Lucas Coradini*, Pragmatismo Político
Avanço do conservadorismo, penetração cada vez maior de setores ligados a igrejas na política, retrocesso em conquistas sociais, aumento da intenção de votos em candidato da extrema direita e declarações insuflando o fantasma da intervenção militar partindo de um general do alto comando. Estes são alguns dos ingredientes que acirram os ânimos na sociedade hoje e trazem preocupação sobre o que as eleições de 2018 reservam para o futuro. E enquanto se especulam os possíveis nomes para a sucessão presidencial, pouco se discute concretamente sobre a plataforma que cada um dos candidatos é capaz de representar. Para além de uma crise política e econômica sem precedentes, presencia-se uma crise de projeto para o país, em que nem à esquerda, nem à direita, se vislumbra uma possibilidade de programa capaz de dar resposta às instabilidades e crises com o mínimo de unidade.
O principal partido da centro-esquerda aposta todas as fichas naquele que encontra-se na iminência da condenação que impedirá sua candidatura. Maior líder político desde Getúlio Vargas, Lula tem comprovado sua liderança e carisma nas caravanas realizadas em todo o país. Num momento em que a classe política se encontra em absoluto descrédito, sendo alvo de protestos e achincalhamento em eventos públicos, restaurantes e aeroportos, o ex-presidente mobiliza as massas por onde passa demonstrando um capital político incomparavelmente superior ao de seus oponentes. Apesar do desgaste de figurar como réu em diferentes processos e de ser alvo constante de grandes veículos de comunicação, Lula lidera as pesquisas eleitorais em todos os cenários. Este capital político, contudo, é intransferível para qualquer outro nome do Partido dos Trabalhadores ou da esquerda brasileira. E tão arriscado quanto o investimento concentrado em quem está a um passo de se tornar inelegível é o fato de sua plataforma se resumir a um receituário que não possui as condições de ser implementado como outrora, seja pela nova correlação de forças na política nacional, seja pelas práticas pouco republicanas que marcaram os anos dourados do PT e lhe garantiram governabilidade, que dificilmente poderão se repetir. O PT serve-se de Lula para permanecer no páreo, mas não apresenta novidade – nem autocrítica – num momento em que renovação é a palavra de ordem.
As consequências de retirar Lula da corrida eleitoral, todavia, são imprevisíveis, podendo adquirir ares catastróficos se vier desacompanhada da captura de medalhões da cleptocracia nacional que tem se mantido ilesos até o momento. Uma condenação em segunda instância do ex-presidente enquanto Temer, Padilha, Moreira Franco, Jucá e Aécio Neves seguem livres e em pleno gozo de seus cargos perde legitimidade e reforça a tese da perseguição política ao PT. Deve, por isso, gerar mais instabilidade e conurbação social. Em termos eleitorais, os votos de Lula seriam divididas entre candidatos do próprio partido (Fernando Haddad ou Jaques Wagner) e outros nomes da centro-esquerda, como Ciro Gomes, Marina Silva, além de possíveis candidaturas independentes do PCdoB e PSOL. Ou seja, a inelegibilidade de Lula fortalece a direita, pois não há substituto ao nível no partido e tampouco unidade na esquerda para uma composição que congregue esses votos.
Do outro lado, o campo da direita não é menos frágil, pulverizado, e carente de projeto para o país. O PMDB, partido do fisiologismo, encontra-se fortemente implicado em escândalos de corrupção e tem parte de seus líderes condenados ou em vias de sê-lo. O pouco que se pode provar do “Pontes para o Futuro” demonstra um caráter antinacional que agravou os quadros de recessão e desemprego, além da clara subalternidade ao sistema financeiro internacional e ao grande capital. Michel Temer tem a menor aprovação popular que um presidente já atingiu na história, mantendo uma sobrevida pelos serviços que o PSDB, DEM, PP e PSD lhe prestam compondo sua base parlamentar. O PSDB, igualmente comprometido nos crimes apurados pela Lava Jato, também tem desconstituído suas lideranças dia após dia, a partir dos escândalos que romperam a blindagem midiática que até pouco tempo preservava os tucanos. As pesquisas demonstram que Aécio Neves e José Serra já não têm envergadura para ousar disputar a presidência, e Geraldo Alckmin, apesar da elevada rejeição, deve polarizar com João Dória nas prévias do partido, produzindo uma cisão que pode inclusive levar o segundo a buscar outra sigla.
