Redação Pragmatismo
Economia 02/Out/2017 às 13:19 COMENTÁRIOS
Economia

Esquerda precisa propor a transformação radical dos bancos

Publicado em 02 Out, 2017 às 13h19

E se os bancos servissem, de fato, à sociedade? Apoiada em Ladislau Dowbor e Yann Leboutang, economista sustenta: em vez de limitar-se a criticar os bancos, esquerda deve propor sua transformação radical

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Patrícia Fachin, IHU Online

Para construir um modelo de finanças diferente, que esteja a favor da vida, é preciso antes de tudo distinguir o significado de dois termos: “financiar” e “financeirizar”, diz a economista Amyra El Khalili à IHU On-Line. Financiar, exemplifica, consiste em “proporcionar um empréstimo para que a costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la nas condições de sua produção”. Financeirizar, de outro lado, “significa emprestar o dinheiro para a costureira comprar a máquina causando o endividamento e, consequentemente, fazendo com que ela não consiga cumprir com seu compromisso, tornando-a escrava da dívida”.

Outra distinção importante, esclarece a economista, consiste em compreender que “nem todo dinheiro é ruim, assim como nem toda forma de o gastar é saudável”. Segundo ela, é a partir dessas compreensões que é possível “construir uma finança diferente, que seja a favor da vida financiando projetos socioambientais, e não a globalizada e enraizada no modelo neoliberal que financia o mercado de armas, drogas, favorece a biopirataria (ilícito), sustenta e mantém o lícito da concentração por corporações com produção suja e degradante e governos corruptos”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Amyra comenta as posições defendidas pelo economista francês Yann Boutang, acerca das possibilidades de pôr as finanças a serviço da transição energética, do combate à poluição química nas terras aráveis e a garantia de uma renda decente para todos. “Precisamos desenvolver um modelo de transição energética com planejamento financeiro conjuntamente com a transição do modelo econômico, pois, do contrário, não haverá energia renovável ou não renovável que suporte a demanda de produção e resolva o problema socioambiental, que, consequentemente, provocam bruscas mudanças climáticas”, frisa. Para realizar essa transição, menciona, é preciso resgatar “o conceito de governança ambiental” e “isso não depende de dinheiro; depende da sensibilização de corações e mentes” e “especialmente, de um código de ética e moral que seja universal”.

Na avaliação da economista, a esquerda pouco tem participado do debate sobre a financeirização porque “ainda está presa aos conceitos da política pelo poder” e porque “não quer discutir finanças, pois essa discussão passa por prestação de contas, auditoria, transparência, meandros delicados e polêmicos”. Por conta disso, defende, “o ativismo pelos direitos humanos e o ambiental deveria ser isento e não se envolver em disputas político-partidárias, pois o povo e o ambiente devem estar acima dos interesses por subserviência política ou por solidariedade corporativista entre pares”.

Amyra El Khalili é economista graduada pela Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo. Atuou nos Mercados Futuros e de Capitais como operadora da bolsa, com uma carteira de clientes que ia do Banco Central do Brasil à Bombril S/A e ao Grupo Vicunha. Abandonou o mercado financeiro para investir seu tempo e energia no ativismo. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z e editora da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras). Khalili ministra cursos de extensão, treinamento e capacitação socioambiental, por meio de parcerias entre a rede, universidades, entidades locais e centros de pesquisa. É autora do e-book gratuito Commodities Ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe (São Paulo: Nova Consciência, 2009).

Confira a entrevista:

Quais são suas críticas à financeirização no modo como ela tem sido desenvolvida hoje?

A financeirização tem permeado os mais diversos setores da economia e provocado distorções entre a economia real (produção) e a economia financeira. A economia real está baseada em produtividade na indústria, agropecuária, comércio e serviços; já a economia financeira é a que faz circular o dinheiro nos sistemas informatizados e tecnológicos, alimentando as taxas de juros e a especulação sobre a base produtiva. Há uma diferença substancial entre financiar e financeirizar. Financiar é proporcionar um empréstimo para que a costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la nas condições de sua produção. Já financeirizar significa emprestar o dinheiro para a costureira comprar a máquina, causando o endividamento e, consequentemente, fazendo com que ela não consiga cumprir com seu compromisso tornando-a escrava da dívida. É o que tem acontecido na América Latino-Caribenha, quando os países do Norte conseguem desenvolver sua produção industrial e agropecuária com o financiamento, e os países vulneráveis e em desenvolvimento ficam reféns de empréstimos sem poder se libertar do eterno endividamento público e privado, especialmente quando esse empréstimo é para os pequenos e médios empreendedores e agricultores.

