Tragédia

Rezemos para quem nos convém rezar

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Lucien de Campos*, Pragmatismo Político

O conteúdo deste breve texto não passa de uma simples verdade que, porventura, já sabemos há tempos. Ainda assim, o resultado desta verdade se revela numa intensa comoção global tendenciosa, parcial e socialmente injusta.

Afirmar que somos todos iguais já se tornou senso comum envolto por carências argumentativas, pois afinal se somos todos iguais não haveria esta decorrente irracionalidade da qual somos estimulados a nos comover com maior intensidade por um atentado na Europa ou nos Estados Unidos, em comparação à uma tragédia, ataque ou catástrofe ocorrida no chamado “terceiro mundo”.

Tal irracionalidade é estimulada por um plano político internacional constituído por convicções ocidentais agrupadas por fatores e métodos (leis, ideologias, instituições privadas e organizações midiáticas) herdados por intermédio do histórico domínio do centro sob a periferia. Repara-se que ao contrário do que se sucedeu no passado, o domínio ocidental já não ocorre em termos territoriais, mas, sim, em termos ideológicos e políticos, forçando-nos a acreditar na predominância de um sistema internacional puramente “euro-americocêntrico”. Em síntese, este sistema que rege as relações internacionais está constituído pela proeminência dos interesses políticos e econômicos dos atores mais poderosos.

Assim como nas sociedades civis, onde se verificam diversas particularidades da desigualdade, o sistema internacional também reflete este panorama. Por exemplo, a desigualdade em termos de poder entre as potências mundiais (na sua maioria países ocidentais) e os Estados mais fracos consegue simplificar o padrão da política internacional, onde as necessidades dos mais fracos são constantemente desprezadas, enquanto as necessidades dos mais fortes são tratadas com relevância e gozam de primazia não somente nas decisões políticas, como também na divulgação das informações por parte do sistema midiático.

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A verdade surge quando é sabido que os maiores conglomerados de mídia do mundo são organizações ocidentais. São estas organizações que decidem para quem supostamente devemos “rezar”, uma vez que neste mundo globalizado, cada vez mais cercado por hashtags, o #PrayFor caiu como uma luva no que diz respeito aos interesses dos atores estatais e corporativos.

O resultado disto? Seletividade jornalística. Isto é, destaque mundial para qualquer ataque ou tragédia num país ocidental e profundo silêncio para ataques e tragédias em países latinos, africanos ou asiáticos. Somente neste ano o #PrayForTexas e #PrayForFlorida nos fizeram esquecer que os mesmos fenômenos ambientais que causaram estas tragédias nos Estados Unidos também foram responsáveis por milhares de mortes no sul da Ásia.

Trazendo um caso ainda mais recente, a enorme explosão de um caminhão-bomba ocorrido no último no sábado 14 de outubro, em Mogadíscio, capital da Somália, já é considerado o maior ataque terrorista dos últimos anos. O número de mortos neste atentado já ultrapassou duas centenas, quantidade superior a todas vítimas fatais dos últimos atentados em Paris, Londres, Barcelona e Las Vegas.

A nível mundial constatou-se pouco destaque à este incidente. #PrayForSomalia não esteve no Trending Topics do Twitter, nem ao menos a bandeira do país apareceu na foto do perfil de usuários do Facebook. Justamente a Somália, país alvo da primeira intervenção de manutenção da paz das Nações Unidas, em 1993. Intervenção esta que expôs algumas incertezas sobre o recurso do uso da força para a proteção humana, uma vez que importa recordar que mediante a liderança dos Estados Unidos, as operações na Somália apresentaram problemas nos sistemas de informações e estratégias militares inadequadas, definindo um tremendo fracasso ao não conseguir garantir a segurança da população somali. Desde então a Somália convive com a intensificação de conflitos internos entre regiões separatistas não reconhecidas. Segundo o relatório Fragile States Index 2017, produzido pelo The Fund For Peace e que destaca os países mais frágeis do mundo, a Somália aparece na segunda posição, apenas atrás do Sudão do Sul.

Outro caso correlacionado e importante de salientar está no grupo extremista Al-Shabaab, principal suspeito pela autoria do atentado. Também foi este o grupo responsável pelo fuzilamento de 148 estudantes na Universidade de Garissa, no Quénia. Este ataque ocorreu em 2015, sendo que na época obteve um destaque irrelevante pela mídia internacional. Obviamente a verdade é que se o mesmo ataque ocorresse numa universidade europeia ou norte-americana, a tragédia receberia maior relevância.

Impossível acreditar na igualdade (no seu sentido mais amplo) quando se sabe que a mídia mundial se insere como uma ferramenta de um sistema cujos interesses políticos e econômicos dos mais fortes, além de historicamente provocarem inúmeras fragilidades, desordens e desigualdades econômicas e sociais em regiões vulneráveis, escolhem para quem devemos nos comover.

Temos de estar cada vez mais convictos que o juízo de valor e a categorização dos incidentes não conseguem inverter a irracionalidade por uma desejável consciência de cidadania global.

*Lucien de Campos é doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa e colaborador em Pragmatismo Político.

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