Nesse contexto, não assombra que Jair Bolsonaro figure entre os candidatos mais cotados, desfrutando da popularidade conquistada sobretudo nas redes sociais, apesar da atuação parlamentar modesta que o fez aprovar somente dois projetos de lei em 26 anos de mandato. Notoriedade adquirida antes pelo envolvimento em polêmicas e pela personalidade colérica, que já lhe rendeu condenação no STJ em ação de danos morais – e que não é propriamente o perfil que se espera de um chefe de estado, mas factível num momento histórico em que Trump lidera a maior potência global. A trajetória política de Bolsonaro indica que há muito pouco a oferecer, salvo a defesa de uma agenda “anti direitos humanos”. Além de pertencer a um partido anão, o PSC, Bolsonaro demonstra ser incapaz de dialogar e conviver com opiniões em contrário, o que limita seu poder de articulação e o inviabiliza no ambiente democrático. Entretanto, nem seu radicalismo, sua distopia, ou o fato de admitir que não possui projeto para a área econômica são suficientes para colocá-lo em descrédito. O candidato da extrema direita aproveita-se da decadência de partidos tradicionais e da descrença da sociedade na própria política – num imaginário em que sua herança militar representa uma solução fora dela – podendo ser o outsider a emplacar as eleições num cenário sem Lula.
O que resta então para a sociedade brasileira, enquanto projeto de país que resgate algum senso ético, autoestima e esperança de futuro melhor? Sobre quais bases é possível pensar um projeto político e econômico sustentável, que induza desenvolvimento com inclusão, que preserve o patrimônio nacional, as riquezas naturais, e nos coloque novamente num cenário de protagonismo internacional? Certamente não será a tradicional direita brasileira que conformará esse caminho, quando tem assumido um caráter liberal, corrosivo às estruturas do estado e indiferente àqueles que mais precisam. Uma direita que, curiosamente, não possui veias nacionalista ou desenvolvimentista, mas antes parece perpetrar a herança colonial. E tampouco será a figura salvacionista de Lula, o sonho social-democrata que um dia acreditou-se sedimentado, por ordem do efêmero bem-estar social gerado às custas da conciliação de classes, das coligações espúrias e da relação deletéria entre público e privado. É preciso um meio termo entre o sonho americano da direita liberal e a utopia socialista de uma esquerda burocrática. É preciso, portanto, construir um caminho diferente de tudo que já foi trilhado, rompendo com o maniqueísmo presente e reunindo as forças progressistas em nome de um denominador comum: a defesa da democracia, da soberania nacional e do bem-estar social.
Em diferentes países deu-se o nome de Terceira Via a esse movimento, termo que gera alguma desconfiança pela apropriação indevida que partidos social-democratas realizaram para conquistar o centro eleitoral. E de fato, na origem, a terceira via incorporou ideais liberais à social-democracia, quando esta sofre desgaste após o próspero período de bem-estar social conquistado no período pós Segunda Guerra Mundial na Inglaterra. Fenômeno que se repetiu na França, com François Mitterrand, na Espanha, com Felipe Gonzáles e na Itália, com Bettino Craxi, mas que adquiriu maior notoriedade na década de 1990, com Bill Clinton nos Estados Unidos e Tony Blair, no Reino Unido, que produziram o mais recente movimento de atualização da social-democracia. Para o sociólogo britânico Anthony Giddens, principal referência desta corrente, a Terceira Via devia representar um consenso entre os limites desejáveis da atuação do Estado e do mercado, conciliando eficiência econômica, justiça social e liberdade individual. Deveria buscar o meio termo entre os extremos da autorregulação selvagem dos mercados e do Estado inoperante e falido, provendo, ao fim, uma despolarização pragmática.
Independente do que a Terceira Via representou nesses países, associando-se à ideia de filiação a ideais liberais, o Brasil vive uma polarização que enseja uma saída mediadora. Algo que garanta o papel do Estado no que diz respeito às conquistas sociais e políticas públicas, ao mesmo tempo que se observe responsabilidade fiscal e atenção aos setores produtivos. Urge recuperar a capacidade de investimento público para induzir o desenvolvimento tanto quanto incentivar investimentos privados, mas sem prescindir de riquezas naturais como o pré-sal, a floresta amazônica ou reservas minerais. A economia tem que estar ancorada em uma indústria nacional competitiva, mas setores estratégicos devem estar sob o controle de estatais fortes, que gerem retorno para áreas como educação, ciência e tecnologia. É preciso serenidade para compreender que a reforma da previdência não é mais urgente do que uma reforma tributária, que equalize as distorções que tornam o Brasil um case único em desigualdade. E que antes de retirar direitos dos trabalhadores, é preciso realizar uma reforma do Estado que dê fim aos privilégios de uma reduzida casta do serviço público, que recebe supersalários e benefícios impensáveis ao cidadão comum. Mesmo o debate sobre segurança pública, ideologicamente contaminado tanto pela esquerda quanto pela direita, deve compreender que o genocídio de jovens negros periféricos é tão grave quanto o crescimento de facções criminosas e o extermínio diário de policiais, e por essa razão as ações de repressão e o fortalecimento das forças de segurança são tão necessários quanto as políticas públicas para redução da desigualdade, ou as reformas dos sistemas penal e prisional. É preciso identificar o que nos une, as pautas comuns, aquilo sobre o qual não é possível abrir mão, em um debate de alto nível que reúna diferentes campos políticos, mas sobretudo as forças progressistas e os movimentos da sociedade civil organizada. Se os partidos políticos apresentam dificuldades em pautar esse debate, dadas as disputas de poder e idiossincrasias internas, é preciso buscar novos espaços para desenvolvê-lo.