Entre os setores mais endividados, por exemplo, estão os camponeses e os agricultores, pois a contração das dívidas exige garantias reais, como terras, imóveis, maquinários e equipamentos, entre outros bens que dão acesso ao recurso financeiro. Se os agricultores/as comprometem a terra para obter financiamento para a sua produção e as alienam ao sistema financeiro, passam a depender da decisão destes credores para produzir, tendo que produzir o que os credores determinam, como, por exemplo, a produção transgênica de escala, vincular sua produção a equipamentos e maquinário, a produtos químicos (agrotóxicos e defensivos); enfim, passam a depender de uma estrutura com forças assimétricas em que os trabalhadores/as da agricultura não têm poder nem há equilíbrio de relações entre eles (mesmo organizados em associações e cooperativas) e governos (ou quem os financie). E sob essa pressão do sistema financeiro entre corporações e governos para garantir a escala de produção, a terra, monetariamente falando, é o bem mais barato, pois caro é o que você põe em cima dela.

Daí o avanço desenfreado sobre as áreas de florestas que detêm, ainda hoje, graças aos povos indígenas e tradicionais, rica biodiversidade, água, minérios e alternativas energéticas, como defendia o professor Bautista Vidal, o complexo energético do século XXI, o babaçu da Amazônia para biodiesel, preservando e conservando a floresta, sem ter que derrubar sequer uma árvore, entre outras alternativas múltiplas e criativas para produção de energia renovável. Assim sendo, a financeirização, hoje, avançou sobre as riquezas naturais consideradas sem valor (financeiro) na contabilidade de produção de bens e serviços. A esse avanço do capitalismo neoliberal chamamos de “financeirização da natureza”.

Por quais razões seria preciso um novo modelo de finanças ou seria necessário usar as finanças a favor da vida, como sugere Boutang? O que significa “usar as finanças a favor da vida” e que modo essa proposta aponta para outra concepção em relação ao capital?

Veja o paradoxo de finanças tão discutido nos cânones das várias religiões: pode ser usada a favor da vida como a favor da morte. Aqui reside a dualidade entre Deus e o Diabo estudado por filósofos e teólogos. O que é o dinheiro? Qual sua relação entre vida e morte? Se ganhamos R$ 1.000,00 (mil reais), esse dinheiro tanto serve para pagar um curso, para comprar alimentos, para pagar nossas contas de água, luz e gás, quanto para pagar juros de cartão de crédito, limites de cheque especial, ou comprar remédios por termos contraído uma doença causada por estresse emocional, por desgaste físico de tanto trabalho e depressão.

Uma finança diferente

Nem todo dinheiro é ruim, assim como nem toda forma de o gastar é saudável. É nesse ponto que compreendo a análise de Boutang, quando se refere à necessidade de construir uma finança diferente, que seja a favor da vida financiando projetos socioambientais, e não a globalizada e enraizada no modelo neoliberal que financia o mercado de armas, drogas, favorece a biopirataria (ilícito), sustenta e mantém o lícito da concentração por corporações com produção suja e degradante e governos corruptos.

Quando tratamos de uma cifra de R$1.000,00 (mil reais), o senso comum sabe de que número estamos falando, pois todos conhecem essa cifra por um dia ter tido esse dinheiro em suas mãos. Mas quando tratamos de cifras que ultrapassam a casa dos três zeros, como 100.000 (cem mil), 1 milhão, 1 bilhão, 1 trilhão, a população não sabe a diferença que representa na economia entre tantos zeros.

É nessa casa de cifras (de mais de três zeros) que circulam os valores monetários no sistema financeiro, migrando de um continente a outro, com a velocidade de milésimos de segundos, como bem aponta o estudo do pesquisador Edemilson Paraná, em entrevista para a IHU On-Line. Quando o sistema financeiro alavanca essas cifras, arrebenta com a atividade produtiva, causando estragos enormes nas contas públicas e privadas. É das contas públicas que pode estar ocorrendo a transferência de valores destinados à educação, à saúde, à segurança pública, à previdência e à defesa e proteção do meio ambiente, para grupos privados. Este processo onera o custo de taxas de juros e tributos, em detrimento do custo de vida da população pobre, que é a maior pagadora de impostos, tema analisado pelo movimento de auditoria cidadã nas entrevistas com Maria Lucia Fattorelli e Carmen Cecilia Bressane pela IHU On-Line.

