Quando criança, sempre que meu pai se referia a alguém como descarado, imaginava o dito sem os contornos faciais. Logo corria ao espelho e, sorte, estava tudo ali. Até que o Brasil pós-2015 fez-me entender o significado de descaramento, uma epidemia que me parece atravessará o século 21
Rui Daher, Jornal GGN
Quando criança, sempre que meu pai se referia a alguém como descarado, imaginava o dito sem os contornos faciais. Logo corria ao espelho e, sorte, estava tudo ali. Como na música, todos poderiam entrar em mim “pelos sete buracos da minha cabeça”. Não preciso citá-los, vocês os conhecem bem.
“Isto é um descaramento”. Pronto, lá ia eu procurar pelos cômodos da casa onde estava sendo feita a cirurgia. Não encontrava sangue e logo pensava em massa de pedreiro e ferro de passar.
“João Alfredo? O maior descarado”. Seria pela altura do pobre João ou mereceria ele tratamento rápido. Degola, por exemplo.
“Vai encarar?” Sou dado a melancolias. Era quando sentia pena dos descarados. Nunca sabiam como responder.
– Olha, por que está me encarando?
– Quem? Eu?
Percebia o constrangimento do descarado pelos movimentos do gogó em seu pescoço. Um sobe e desce agitado, veloz, proeminente.
Ficava aflito. Certo dia, na saída do colégio, tentei intervir.
– Ô Gordo, você não percebeu que ele é descarado? Nem olha nem encara. Como pode?
– É por isso mesmo. Na dúvida, arrisco.
– Cruel, não? Já pensou a confusão que você cria na cabeça do descarado?
– E quem não tem cara tem cabeça?
– É de se pensar, Gordo. Mas acho que sim, cérebro e tudo, lá nos interiores, sabe?
– Será que ouvem sem as orelhas?
– Sabe-se lá, os ouvidos podem estar embutidos. Percebo reações de quem bem escutou e sofreu.
– Dane-se. Ele é um descarado.
Talvez, de lá até cá, tenham-se passado seis décadas sem que eu pensasse no assunto nessas bases. O tempo fizera a conotação mudar meu pensamento. O descarado mantinha todos os sete buracos, eles não estavam “mais embaixo” como é costume dizer, mas sim internalizadas em seus cérebros. Sem ideias, noções, caráter, vergonha.
A última vez que me confundi com o assunto, creio, foi por volta de 1964. Assistia num cineclube ao filme “O homem da máscara de ferro“, EUA, versão de 1939, dirigido por James Whale, e baseado na obra de Alexandre Dumas, pai. Estreava no cinema o notável ator Peter Cushing, fonte para várias adaptações cinematográficas posteriores do romance.
Um amigo, comenta: “Apesar da época, cinema ainda a evoluir, creio que o diretor descaracterizou demais o personagem”.
Prá quê? Voltei à infância e desci a Teodoro Sampaio, procurando descarados. Não importavam, ferro, massa de pedreiro ou gesso. Fiquei um tempo assim, a desvendá-los. Com o tempo, fui desencanando deles. Mesmo quando alguém assim se referiu a Fernando Collor, não dei bola.
Até que o Brasil pós-2015 fez-me entender o significado de descaramento, uma epidemia que me parece atravessará o século 21.
E como não poderia abandonar a galhofa, cito aqui dez importantes descarados do Brasil atual. Claro que não cairia na vala comum de Gilmar, Temer, Serra, Moro, Irmãos Batista, et caterva. As tristes valas deixadas pelos alemães com corpos judeus seriam insuficientes para abriga-los. Vamos lá:
1. O jornal Valor, que depois passou a ser 100% das Organizações Globo, vê a economia brasileira em franca recuperação;
2. Todas as associações patronais ou não, ligadas à imprensa, que não abriram a boca para se manifestar contra a censura e os ataques que hoje sofrem os blogs progressistas, suprimida sua liberdade de expressão digital;
3. João Dória Júnior, o Doriana, que se derrete ao primeiro calor e se entrega ao mais baixo e inculto corporativismo;
4. Ronaldo Caiado, colunista de agronegócios da Folha de São Paulo. Desde sua estreia, não escreveu um só artigo sobre o tema;
5. Sérgio D’Ávila, editor da Folha, que aproveita ter sido correspondente de guerra do jornal e genro do excepcional Hamilton Ribeiro, do Globo Rural, para não perceber o quanto o jornal desinforma a nação;
6. Luciano Huck, o boca-júnior no dizer malévolo do Pasquim sobre Flávio Cavalcanti, na época;
7. As grossíssimas pernas cruzadas e saias justas das apresentadoras da Globo News e seus equivalentes masculinos, cabelos alinhados, bigodes medievais e ternos saídos dos estoques remanescentes das Lojas Ducal;
8. Um japonesinho jovem, não sei o nome, muito feio. Pretende ser o sucessor de Jack Chan e comprovar a supremacia dos EUA;
9. Pastores religiosos, sem cabras e ovelhas, muito menos “pastando no meu jardim”, mas surrupiando dízimos de gente pobre;
10.Fernando Henrique Cardoso, que a tudo percebe, tudo entende, mas prefere rebolar em meneios de cintura, como sensacional cabrocha.
Descarados. Agora entendi.
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