Escritores, historiadores e jornalistas foram entrevistados pelo History Channel para discorrer sobre história do Brasil sem saber que, na realidade, estavam participando de uma série baseada em um panfleto. Quando o primeiro episódio foi ar no último sábado, todos se revoltaram
Mauro Donato, DCM
No vídeo de apresentação, antes da estréia no History Channel, o youtuber Felipe Castanhari faz troça. “Eu estava no YouTube e agora estou na TV, me compraram”, diz o apresentador na peça que obedece a fórmula batida de simular um making of.
“Agora é uma questão de explicar o que é o programa. Essa série será baseada no best seller do Leandro Narloch, o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil.” Há um corte e então vemos o apresentador falar para alguém, em tom de confissão: “Será que não é melhor não falar do Narloch?”
Realmente não foi falado. Pelo menos para escritores, historiadores e jornalistas que foram entrevistados pelo canal para discorrer sobre história do Brasil sem saber que, na realidade, estavam participando da série baseada no livro de Narloch.
Quando o primeiro episódio foi ar no último sábado, todos se revoltaram. Haviam sido enganados.
“Eu liguei, conversei com eles e disse que com esse título não seria possível participar. Não é uma abordagem que nos representa. É sensacionalista”, disse Lilia Schwarcz, que pediu para ser excluída do seriado.
Também desautorizaram o uso de suas entrevistas o escritor Laurentino Gomes, as historiadoras Mary Del Priore e Isabel Lustosa e o jornalista Thales Guaracy.
O escritor Lira Neto foi o primeiro a expôr a indignação publicamente nas redes sociais: “Ninguém me informou antes, durante ou logo após a entrevista qual era a inspiração do programa.”
Agora a culpa está sendo jogada de colo em colo. O History Channel quer responsabilizar a produtora, mas a realidade, como as declarações dos entrevistados dão a entender, e como o próprio youtuber Felipe Castanhari confirma no comercial de divulgação, é que ninguém quer endossar o livro ‘inspiração’. Apenas foram polidos em suas respostas.
Dizendo-se ‘revoltado’ e ‘frustrado’ com a produtora e considerando como ‘fato lamentável’ o ocorrido, Leandro Narloch tem pedido desculpas no Facebook.
“Fiquei muito triste ao saber disso, mas entendo a queixa dos entrevistados e concordo com o pedido de retirar os depoimentos. Quem participa precisa saber do que está participando. O entrevistado tem todo o direito de saber com quem está conversando e qual o objetivo da entrevista, não só para decidir se aceita falar, mas para moderar suas opiniões”, escreveu.
Eles sabiam com quem estavam conversando, meu caro. Não sabiam que era uma série baseada no livro.
O problema da obra de Leandro Narloch não é o de conter erros crassos e absurdos, mas de seu propósito único de ‘desconstruir’ e não de agregar esclarecimentos. Pega fatos isoladamente, sem contextualizar. Um perigo para o leitor que não possui nem senso crítico nem conhecimentos mínimos.
Narloch afirma, por exemplo, que Zumbi dos Palmares também escravizava negros em um quilombo (ele sempre ‘desconstrói’ personalidades adotadas pela esquerda). A pesquisadora Aline Vieira de Carvalho, especialista no tema e autora do livro Palmares, Ontem e Hoje, disse que é possível que Zumbi tivesse mesmo escravos, mas faz a ressalva do contexto temporal.
Para a jornalista Sylvia Colombo, a maior motivação de Narloch para escrever o livro foi ‘convicção ideológica’ ao ignorar os principais historiadores brasileiros de esquerda.
Ou seja, o que Nardoch faz é pegar a realidade e vai retirando as partes que não combinam com seu discurso. Afinal de contas, é possível dizer um monte de coisas sobre Hitler que, para alguém vindo de Marte, irá soar como a biografia de um homem bem intencionado.
Sempre que confrontado, Narloch desliza citando variações do que esclareceu logo no prefácio do livro: “Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.” A intenção era criar barulho para vender, só isso.
Marqueteiro que atingiu o sucesso de vendas, Narloch fez seu livro dar crias, o que só o expôs ainda mais.
Em 2011, na Fliporto (Festa Literária Internacional de Pernambuco), ele participou de uma mesa de debates. Foi ridicularizado por jornalistas sulamericanos que estavam indignados com o Guia Politicamente Incorreto da América Latina. Um deles questionou quais as fontes de Leandro Narloch para falar do envolvimento de Juan Perón com jovens meninas. No livro, Narloch diz que foram ‘as más línguas’. Traduzindo: boatos.
A jornalista Samarone Lima estava revoltada com o capítulo dedicado ao general Augusto Pinochet. “É de uma inconsistência dolorosa. Nós, jornalistas, trabalhamos com fontes. Você não pode escrever sobre Pinochet usando como fonte um livro lançado pelo governo golpista”, disse ela para o autor.
Ao não informar, intencionalmente, para os entrevistados que se tratava da obra de Narloch, a produção foi maldosa pois almejava que os depoimentos ocorressem na maior espontaneidade possível e daí trechos com brincadeiras e tiradas ‘politicamente incorretas’ fossem utilizadas na edição. Algo tão ético quanto espiar alguém pelo buraco da fechadura. E a mesma estratégia adotada por Narloch.
A série tem o ritmo engraçadinho de uma chanchada de youtuber, com ‘muitas animações e efeitos computadorizados, além de reconstituições para ilustrar cada relato com o uso do humor e mensagens curtas e rápidas no roteiro’ (como descreve-se) e tem o livro de Narloch como ‘inspiração’. Não tinha como acabar bem.
Assista o vídeo:
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