É este o sentido da mobilização da sociedade via campanhas de esclarecimento, auditorias de contas públicas e pressão com propostas proativas em favor de uma reforma tributária e fiscal que contemple e estimule o financiamento e os investimentos diretos em projetos socioambientais, na produção consciente e de menor impacto ambiental. Este é o caminho que a ferramenta finanças deve seguir em favor da vida, e não como tem sido usada até agora, para projetos de morte, provocando guerras, conflitos regionais, etnocídio e genocídio. É por essas consequências que muitos demonizam o capitalismo e o sistema financeiro.

Têm sua razão, em partes, porque não há como negar certo comodismo e ingenuidade em acreditar que pela simples ação de uma revolução político-ideológica se conseguirá superar este modus operandi, a exploração de um ser humano pelo outro, conscientemente projetado no território mental da natureza humana. Perceba que os demais seres vivos não agem desta forma. Andam em grupo; migram em busca de alimentos e não praticam a autofagia por bens materiais e dinheiro. A moeda não faz parte do paradigma organicista dos demais seres vivos, como vivem os humanos no paradigma mecanicista, condicionados ao sucesso do ter e não do ser.

Por que as finanças são potenciais para romper com a crise sistêmica? Em que elas podem contribuir?

A crise sistêmica é fruto do entrelaçamento e imbricamento entre a moeda e as garantias que lastreiam essa emissão de dinheiro e do fato de que, por exemplo, cada saca de soja negociada na Bolsa de Chicago pode multiplicar-se em contratos de compra e venda futura até 100 vezes. Se em algum momento, com uma possível intervenção de bancos centrais, houver necessidade de se executar judicialmente cada contrato de soja que circula no mercado de derivativos (derivado de ativos), toda a soja do mundo não será suficiente para a entrega física por liquidação contratual, ou seja, essa soja não existe. Para não correrem o risco de uma intervenção judicial, as bolsas de commodities e derivativos suprimiram a cláusula que prevê entrega física de commodities. É nesse ponto que reside a financeirização da produção de commodities agropecuárias e de minérios nas bolsas.

A função dos mercados futuros e de derivativos deveria ser a de “fixar preço” para se prevenir do risco de uma quebra de safra, de crises políticas e econômicas, de crises climáticas e desastres naturais, entre outros fatores imprevisíveis, que podem provocar aumentos estratosféricos de preços ou baixas expressivas, prejudicando o custo de produção ou estourando com os fluxos de caixa, com isso gerando desemprego, falência de indústrias, de produtores e prestadores de serviços (hedge/proteção).

Desregulamentação do sistema financeiro

Ocorre que, com a desregulamentação do sistema financeiro, para reduzir ao mínimo a intervenção do Estado no mercado, esquivando-se, inclusive, da fiscalização e driblando o pagamento de impostos e tributos (e aqui estamos falando do mercado financeiro e não da produção), os instrumentos econômicos e contratuais desenvolvidos para os mercados futuros, os derivativos, estão sendo utilizados para outras finalidades. Embora devessem servir para proteger seus agentes contra as bruscas oscilações de preços, passaram a ser determinantes na formação de preços na ponta de produção, jogando a economia real no risco e na especulação da economia de mercado (finanças).

Dessa maneira, o preço futuro da soja na Bolsa de Chicago determina o valor à vista da soja colhida no campo, quando o processo deveria ser o contrário. Na prática, o preço da soja colhida hoje no campo, calculado seu custo de produção, somando armazenagem, tributos e transporte até o porto para exportação, é determinado pelo valor futuro das bolsas, quando a conta correta seria a partir do preço da soja de hoje, considerando a realidade local de produção. Sobre este preço é que se deveria calcular o preço futuro, estimando os riscos de instabilidade política e econômica, de desastres ambientais e conflitos trabalhistas, entre tantos outros fatores, complexos e imprevisíveis, que afetam as variáveis econômicas e socioambientais na atividade produtiva.

Então, o chamado risco sistêmico é a quebra de toda a cadeia imbricada de garantias reais, entre o dinheiro que circula migrando de um lado para outro virtualmente, pela quantidade e qualidade de produção. Se um banco empresta dinheiro para alguém, ele deve ter em contrapartida uma garantia que permita o empréstimo. É comum que os bancos troquem garantias entre si, pois o mesmo banco não pode ser garantidor de si mesmo. É nessa confusão de garantias, de quantidade e qualidade de produção que se formam as bolhas financeiras, as quais colocam em risco sistêmico as economias mundiais globalizadas pela tecnologia da informação.

