Colégio conhecido por formar filhos da elite econômica em Minas Gerais adotou, sem titubear, o programa Escola sem Partido
Douglas Rodrigues Barros*, Pragmatismo Político
Supostamente um colégio, conhecido por formar filhos da elite econômica em Minas Gerais, adotou sem titubear ao programa Escola sem Partido. Na descrição da vaga, que fora alterada mais de uma vez, se lê o seguinte:
“Procura-se professor de Sociologia e Filosofia que não seja orientado pela ideologia comunista ou socialista, procura-se um professor ou professora que consiga dar aulas dessa disciplina sem fazer doutrinação ideológica para Esquerda” – em maiúscula – “ou para direita, precisa-se de um profissional capaz de demonstrar tanto o pensamento de Marx como a biografia de Marx”.
Uma breve reflexão antes de continuarmos; esta foi a primeira formulação do anúncio que mudou depois para: “Procura-se um professor ou professora que consiga dar aulas dessas disciplinas sem fazer doutrinação ideológica para a Esquerda, ou para a direita, precisa-se de um profissional capaz trabalhar de acordo com o PROJETO DE LEI Nº 867, DE 2015”. Projeto que se trata do Escola sem partido.
De acordo com a primeira formulação recomenda-se ao professor demonstrar o pensamento de Marx juntamente com sua biografia. Considerados os limites propedêuticos impostos pelo ato de contratação, deve-se demonstrar que Marx fora um canalha com sua esposa ao traí-la, gerar um filho bastardo e pedir que seu amigo Engels o assumisse para não despertar a ira de Jenny – a (in)felizarda.
Devemos acrescentar às aulas, no sagrado colégio, o fato de que Marx vivia enganando seu tio Philips para conseguir empréstimos e que teve uma juventude dissoluta gastando o dinheiro do seu pai em bebedeiras memoráveis chegando até mesmo a participar de um duelo, que teve como resultado um tiro de raspão na têmpora esquerda. Sem esquecer é claro de sua alegria ao tomar um Château Margaux cujo preço dependendo da safra é três vezes superior ao valor cobrado na mensalidade do colégio.
É claro que tudo isso deve ser dito com o tom de voz e os gestos certos, nada que desperte o riso ou curiosidade do aluno sobre Marx, é preciso que tenham pais na sala de aula que concordem com o projeto, para verificar o tom da fala e a seriedade do professor. É natural que seja assim – diz a querida hipocrisia. Deve-se apresentar Marx como um demônio que precisa ser exorcizado da história da filosofia.
Recomenda-se ainda que se fale bem pouco da trajetória teórica de Marx, do contexto de barbárie imposto por um capitalismo recém-nascido que explorava crianças e mulheres com longas jornadas de trabalho de até 15 horas cuja taxa de mortalidade era de até 80%. Não se deve dizer, porque vai que os alunos observem que na Índia as cargas horarias são bem parecidas e, se levarmos em consideração o tempo de deslocamento dos trabalhadores no Brasil que chegam a ficar três horas em conduções superlotadas, a coisa não muda de figura.
Claro, não se deve em absoluto referir-se ao capitalismo como estrutura socioeconômica historicamente determinada. Porque ele sempre existiu e ponto!
Obedecido o imposto pelo contratante o mesmo, beijando o terço, ainda exige:
“Queremos um professor ou professora, jovem ou experiente, pode ser acadêmico de Ciências Sociais, ou Sociologia, mas é imprescindível que seja conhecedor profundo dos pensadores britânicos, e dos discursos de Margaret Thatcher sobre a coisa pública e o dinheiro público e com isso contrabalancear a doutrinação recebida nas faculdades”.
O professor deve aqui fazer o contrário do que fez com Marx. Jamais dizer que Margaret Thatcher foi conivente com a implantação do neoliberalismo pelo general ditador Pinochet. Responsável pelo golpe militar no Chile que depôs o governo democraticamente eleito de Salvador Allende cujo saldo foi de mais de 40 mil mortos e 3.225 mortos ou desaparecidos.
Deve-se fazer menção somente aos discursos da Dama de Ferro glorificando o individualismo e a livre iniciativa, sem falar da destruição do Estado de bem-estar social promovido por sua política que aumentou exponencialmente a desigualdade social nas terras da rainha.
Não se pode dizer, é óbvio, que tal política foi a responsável pela nova crise em 2008 cujos resultados se aprofundam até agora levando o mundo à beira de um conflito de proporções inimagináveis.
O professor deve simplesmente adotar os lindos e bem ornados discursos, cuja forma culta se assemelha ao discurso de Temer. E não, os pensadores britânicos não são Hume, Locke ou Hobbes, não. É Hayek – um austríaco naturalizado britânico – e toda a patota teológica que acreditava que o mercado era um deus.
Por fim, o contratante termina:
“Procuramos um professor que valorize o quanto precisou investir na sua própria educação e entenda que mérito e dedicação sempre são mais funcionais que benesses”.
Baseado na meritocracia, independente é claro de estarmos num dos países mais desiguais do mundo, recomenda-se ao professor dizer que o colégio caro de seus alunos, cujo conteúdo é voltado desde tenra idade para o vestibular, produz o mesmo conteúdo de uma escola pública sucateada e em extinção. E que eles disputarão uma vaga na universidade em iguais condições e por mérito próprio com aqueles que, por falta de dedicação dos pais – geralmente aqueles que dirigem os carros de tais alunos, preparam a comida, ou limpam os jardins – não conseguiram se matricular no sagrado colégio.
Tal postura pareceu-me as recomendações prussianas do século XIX quando queriam extirpar um pensamento “maldito” das faculdades, ou as censuras czaristas à livre expressão. O anúncio parece ter saído de uma peça ainda não escrita, difícil de acreditar. Até agora tenho minhas dúvidas se o anúncio fora de fato feito pelo colégio ou pelos cordeirinhos do projeto escola sem partido – por isso oculto o nome do colégio, apesar de que uma pesquisa rápida irá revelá-lo¹. De fato, trata-se de uma época obscurantistas e sombria cujos cadáveres se fazem visíveis e o cheiro de mofo intoxica o ar.
*Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutorando em filosofia pela Unifesp e colaborou para Pragmatismo Político.
¹ Obs: Em épocas de produção de mentiras via internet seria prudente que, em caso de falsidade, o colégio, se não for também falso, cancelasse o anúncio feito em seu nome. Se o anúncio, todavia, não for falso e o colégio de fato existir só resta a lamentação envergonhada.
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