Juiz de Goiás cita doutrinador Bolsonaro para negar progressão de regime permitido em lei a um apenado. Decisão provocou espanto e vergonha na comunidade jurídica
Lenio Streck, Conjur
Nem vou me alongar para falar da “motivação” de parte da decisão do juiz de Goiás, que, para negar progressão de regime de um apenado, disse:
“Todo mundo sabe das péssimas condições em que se encontram quase todos os presídios do país. Parafraseando o presidenciável Jair Bolsonaro era só o apenado não roubar, que não iria para o presídio. Roubou, vai ter que cumprir pena, nos moldes da sentença.”
A decisão – ou essa parte da fundamentação – é autoexplicativa. O quero discutir, como sempre faço – sem fulanizar – são as razões pelas quais chegamos a isso. Filtramos o Direito por intermédio da moral e da política.
O juiz, no caso, desnudou-se. Já havia “enquadrado” o MST como organização criminosa. Vontade (moral) dez, imparcialidade zero. No imaginário brasileiro, passou de ano com nota cinco. Moral da história: filtramos o Direito por aquilo que achamos que ele deva ser. Por isso o sucesso de coisas como “manifesto contra a bandidolatria” (sic) e de “memes” como “direitos humanos só para humanos direitos” (sic).
Um promotor fez palestra (tenho o print) mostrando um slide com foto de Marx para criticar (na verdade, difamar) o garantismo… Sim, para ele, o garantismo é coisa de comunista. O Brasil vai ganhar o prêmio ig-nobel, mesmo. É assim que parcela majoritária do Direito é aplicada no Brasil. E assim é ensinada. Por intuições, consciência, desejos…menos pelo Direito.
Fóruns, tribunais e salas de aula viraram locus de uma vulgata de teoria política de poder. O réu tem de torcer para ter um juiz que não tenha esse perfil ideológico como o do juiz de Goiás. E que não caia na mão de um promotor que pensa como o da palestra (que, obviamente assinou o famoso manifesto contra a bandidolatria). Nos tribunais, a mesma coisa. A sorte do réu depende de “onde caiu”, em que Câmara ou Turma. Como chegamos a isso, esse é o ponto.
Ninguém é filho de chocadeira. Juízes e membros do Ministério Público (enfim, todas as carreiras) estudaram em algum lugar, fizeram cursos, cursinhos e quejandos. Venho denunciando essa problemática há décadas. Pareceres do MP baseados em teorias exóticas, ausência de secularização (juízes citando a bíblia), embargos de declaração rejeitados em duas linhas com invocação de algo que não existe no CPC – o livre convencimento (e se o causídico meter outro embargo, leva multa), decisões que invertem o ônus da prova, escritórios de advocacia têm sigilo telefônico violado, processa-se a rodo por organização criminosa, conduções coercitivas viraram regra, prisões arbitrárias, prazos de preventivas que se alongam ao infinito e assim vamos indo em direção do abismo. Depois não venham se queixar. O Direito vem sendo aplicado a partir de livres convencimentos (e põe livre nisso, como foi o caso do juiz de Goiás).
Claro. Basta olhar o que vem sendo ensinado e o nível da bibliografia utilizada nas salas de aula e nos cursinhos de preparação. Aliás, como disse a estudante (ler aqui), já nem livros são utilizados. É só vídeo aula, resumos e resuminhos. E metáforas infames.
Isso dá um tratado. Mas há alguns elementos simbólicos que conseguem mostrar a profundidade do buraco em que nos metemos. Quando uma professora doutora usa de metáforas como a do silicone para explicar o que é emenda constitucional e livros sobre “como chutar” em concurso fazem sucesso e até aulas de sushi jurídico vicejam nas redes e salas de aula, é porque uma luz mais do que amarela já se acendeu de há muito. E para massacrar corações e mentes, eis o toque final, que, ao fim e ao cabo, faz o elo de ligação da decisão de Goiás com o atual ensino jurídico. Vejam o que um professor “ensinou” e a aluna (penso que é aluna) postou no instagram, como “dica” para fortalecer a nesciedade do ensino do Direito:
Hoje eu trouxe pra vocês uma dica super especial que eu aprendi com um professor ‘fera’ de Direito Constitucional, o Prof. (…). Olha a letra dessa música, que genial. Vou soltar minha voz, hein:
Difusamente: qualquer juiz inocente, qualquer Tribunal competente, em qualquer ‘processin’.
Concentradamente: o Hans Kelsen não mente, STF que topa até liminar na ADIN.
Abstratamente: ‘GCC’ dá entrada, ‘PPP’ impetrando, quatro mesas pra ADIN.
ADI safada, na Hora H não pode ser retirada,
AGU defende a impugnada, e cabe amicus curiae sim.
Vou falar da ADIN: erga omnes sim,
Vou falar da ADIN, que vincula ‘tudin’.
Pronto. Queixem-se ao bispo. A mim, não. Há mais de 25 anos alerto para o estado da arte do ensino e da operacionalidade do Direito. E chamo a atenção para o fato de que a doutrina virou caudatária de julgados. E que praticamos um realismo tosco e retrô.
Há mais de vinte anos procuro mostrar que de há muito começou a chover na serra. A enchente cobre, agora, a tudo e a todos. A pergunta é: Como não nos demos conta? Como?
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