A biodiversidade tem sua própria lógica

Façamos, agora, um exercício: o que acontecerá se esta prática ocorrer com nossas riquezas naturais — como as florestas, sua biodiversidade e água —, cuja dinâmica está no paradigma organicista, oposto ao paradigma mecanicista que acabo de ilustrar com essa contabilidade?

A biodiversidade tem sua própria lógica, não sendo compatível com a produção em escala, sem com isso gerar altos impactos ambientais com a intervenção humana através da biotecnologia, da geoengenharia e da mecanização. É possível, porém, analisar o que ocorre com as commodities minerais, uma vez que o preço da energia está atrelado ao preço do barril de petróleo cotado nas bolsas de commodities.

Estamos gritando contra o fracking (fraturamento hidráulico) para extração de gás de xisto, primeiro, porque pode contaminar as águas subterrâneas e, segundo, porque também promoverá a militarização das áreas exploradas, já que, pelo controle do combustível fóssil, o Oriente Médio tornou-se um barril de pólvora com conflitos e guerras sangrentas. São projetos de morte que prevalecem na contabilidade do sistema financeiro. As finanças são engenhadas por seres humanos que o sustentam com dados estatísticos, com números e programas matemáticos. São dados calculados friamente, sem a percepção de que uma simples cifra sobre trilhões pode causar prejuízos consideráveis para milhares e milhares de pessoas, como apertar o gatilho de uma metralhadora giratória. Esse é o paradigma mecanicista, em cuja lógica se fundamentam o mercado de carbono e seus derivativos (REDD, REDD+, Pagamentos por Serviços Ambientais, Créditos de Efluentes, Créditos de Compensação etc.).

Em que aspectos sua compreensão de uma finança que seja ecológica e socialmente responsável se aproxima da teoria de Boutang, segundo a qual o gigantesco poder da finança deve ser posto a serviço de objetivos como a transição energética, da luta contra a poluição química de terras aráveis, e da garantia de uma renda decente para todos, com investimento maciço na saúde e preservação do meio ambiente?

Quando Boutang propõe a economia da polinização e outra finança possível, está, na verdade, defendendo o mesmo princípio da economia socioambiental, que foi compreendida por Ignacy Sachs como economia dos biomas. Sachs concluiu que são os povos das florestas e tradicionais os que têm realmente condições de manter a floresta em pé, protegendo e fiscalizando a partir de sua produção equilibrada e em harmonia com o ecossistema. Foi desta percepção e estudo que Sachs conceituou o “ecodesenvolvimento”, posteriormente traduzido para “desenvolvimento sustentável”, para se tornar “sustentabilidade” a que agora, ajustado ao modelo neoliberal, chamam de economia verde. Trata-se de um conceito confuso, que apenas repete a teoria do capitalismo verde com algumas adequações, inicialmente cunhado pelo acadêmico inglês John Elkington, com o clássico The green capitalists (Os Capitalistas Verdes, Editora Gonllaccz, 1989), assentado no tripé pessoas, planeta e lucro (Triple botton line).

No entanto, oposta à economia verde, a economia socioambiental agrega as propostas da economia solidária com a economia dos biomas a partir de núcleos formados em torno das bacias hidrográficas, já que historicamente a humanidade se agrupa em torno das águas, construindo cidades e se urbanizando. Uma cidade, comunidade ou grupo humano e demais seres vivos não sobrevivem sem água e não se desenvolvem economicamente sem energia.

A água não é substituível como a energia que pode ser produzida por diversas fontes renováveis, além das não renováveis. A água é um enigma da natureza a ser decifrado, pois pode ser renovável se cuidada e não renovável se degradada. A água está para a história da humanidade e do planeta como o ouro está para a história econômica globalizada, com seus fascínios, as ganâncias e conquistas de povos sobre povos. Na mística, a água e o ouro se encontram. Os movimentos da América Latina, como os campesinos/as, os povos indígenas e os povos tradicionais da Amazônia estão se mobilizando contra a mineração com o chamamento “Água sim, Ouro não”. Podemos beber água, mas não podemos comer ouro!

Na prática, a tese de Boutang pode ser implementada com a pulverização das finanças e com a cobrança e fiscalização sobre a “responsabilidade socioambiental do sistema financeiro”, fazendo com que os empréstimos exijam financiamento de projetos que não gerem impactos ambientais e não promovam a exclusão social, como expulsão de campesinos, povos indígenas e tradicionais de seus territórios e que não incentivem a criminalização da pobreza. Foi com esta perspectiva que a agenda na Rio+20 juntou meio ambiente com erradicação da pobreza para os Objetivos do Milênio.

