Bolsa Família

O impacto do Bolsa-Família na educação das crianças que dele se beneficiam

Share

Avaliação da frequência escolar dos estudantes beneficiários do Bolsa Família é uma preocupação que certamente não deixa dormir muita gente que não precisa de bolsa alguma. Já faz algum tempo que essas crianças pobres vêm tendo resultados muito positivos, para surpresa (e talvez desespero) de razoável contingente de não-pobres

​Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes*, Unicamp

Em outubro deste ano de 2017, a Faculdade de Educação da Unicamp vai promover um seminário de grande importância: “Escola Pública – Tempos Difíceis, mas não Impossíveis”. Fiquemos de olho na programação.

Um dos participantes, David Berliner, conheço faz algum tempo, pela leitura de livros imperdíveis como: Myths and Lies That Threaten America’s Public Schools: The Real Crisis in Education (Teachers College Press, 2014) e The Manufactured Crisis: Myths, Fraud, And The Attack On America’s Public Schools (Basic Books, 1996).

Mas recomendo também um seu estudo, de acesso imediato, na web: Our Impoverished View of Educational Reform (Teachers College Record, agosto de 2006)

A referência me veio a calhar pela leitura, agora, de matérias que têm saído na nossa imprensa, a respeito de algo banal e rotineiro, mas nem sempre devidamente notado e calibrado.

Talvez pouca gente saiba, mas a cada dois meses, o MEC faz uma avaliação da frequência escolar dos estudantes beneficiários do Bolsa Família, uma preocupação que certamente não deixa dormir muita gente que não precisa de bolsa alguma. Já faz algum tempo que essas crianças e jovens pobres vêm tendo resultados muito positivos, para surpresa (e talvez descrença ou desespero) de razoável contingente de não-pobres.

No levantamento mais recente (junho de 2017), 87,16% dos estudantes beneficiários do programa compareceram às aulas regularmente. O número deve ser comparado com a média nacional, que é de 85%.

Parece uma boa notícia? Não, não parece. Ela é uma boa notícia. Mas o engraçado (ou trágico) é o comentário que ouvi ou li de algumas pessoas supostamente educadas – ou pelo menos muito escolarizadas. Uma delas, pasmem, me disse que “ir à escola devia ser obrigação, ninguém deveria receber para isso”. Dali a pouco, como se fora em outro ambiente planetário, vi a mesma pessoa “negociando” a mesada de um de seus filhos. Não sei bem porque ele recebe o dinheiro, já que o pai paga todas as suas despesas, inclusive, claro, a escola. Ah, sim, quando “passou de ano”, o rebento ganhou uma viagem de presente. Um bom exemplo de alquimia moral. “Ninguém deveria receber para isso”. Salvo se… O rosado guri, este, sim, precisa receber para estudar. Ah, sim, o papai tem deduções no imposto de renda em nome do filho: primeiro, pela própria existência do garoto, segundo, por conta das despesas de educação, terceiro, pelo plano de saúde. Em renúncia fiscal, ele está recebendo bem mais do que um bolsa-família. Mas é claro que isso “não conta”. Faz parte, como diz a gurizada. Faz parte da paisagem social em que vivemos e que tomamos como “natural”. A alquimia moral transforma tudo isso em “direito”.

Outra sumidade disse que “eles vão à escola, mas ficam matando aula, saindo e entrando da sala, ouvindo música com fones de ouvido”. Esse notável estudioso deve ter feito uma cuidadosa observação participante. Aparentemente, pelo comentário se deduz que as crianças do Bolsa-Família também tiveram acesso a algum tipo de bolsa-Ipod e MP3, para utilizar equipamentos como aqueles que o comentarista coloca à disposição de seus filhinhos estudiosos e comportados.

Na verdade, a coisa elementar que estamos constatando é que o Bolsa-Família simplesmente está tornando possível o acesso à escola. Simples, banal.

Ainda teremos que estudar muito para melhorar o acesso a uma educação de qualidade, mas convido os interessados à leitura do artigo de David Berliner. A situação do pobre – desde o ventre da mãe até os primeiros anos de vida – traz prejuízo suficiente para danificar suas condições de sucesso escolar. O estrago é pesado, quase estrutural. Dá para consertar depois, mas demora muito e custa caro. Em suma: ou temos uma política de suporte a essas crianças nesse período ou ficamos com um déficit pesado para administrar. Com consequências de todo tipo. Alguns analistas, como o Nobel James Heckman, fizeram o cálculo, estritamente pragmático: esse desleixo vai custar caro em produtividade perdida, em gastos com saúde e… encarceramento.

Berliner faz um sumário breve de estudos médicos que apontam o quanto esse ambiente prejudica as estruturas de percepção e de formação de sentimentos das crianças. Contudo, o mais chocante é a lista de males banais que afetam o que se chama de sucesso escolar. Coisas simples, como nutrição baixa ou inadequada, miopia, otite, bronquite, asma…

Lembro-me da ocasião em que me alistei no serviço militar, apresentando-me para o exame médico. Eu era míope e quase fui liberado por essa razão. Mas era miopia leve. Alguns de meus colegas de “tropa” descobriram apenas ali, com 17 anos, que tinham uma enorme miopia, eram “ceguetas” como costumávamos dizer. Pois bem, um grande número de crianças pobres passa por “inensinável” ou “distraída” devido a males como esses, evitáveis ou remediáveis: miopia ou desnutrição. Quando deixam de ver algo essencial na sala de aula, desistem, desligam. Depois de uns dez minutos de atenção, se a “pilha está baixa”, isto é, se estão mal nutridos, também desligam. Acho que quase toda criança tem alguma otite, sarampo, catapora, caxumba. A classe média cura tais coisas facilmente. Mas para os pobres isso pode se arrastar e virar um dano permanente, com sérios impactos na aprendizagem, na capacidade de “prestar atenção”. Em outro estudo, Berliner lembra que na cidade de Nova Iorque – umbigo do império – muitas crianças de distritos pobres perdem dias e dias de aula por conta de doenças de respiração – asma, bronquite, por exemplo. Causa próxima ou adjunta: calefação precária, dificuldade de pagar pela energia que aquece residências e escolas dos distritos pobres.

Por razões como essas, aqui, neste pedaço do sul do mundo, o Bolsa-Família é uma espécie de bálsamo, pequeno para o orçamento público, mas de enorme impacto para as crianças que dele se beneficiam. Para compreender esse feliz paradoxo, talvez seja sábio abandonarmos a nossa visão da pobreza, uma visão ela própria muito pobre… Mas, os comentários sobre a avaliação do MEC mostram que cidadãos bem alimentados nem sempre fazem bom uso de suas sinapses. Mais uma vez, uma das melhores frases que ouvi a esse respeito: Donos de cachorros de raça muitas vezes acabam ficando com cérebros semelhantes aos de seus cachorros.

*Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook