Quando nossa complacência ou omissão permite que muros sejam construídos, estamos interrompendo um princípio nevrálgico da vida em sociedade: a convivência
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Não é de hoje que muros são construídos para impedir ataques de inimigos, separar ricos e pobres, segregar brancos e negros ou mesmo para esconder aquilo que não se quer ver.
A famosa Muralha da China, construída entre os séculos VII a.C e XVII, foi pensada como forma de proteger os Estados e impérios chineses contra as invasões de grupos inimigos.
Durante os períodos que ficaram conhecidos como Idade Média Central e Baixa Idade Média, que vão de meados do século XI ao século XV, a sociedade medieval europeia passou por grandes transformações. O desenvolvimento das cidades alterou a paisagem e a dinâmica social. As primeiras cidades eram verdadeiras fortificações, formadas por castelos cercados de muralhas, circundados por vilas onde viviam a população menos abastada.
A construção de muros ao redor das cidades medievais veio da necessidade de proteger os poderosos e seus acólitos das guerras e dos infortúnios dos invasores.
Os exemplos de sociedades muradas são vários, atravessam diferentes regiões e períodos históricos, mas nenhum deles é tão repugnante como nos tempos atuais. Se na China Antiga e no Período Medieval havia uma ameaça real de invasão, atualmente é o desejo de esconder a pobreza e o medo causado pela violência que motiva uma vida atrás de muros e cercas elétricas.
Condomínios de luxo estão cada vez mais equipados com aparato sofisticado de segurança e monitoração. Os sistemas de proteção contam com alarmes, câmeras, seguranças armados, além de tecnologias e serviços fornecidos por empresas especializadas nesse ramo, muitas vezes com assessoria direta do policiamento público oficial. Todas essas medidas apenas oferecem a sensação de segurança, mas não uma vida isolada dos males sociais que caracterizam as grandes metrópoles. Como cantou o grupo de rap Facção Central: “Por que não fui morar na Europa? Grande merda essa blindagem foi só abrir a porta.”
Como a manutenção da pobreza é uma proposta política altamente sofisticada, o estado recorre a variados artifícios para esconder os desclassificados sociais e convencer a população de que o confinamento deles é fundamental para garantir a “paz social”.
Em 2011, o então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, construiu um muro na Linha Vermelha, principal via de acesso ao aeroporto internacional do Galeão, para que os turistas que cheguem a cidade não vejam como vivem os moradores das chamadas Favelas da Maré, uma das maiores comunidades carioca.
Eduardo Paes fez escola. Seguindo seu exemplo, cinco anos depois a administradora da rodovia dos Imigrantes, estrada que liga a capital de São Paulo ao litoral, resolveu construir um muro para, segundo a concessionária, “melhorar as condições de segurança pública da rodovia”.
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Com esse argumento pífio, referendado pelo governo do estado, construiu uma cortina de concreto de 1 quilômetro de extensão e escondeu da vista dos turistas os cerca de 25 mil habitantes de Vila Esperança, comunidade localizada em Cubatão (SP) que há anos é vilipendiada pelo poder público, mas cujo nome inspira coragem.
A Vila Esperança é habitada majoritariamente por jovens e crianças. Os demais moradores, adultos e idosos, que antes aproveitavam os congestionamentos para vender produtos (água, refrigerante, biscoitos etc) aos motoristas impassíveis, assistiram à construção do muro inviabilizar suas atividades e os empurrarem para o desemprego, uma vez que ficou praticamente impossível contornar a barreira de concreto. Quando conseguem acessar a rodovia são ejetados pelos policiais rodoviários e impedidos de praticar o comércio.
A maioria dos moradores não tem renda fixa, moram em habitações precárias intercortadas por esgotos não tratados, convivem com o tráfico de drogas, com a inoperância do estado e com o descaso da opinião pública.
Para Sebastião Ribeiro, líder comunitário conhecido como Zumbi, a construção representa o “muro da vergonha”. Para ele, a alegada violência não justifica a barreira de concreto: “Quando não sabem o que fazer, constroem um muro e acham que resolveram o problema. São mais de 20 mil moradores pagando pelo que uns poucos fizeram”.
A iniciativa na Vila Esperança espelha uma prática recorrente dos poderosos que controlam o Brasil. Em vez de promover projetos de desenvolvimento sustentável, construir moradias adequadas, garantir acesso a elementos básicos para uma vida descente, constroem muros para isolar os pobres e alargar ainda mais o abismo que caracteriza a sociedade brasileira.
Quando nossa complacência ou omissão permite que muros sejam construídos, estamos interrompendo um princípio nevrálgico da vida em sociedade: a convivência.
E aqui o texto limitou-se aos muros físicos, não citou os vários muros da intolerância, do sectarismo ideológico, da falta de diálogos e das rotulações simplistas construídas cotidianamente por cada um de nós.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político
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