Sistema financeiro e política

Quando o sistema financeiro se torna cúmplice de governos corruptos, viabiliza a lavagem de dinheiro, transfere recursos públicos para a iniciativa privada fazer o que é função do Estado em setores cuja função não é “lucrar”, como educação, saúde, segurança pública, previdência, saneamento básico. Quando o sistema financeiro protege o mercado ilícito de armas, drogas, prostituição, entre outros, a sociedade deve ter o poder de processá-los e impedir que essa economia subterrânea, que se mescla com a economia financeira, continue se propagando. A proposta do movimento pela auditoria cidadã, das redes e movimentos que questionam os investimentos de bancos multilaterais, do direito do consumidor, da dívida pública e tantos outros, podem fazer a transmutação das finanças e alcançar o que propõe Boutang, e o que estamos propondo há duas décadas, como ação proativa.

É entendendo como funciona este sistema financeiro e esclarecendo para a sociedade de forma didática com o tripé educação, informação e comunicação que promoveremos uma estratégia coletiva e efetiva para combater as mazelas do mercado financeiro com suas distorções e sua autofagia. A outra questão passa pela prestação de contas e auditorias dos recursos a fundo perdido, que são despejados em ONGs e Oscips (organizações sociais de interesse público), que também não escapam do paradigma mecanicista. Muitas ONGs tornaram-se braços governamentais e aparelho eleitoral subserviente de interesses político-partidários, valendo-se de argumentos sociais e ambientais para justificar a captação de recursos, quando não são elas próprias que recebem verbas das mesmas empresas que são responsáveis por degradação e desastres ambientais.

As Oscips passaram a ser um híbrido entre Estado e sociedade civil organizada, engessadas pela dependência de dinheiro público e sem condições de combater o sistema financeiro, que também financia campanhas políticas, além de não terem credibilidade para denunciar as arbitrariedades sociais e degradação ambiental. Em favor da Amazônia existem milhares de ONGs e Oscips que sequer puseram os pés na região. Afirmam pretender defender esse bioma, pois é onde há maior interesse financeiro, diferentemente de regiões como o Cerrado e a Caatinga, onde poucos querem investir e onde há os projetos socioambientais que se autossustentam justamente pela carência de recursos. Eles devem ser criativos e fazer a economia prosperar nesses biomas, tão ricos em biodiversidade quanto a Mata Atlântica, o Pantanal e a Amazônia.

Desta forma, haverá recursos financeiros suficientes para investimentos em educação, saúde, proteção e preservação ambiental, segurança pública e principalmente para a transição da economia que vivemos para a economia que queremos. É fácil constatar, pelas cifras de desvios financeiros destinados ao que é necessário para investir em projetos socioambientais, significativamente mais baratos do que o dinheiro que vai para o ralo da corrupção. De fato, a economia é um todo e não está nem funciona fragmentada. Todos os sistemas e setores estão direta e indiretamente interligados pela globalização e pela tecnologia da informação. O que afeta a um afetará a todos em qualquer parte do mundo.

Na prática, o que tem impedido que as finanças sejam utilizadas para as finalidades mencionadas acima?

Amyra El Khalili – Para que as finanças sejam utilizadas para as finalidades mencionadas, o que está faltando é a reestruturação do sistema financeiro com a sua regulamentação, uma política fiscal e tributária específica para este setor, que propicia a migração de fortunas virtuais. Os impostos são mais pesados para os pobres e mais baratos para os ricos, que sempre conseguem linhas de financiamento. A população está sendo financeirizada com cartões de crédito, limites no cheque especial, no crédito consignado, com a alta carga tributária, enquanto os capitalizados são financiados com empréstimos de longo prazo e baixas taxas de juros. A alta taxa Selic está financiando os títulos do tesouro direto, para sorte dos rentistas (que vivem de rentabilidade), conforme analisou o economista Ladislau Dowbor para IHU On-Line.

Há, portanto, várias ações a serem implementadas: a necessidade de uma política de fomento e de incentivo na produção, o financiamento da transição de uma produção degradadora para uma produção ambientalmente sustentável e inclusiva, a fiscalização e auditoria das contas públicas e privadas, principalmente de empresas cujas ações são negociadas nas bolsas de valores, a reforma tributária e fiscal, além de forte pressão da sociedade para fazer valer o código do consumidor. E, por fim, no que for ilícito, ilegal e imoral, a ação do Judiciário, pois não é possível ser tolerante com a corrupção e a lavagem de dinheiro. Temos que agir em conjunto com as instituições jurídicas, assessorando e estimulando. Não faltam razões, pode-se até lembrar que em mercados desregulamentados muitos contratos entre partes acabam parando na mesa do juiz e os magistrados não entendem de finanças nem de seus jargões — como as palavras-expressões em inglês grafadas nos contratos financeiros e mercantis, como commodities, spread, gap, swap etc.