Algumas iniciativas interessantes são perceptíveis nesse sentido, discutindo desde alternativas imediatas para a saída da crise até um projeto de nação para as próximas décadas. Exemplo disso é o Projeto Brasil Nação, liderado pelo economista Bresser-Pereira e apoiado por centenas de intelectuais, artistas e políticos de todo o país, que esboça um projeto de desenvolvimento econômico, político, social e ambiental para a retomada do crescimento com inclusão e independência. Em diferentes regiões têm sido criados fóruns e comitês com caráter semelhante e que também fomentam a discussão. Apenas no sul do país, podemos destacar o Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, organização apartidária coordenada pelo cientista político Benedito Tadeu César, e o Instituto Novos Paradigmas, presidido pelo ex-governador Tarso Genro, que produzem debates político-acadêmicos potencialmente capazes de subsidiar a construção de agendas. Há ainda institucionalidades ligadas a partidos, como a Fundação Lauro Campos e a Fundação Perseu Abramo, que também são catalisadores para esse tipo de debate, e a importante iniciativa de construção do “Vamos”, uma frente inspirada no espanhol “Podemos”, que reúne movimentos sociais, sindicatos, organizações estudantis e integrantes de diferentes partidos para discutir o futuro do país.
Mais recentemente, e com foco na possível eleição indireta induzida pela queda de Temer, o ex-ministro e ex-presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, ensaiou um manifesto pela União Nacional, articulando uma chapa chancelada por setores das forças armadas – com os quais estabeleceu estreita relação quando Ministro da Defesa – em que figuraria como vice de Rodrigo Maia. Apesar da preocupante relação com a caserna e com o DEM, identifica-se também nesse movimento um projeto de nação consubstanciado em preceitos republicanos e democráticos, no qual elenca como prioridades para o país: a) ampliar a soberania nacional com o pleno desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e dos meios de defesa; b) elevar a qualidade de vida do povo brasileiro com a redução das desigualdades sociais; e c) fortalecer a democracia e a tolerância na convivência entre os brasileiros, com realização de uma reforma política que liberte nosso sistema político do controle de interesses corporativos e oligárquicos e assegure o predomínio dos grandes debates dos temas nacionais na esfera pública.
Estes são apenas alguns exemplos do que o processo de reflexão sobre as saídas para a crise tem produzido em termos de organicidade e propostas. É preciso ter claro que não há verdade única ou universal sobre o caminho a seguir, e que não há solução para a crise política fora da política. Todos estes movimentos devem servir para ressignificá-la e promover atualização nos próprios partidos. Novos programas e novas composições deverão surgir até 2018, alterando a atual correlação de forças.
O momento é oportuno, portanto, tanto para aprofundar o debate sobre o Brasil que queremos quanto para constituir um novo campo político, capaz de enfrentar a malta que se apropriou das estruturas do estado nos três poderes. Se houver disposição para o diálogo, essas forças reunidas são capazes de consolidar uma frente verdadeiramente ampla, que apresente alternativas para o país de forma consistente, orgânica, com inserção social e com o nível de profundidade que a complexidade da situação requer. É momento destes fóruns, coletivos e organizações passarem a se articular e buscar constituir uma unidade, sob o risco de nas próximas eleições restar como escolha o governismo predatório da já conhecida direita liberal ou a aventura fascista da extrema direita em gestação. Na atual onda conservadora, uma saída pelo centro pode representar um avanço.
*Lucas Coradini é Mestre em Sociologia, Doutor em Ciência Política, e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul e colaborou para Pragmatismo Político
Referências:
GIDDENS, Anthony. A terceira via. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GIDDENS, Anthony. O Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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