O racismo é vantajoso para o grupo social dominante, explica professor de Harvard
“O racismo tem o propósito de garantir vantagens ao grupo racial dominante”, diz doutor pela prestigiosa Universidade Harvard. Professor explica que, no Brasil, o preconceito é dissimulado e aversivo
Breno Tardelli, CartaCapital
Adilson José Moreira sempre quis entender os mecanismos que perpetuam o racismo. A curiosidade tornou-se o principal objeto de suas investigações acadêmicas desde a graduação na Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutor pela prestigiosa Universidade Harvard, Moreira acaba de lançar O Que É Discriminação?, livro que esmiúça o conceito de direito antidiscriminatório, disciplina obrigatória nas faculdades do ramo nos Estados Unidos e praticamente desconhecida no Brasil.
O racismo, explica o professor na entrevista a seguir, muda constantemente para alcançar o propósito de perpetuar as vantagens socioeconômicas de um grupo de indivíduos sobre outro.
O que é discriminação?
Sempre pensamos na discriminação como algo ligado à ideia de intencionalidade e arbitrariedade. Não é inteiramente equivocado, mas o problema é que essa concepção tradicional de discriminação que ainda influencia as discussões sobre justiça social, tanto entre leigos quanto entre integrantes do Judiciário, está associada à vontade de indivíduos.
Como assim?
Atos discriminatórios são vistos como meros comportamentos individuais. Em razão disso, não consideramos o aspecto institucional, estrutural, o papel de autores públicos e privados. Também ficamos cegos aos processos de exclusão social que não dependem da vontade individual.
Compreendemos a ideia de discriminação como todo tipo de tratamento, consciente ou inconsciente, intencional ou não intencional, que coloca determinados grupos em uma situação de desvantagem social.
O elemento central é exatamente a ideia de desvantagem e isso pode ocorrer, repito, tanto em função de comportamentos intencionais quanto de processos que operam independentemente da vontade de indivíduos.
O racismo no Brasil tem características próprias?
Sim. O racismo que existiu no século XIX não é o mesmo que existiu no XX, que não é o mesmo de hoje. O racismo tem um aspecto dinâmico e um propósito específico, garantir as vantagens econômicas materiais do grupo racial dominante. Ele pode assumir diversas formas, inclusive a da negação.
Ou seja, o projeto racial brasileiro, curiosamente, opera como uma ideologia antirracista, a ideia da democracia racial. O racismo no Brasil tem essa característica de ser encoberto, mas também aversivo. Há uma defesa pública da igualdade, mas no espaço privado os indivíduos só mantêm contato com gente da mesma raça.
Além disso, frequentemente nos deparamos com exemplos nítidos de racismo institucional, caso da prisão do Rafael Braga ou da declaração do comandante da Rota, segundo quem os moradores dos Jardins não podem ser tratados da mesma forma que os habitantes da periferia. Muitos negam que esses casos possam ser classificados como racismo. Sempre há a vontade, a intenção, de mascarar a discriminação no Brasil.
Como o senhor interpreta o crescimento nos Estados Unidos da direita xenófoba e racista?
O sentimento de superioridade racial aflora em indivíduos de diferentes classes sociais, níveis educacionais e espectros ideológicos. Ele não é um distúrbio psicológico, mas um comportamento aprendido e consiste em uma sensação de superioridade biológica e moral, como se brancos devessem sempre estar na parte superior da escala econômica e o Estado fosse obrigado a fazer o possível para manter essa diferença.
Não bastasse, as crises econômicas açulam os movimentos extremistas. No caso específico dos Estados Unidos, desde a eleição à Presidência da República de Ronald Reagan, nos anos 80 do século passado, os republicanos recorrem à estratégia de promover o ódio e o desprezo raciais para fins eleitorais.
O senhor vê semelhanças entre essas manifestações nos Estados Unidos e o que acontece no Brasil?
Sim, sem dúvida. O discurso de ódio tem sido amplamente utilizado no País. Prosperou nas eleições de 2014 e durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Faço um trabalho de campo em áreas periféricas da cidade de São Paulo e ouço discursos que ligam problemas pessoais aos homossexuais.
Encontro negros que acreditam que suas dificuldades são produto de uma vingança divina. Pergunto: “Mas, veja, o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem apenas três anos. Enfrentamos as consequências do racismo há 500. Então, qual a relação entre o casamento de pessoas do mesmo sexo e o fato de que sua esposa morreu de violência obstétrica, por exemplo?”
Muitas lideranças religiosas utilizam abertamente o discurso de ódio contra homossexuais para defender um programa político ultraconservador que atende aos interesses do capital. Nada é mais interessante para o grande capital do que um eleitorado contrário à expansão de direitos sociais e individuais.
Como o combate ao racismo e à homofobia se conectam?
Uma das teorias mais relevantes que descrevo em meu livro é aquela da interseccionalidade. Essa teoria surgiu na década de 1980 e foi formulada pela professora Kimberlé Crenshaw, quando ela analisou a situação das negras vítimas de violência doméstica. É uma situação complicada, pois a negra é discriminada no mercado de trabalho por ser mulher e por ser negra, o que a coloca em uma situação de vulnerabilidade social.
Os sistemas de opressão social não operam sozinhos. Negros e negras homossexuais sofrem, além do racismo, com a homofobia. Quando as vítimas de violência contra homossexuais são negras, asiáticas ou indígenas, a crueldade dos agressores é muito maior. A raça é um fator que tende a gerar ainda mais violência.