Como a política deveria participar desse processo de transformação ou de uso das finanças para fins como a transição energética?

Para implantar a transição energética, é necessário repensar o modelo econômico. A maioria da população vive em cidades. O Brasil passou a ocupar a posição de sexta economia do mundo. Ironicamente, o IBGE divulgou dados assustadores sobre as favelas brasileiras. Segundo estes dados, certamente conservadores, o Brasil tem 6.329 áreas irregulares e precárias nas quais vivem 11.425.644 pessoas. Juntas, elas equivalem à população da Grécia, para que se tenha uma ideia da magnitude do desafio das cidades deste importante país no cenário latino-americano (FDUA n.61, por Edésio Fernandes & Betânia Alfonsin).

Energias renováveis

As cidades consomem energia de países, fazendo com que a política energética do Brasil esteja voltada à construção de mais hidrelétricas, além dos projetos de políticos insanos que pretendem ressuscitar a energia nuclear. A energia produzida por uma hidrelétrica na Amazônia gera impactos ambientais e sociais naquela região para abastecer o Sul e o Sudeste, que recolhem seus tributos na ponta distribuidora de energia, e não no local impactado na Amazônia.

Os diferentes setores de energia renovável concorrem em tributos, taxas e formação de preços com a produção de energia não renovável. Quando há um incentivo para a produção de energia renovável, como a eólica, solar, o biodiesel e o etanol, não há um planejamento para limitar essa produção, pois acaba também gerando mais impactos, como tem denunciado com conhecimento de causa e científico o professor Heitor Scalabrini Costa sobre a produção em escala deste tipo de energia que deveria, por coerência, ser equilibrado e harmônico de região para região, analisado caso a caso, em um pacote energético diversificado.

O fato de a energia ser renovável não significa que não cause impactos. É necessário, portanto, que o planejamento energético considere as demandas da região e da população que pode ser afetada com a construção de hidrelétricas, usinas nucleares, com a exploração de petróleo, gás natural, carvão, gás de xisto, minério radioativo ou mesmo com a construção de parques eólicos, solar fotovoltaica e monoculturas para a produção de etanol e biodiesel.

Transição energética

Precisamos desenvolver um modelo de transição energética com planejamento financeiro conjuntamente com a transição do modelo econômico, pois, do contrário, não haverá energia renovável ou não renovável que suporte a demanda de produção e resolva o problema socioambiental, que, consequentemente, provocam bruscas mudanças climáticas. É de fundamental importância manter a população campesina, indígena, tradicional e ribeirinha nos campos e nas florestas, bem como o povo do sertão no Nordeste, fazendo a migração oposta à dos centros urbanos para reverter o quadro desolador do crescimento das favelas, do desemprego e da violência urbana. Esse tem sido o desafio de séculos e até hoje não saímos deste quadro crítico.

Os políticos estão preocupados com eleições e seus mandatos. Os prazos para a implantação de uma política energética, socialmente justa e politicamente participativa e integrada não fecham com os prazos da política partidária. Em um evento para prefeitos e gestores públicos, argumentei que o político que propuser uma estratégia colaborativa com a comunidade para a gestão das águas com a transição energética ficará marcado como gestor público para o resto da vida, pois o mandato acaba, mas a gestão pública fica e sua militância será reconhecida pelo povo. Se agarrar essa bandeira, será também a sua razão de viver.

Quando o gestor público (político) constrói uma proposta com o coletivo da comunidade para uma agenda de transição econômica a partir do binômio água e energia, estará investindo em projeto consistente de longo prazo, com efeitos visíveis no curto prazo, que serão os da adesão e do apoio da comunidade. Há dinheiro para isso circulando no setor financeiro, e o setor de energia é o que mais acumulou nas últimas décadas. Auditem as contas dos bancos multilaterais e exijam que esses projetos sejam cumpridos com responsabilidade socioambiental, pois esse é o papel do sistema financeiro e para isso pagamos impostos e taxas. Basta analisar as nossas contas de luz, água e gás para saber onde foi parar o dinheiro.

Também concorda que deveria existir uma renda decente ou uma renda universal para todos? O que seria essa renda e de que modo ela seria provida para todos?

