigente está afim de meter a mão nesta cumbuca. Merkel não pode prescindir do apoio de Rajoy. Macron está ainda mais preocupado em se autopromover. O desfalecente Reino Unido está preocupado com a Escócia, a Itália com a Lombardia e o Vêneto, e assim por diante. A União Europeia se parece cada vez mais com o Sacro Império Romano-Germânico: reina, mas não governa. Quem governa é o Banco Central Alemão, por meio do Banco Central Europeu.
Em suma, tudo vai continuar como antes na União do Abrantes. E vamos ver que bicho dá, nesta crise sem precedentes, que é a maior da União Europeia desde a sua fundação.
Faltam radioamadores de parte a parte, e Mohameds dispostos a se lançar ao mar para salvar os companheiros.
Mas continuemos esperando, na torcida.
Sejamos realistas: peçamos o impossível.
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