Amyra El Khalili – Em tese, deveria existir uma renda decente ou renda universal para todos. É o que garante a Constituição brasileira quando trata da “dignidade da pessoa humana” sem discriminação e diferenças. Se fizermos valer a Constituição, seja pelo direito da dignidade da pessoa humana, seja pelo direito de uso dos bens comuns (bens difusos: água, energia, biodiversidade, minério) das presentes e futuras gerações, não restam dúvidas que estaríamos garantindo a existência de uma renda decente e até mesmo uma renda universal, caso esse efeito seja transfronteiriço, como deve ser a gestão das águas, já que um rio atravessa fronteiras territoriais entre países. Se entendermos que esses dois pilares — a dignidade da pessoa humana e os bens comuns — compõem um conjunto indissociável para conquistarmos essas condições, então estaremos trabalhando para a transição da economia em que vivemos (globalizada, em fase neoliberal do capitalismo) para a economia que queremos (socialmente justa, politicamente participativa e integrada e ambientalmente sustentável).

Favelização

A favelização é resultado da degradação ambiental e da exclusão social. Tal fenômeno se multiplica justamente porque as pessoas saem do seu meio para inchar as cidades em busca de emprego e renda para sustentar suas famílias. Não podemos dissociar a pobreza do meio ambiente. Se buscarmos alternativas de geração de emprego e renda, fixando o ser humano no campo e impedindo a expulsão dos povos indígenas e tradicionais de seus territórios, teremos como fazer existir essa renda decente. É por isso que lutamos e nos mobilizamos na cultura de resistência, com a finalidade de evitar as guerras, os conflitos e a migração que forma massas de refugiados econômicos, do clima, das guerras, e da política genocida e etnocida praticada por governantes e corporações de seus países.

Se, de um lado, a tecnologia da informação faz migrar fortunas de um continente a outro, de outro, essa mesma tecnologia está fazendo com que possamos criar conexões de redes em que as florestas do mundo inteiro, os campos e os grupos de resistência se comuniquem e se mobilizem em prol da emancipação dos povos, reivindicando para que a utopia da renda decente e a renda universal para todos sejam realidade.

Alguns sugerem a necessidade de se estabelecer uma governança internacional para ajudar a solucionar problemas como os de ordem ambiental, realizar a transição energética e um novo modelo de finanças. Seria o caso? Como você vê essa proposta?

É o que chamam de governança ambiental. O conceito, porém, tem sido confundido com governança corporativa, como assistimos na Cop-19, quando o setor de energia não renovável (carvão, petróleo, nuclear, gás natural e gás de xisto) se uniu para propor a falsa solução do mercado de carbono, postergando soluções reais por mais um instrumento de financeirização da natureza, conforme denunciamos.

Então, a governança ambiental, que propunha o diálogo entre a iniciativa privada, o governo e a sociedade civil organizada tem sido dragada pela governança corporativa, essa mesma que fundiu a Bayer com a Monsanto. Os grandes crescem cada vez mais e a sociedade civil organizada, que deveria ser representada por lideranças comprometidas, são cooptadas pela economia verde para defender propostas no paradigma mecanicista. Mais uma vez, o sistema financeiro fala alto e atropela nossas ações comprando cabeças.

Identificar e confrontar essa tendência se faz necessário para sabermos quem é quem e com quem estamos lidando. Eles têm a habilidade de absorver nossos argumentos para empurrar contratos financeiros e mercantis duvidosos e perigosos.

Governança ambiental

Se resgatarmos o conceito de governança ambiental, na perspectiva crítica analisada por Boutang, Ignacy Sachs, Edgar Morin, Vandana Shiva e tantos outros pensadores, como também os que debatem em nossas redes, na IHU On-Line e demais fóruns que estão se espalhando por toda a América Latino-Caribenha, poderemos implementar uma política de governança ambiental para a realização de uma transição energética para uma outra finança possível e emergencialmente necessária.

Se utilizarmos os mesmos sistemas que fortaleceram esse modelo degradador e desumano, é evidente que podemos reprogramá-lo para uma nova consciência. Isso não depende de dinheiro; depende da sensibilização de corações e mentes. Depende, especialmente, de um código de ética e moral que seja universal e, nesse sentido, a contribuição do Papa Francisco com a encíclica ecológica Laudato Si’, como um princípio norteador, veio em boa hora!

Como a esquerda tem atuado e entendido a discussão sobre o papel das finanças e do capital no mundo contemporâneo? A esquerda tem contribuído para pensar e discutir essas questões? Como?

A esquerda ainda está presa aos conceitos da política pelo poder. Perdemos a referência do que seja esquerda e direita. Assistimos, em todos os governos, a mesma retórica em relação às questões ambientais. Fica complicado, como ativistas, nos posicionar com críticas e propostas sem sermos rotulados pró ou contra esse ou aquele governo. O ativismo pelos direitos humanos e o ambiental deveria ser isento e não se envolver em disputas político-partidárias, pois o povo e o ambiente devem estar acima dos interesses por subserviência política ou por solidariedade corporativista entre pares.

Lamentavelmente, as coisas não transitam por essa via. A esquerda não quer discutir finanças, pois essa discussão passa por prestação de contas, auditoria, transparência, meandros delicados e polêmicos, como abordamos nessa entrevista. Os movimentos e grupos fortemente ligados aos partidos políticos não sabem separar o joio do trigo. Não entendem de finanças e não querem debater, sem o viés ideológico, com quem entende. Preferem ler enviesado e bater em palavras-chave, como commodities, bolsas, mercados, juros, sem compreender a diferença de quem está propondo a repetição esverdeada do modelo neoliberal de quem, mesmo usando as expressões de finanças, o está criticando, inclusive demolindo argumentos frouxos, como é o caso das nossas frentes multidisciplinares. Fui economista pioneira, desde 1997, a destrinchar ponto por ponto cada item do mercado de carbono, e quando a coisa ficou exposta me vi sozinha batendo de frente com ambientalistas e colegas rendidos para o neoliberalismo.

Já tivemos entreveros com alguns por não entenderem que estamos criticando, militando e combatendo ao lado destes grupos e movimentos os inimigos comuns, porém usamos argumentos técnicos, operacionais e jurídicos e não os ideológicos, que usam à exaustão e repetidamente, caindo muitas vezes na armadilha dos que estão condenando. Foi o que aconteceu com a esquerda quando chegou ao poder. Não estava preparada para enfrentar o sistema financeiro; não se aparelhou e não se cercou de gente de confiança para saber o que estava fazendo e que contratos estavam assinando. Aqui faço uma ressalva: estou me referindo aos da esquerda que são sérios e comprometidos e não àqueles que sabem perfeitamente o que fizeram quando se corromperam no caminho.

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Estive palestrando no Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social – Eneds, na UFSC, e tive a oportunidade de desabafar depois que uma manifestação de jovens mulheres abriu nossa mesa de debates. Nesse desabafo, eu fiz a crítica aos movimentos sociais e de esquerda que preferiram não ouvir e não saber sobre o tema desta entrevista. Disse que o grupo “Dossiê ACRE” me convidou para palestrar para esclarecer o que, afinal, era o mercado de carbono, e suas consequências. Tive, da plenária, a atenção e a paciência dos povos indígenas e tradicionais, bem como dos acadêmicos e das lideranças representadas naquele evento em uma única noite o que não tive das esquerdas nestas duas décadas que consolidaram “a mercantilização e financeirização da natureza”.

Sinto que as transformações estão em curso, mesmo que pareça estarmos diante de um precipício escuro e sem fim. Nesse aspecto, a encíclica ecológica, publicada pelo Papa Francisco, Laudato Si’, nos convida à reflexão de que um mundo sem ética, moral e espiritualidade não se sustenta e que os jovens são os que mais sofrem e serão os mais impactados no futuro. O Eneds nos deu energia renovadora por conhecer jovens engenheiros e engenheiras dispostos a praticar uma engenharia humana, no paradigma organicista, questionando e criticando o paradigma mecanicista que originou o sistema financeiro.

Se fomos nós, os humanos, que criamos o problema, seremos nós, os humanos, os que deveremos buscar por soluções, mas não pelo mesmo sistema e no mesmo grau de consciência que o criou, como dizia Albert Einstein. A comunidade acadêmica precisa chamar a si a sua responsabilidade socioambiental, buscando formar cidadãos e cidadãs e não apenas tecnocratas e burocratas para o mercado de trabalho, sem personalidade e projetos de vida.

O Papa Francisco expressa esse compromisso em Laudato Si’ e nos cobra esse posicionamento por nossos filhos, netos e futuras gerações. Como mulher de origem palestina, luto para que nossos jovens não sejam imolados no altar do terrorismo, das guerras, da miséria, das drogas, dos crimes e da prostituição. Uma economia só pode ser justa se for humanitariamente digna e ambientalmente sustentável e somente será possível se for lastreada no tripé legitimidade, credibilidade e ética.

Referências

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LAUDATO SI. Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 24 de maio – Solenidade de

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