Vídeo falso publicado por Bolsonaro gera onda de ódio contra escola e crianças
Jair Bolsonaro publica vídeo editado de artista em escola e faz com que 'bolsominions' promovam ataque de ódio ao colégio e às crianças
Um vídeo gravado dentro do Colégio de Aplicação João XXIII, ligado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais, foi alvo de uma enxurrada de comentários preconceituosos nas redes sociais. A gravação mostra um episódio de um programa mensal feito pela UFJF intitulado “Na hora do lanche”. No episódio em questão, exibido na página de Facebook da universidade na véspera do Dia das Crianças, o artista performático Nino de Barros foi à escola vestido como a drag queen Femmenino e entrevistou os alunos sobre o que eles querem ganhar de presente.
Um trecho de menos de 15 segundos do vídeo — que tem ao todo pouco mais de 4 minutos —, no qual a drag fala sobre não existir diferenciação entre brinquedos de menina e brinquedos de menino, viralizou na internet por meio de páginas como a do movimento “Escola sem partido” e a do deputado Jair Bolsonaro (PSC).
O deputado compartilhou esse trecho na última sexta-feira, 14, três dias após a publicação original do programa na íntegra. Na postagem de Bolsonaro, o vídeo aparece com os dizeres “Prestem atenção na canalhice que estão fazendo com nossas crianças“. Esse vídeo tem, até a hora em que esta reportagem foi ao ar, mais de 850 mil visualizações. O vídeo na página da UFJF tem 300 mil.
O programa “Na hora do lanche” já é exibido, mensalmente, há mais de dois anos, segundo informou o atual apresentador, Nino de Barros. Ele, que é bolsista do curso de artes e design da UFJF, assumiu o comando da atração em maio deste ano e conta que, na maioria das vezes, não o apresenta “montado” como drag queen. Isso aconteceu somente duas vezes: no primeiro episódio, ainda em maio, sobre o Dia de Combate à LGBTfobia, e agora em outubro, em comemoração ao Dia das Crianças.
— O que aconteceu desta vez foi que reeditaram o vídeo publicado na página da UFJF e descontextualizaram a minha fala, fazendo parecer que eu estava dizendo que não existe menina e menino. Na realidade, o que eu estava falando era que não deveria existir diferença entre brinquedos para menina e brinquedos para menino — afirma Nino, de 22 anos, intéprete da drag queen Femmenino, já conhecida na cidade.
Ele conta que, a cada dia, o número de comentários agressivo cresce em suas páginas em redes sociais.
— Eu pensei que, conforme os dias fossem passando, os ataques diminuiriam. Mas isso não está acontecendo. Todo dia acordo com um número maior de mensagens do que no dia anterior. Eu estou bem tranquilo porque sei que não estou errado, mas me assusta a quantidade de mensagens de ódio nas minhas páginas pessoais. Além de criticar o que eu falei, muitos chegam a inventar histórias… Já reportaram que a escola contratou uma “professora travesti” para dar aula às crianças, o que não tem um pingo de verdade — lamenta Nino.
Questionado se já havia sofrido ataques dessa natureza antes, por conta de seu trabalho com drag queen, o artista disse que, nessa proporção, a experiência negativa é inédita:
— Não é todo dia que o Jair Bolsonaro publica um vídeo meu. A repercussão, depois disso, extrapolou Juiz de Fora e ganhou um tamanho que eu não imaginava — conta ele.
Na página Femmenino no Facebook, ele postou um vídeo no qual responde a alguns dos comentários que recebeu. O vídeo tem, até o momento, mais de 230 mil visualizações.
“Queremos acabar com a família? Sim, mas apenas com um tipo de família, é um formato muito específico de família patriarcal que mantem homens e mulheres presos em padrões do passado“, diz o artista.
Cruzada movida por vereadores
Dois vereadores da cidade entraram com pedidos de moções de repúdio ao programa com a drag queen. André Mariano (PSC), que é do mesmo partido de Bolsonaro, e José Fiorilo (PTC) tentaram aprovar as moções na Câmara Municipal de Juiz de Fora em uma audiência realizada na última terça-feira, dia 17. No entanto, após a pressão de moradores da cidade, que protestaram dentro da Câmara na hora da votação, os dois vereadores retiraram as moções.
— O vereador André Mariano fez questão dizer que retiraram apenas provisoriamente. Então, estamos em cima para acompanhar o desenrolar dessa história e ver se esse pedido de repúdio volta à Câmara — afirmou Matheus Brum, ex-aluno da UFJF que organizou a manifestação contra a iniciativa dos vereadores.
Brum conta que cerca de 300 pessoas participaram do protesto e que, antes mesmo da votação desta terça, os vereadores haviam tentado aprovar as moções na noite de segunda-feira.
— Tentaram aprovar “na calada” — diz o jovem. — Mas outro vereador conseguiu adiar, e, em menos de 24 horas organizamos uma manifestação, porque a comunidade LGBTTI [sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos] de Juiz de Fora é muito unida e consciente de seus direitos.
André Mariano é o mesmo vereador que levou o projeto “Escola sem partido” para a cidade e é autor da lei que instituiu 31 de outubro como Dia Municipal da Proclamação do Evangelho.
— Ele é um velho conhecido nosso, que traz à Câmara pautas que, para nós, não fazem nenhum sentido — destaca Brum.
Conselheiro tutelar aciona MPF
A grande repercussão do vídeo também fez o conselheiro tutelar da cidade Abraão Fernandes Nogueira enviar um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) que pede a apuração da conduta da escola e da drag queen. No documento, Nogueira considera que o artista desrespeitou a legislação municipal e nacional que determina as normas de proteção aos direitos de crianças e adolescentes.
“Em determinado momento, a drag deixa transparecer a questão da ideologia de gênero, ao dizer que não existe questão de brinquedo de menino e de menina. E ao dizer ‘Toma família brasileira’ se torna um desrespeito, porque todas aquelas crianças são parte de uma família. A gente não está sendo homofóbico, nem discutindo diferentes formas de famílias. O artigo 22 do ECA destacou o direito de guarda dos pais e o Estado não pode ir na contramão do direito fundamental do pai e da mãe sobre como educar o filho“, escreveu o conselheiro, no ofício.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se posicionou a favor da universidade, afirmando, em nota publicada na última segunda-feira, que declara “apoio ao material produzido pela UFJF” e que “fomentar a reflexão sobre gênero nas escolas é contribuir para a desconstrução da cultura do machismo, para o combate à LGBTfobia e para o reconhecimento da diversidade e e respeito aos direitos humanos“.
‘Não houve desrespeito’, diz advogada
Integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB-JF, Joana de Souza Machado explica que a instituição decidiu se manifestar publicamente porque vê com bons olhos a iniciativa da escola e da UFJF de discutir questões de gênero com crianças, considerando, assim, sem fundamento o pedido do conselheiro tutelar para que seja movida uma ação.
— Quando a gente vê esse vídeo, a primeira percepção é de que a escola teve uma iniciativa junto à universidade de abordar a identidade de gênero com as crianças, com conteúdo apropriado e que não desrespeitou as crianças em nenhum momento — afirma Joana. — A gente sentiu a neccesidade de se posicionar porque o vídeo não traz nenhum desrespeito. Questiona apenas, de forma muito clara, a imposição sobre meninas e meninos em relação aos brinquedos que devem escolher e a todas as escolhas que devem fazer na vida. Essa imposição de que meninas são mais apropriadas para escolher certas coisas e meninos, outras, muitas vezes limitam as pessoas. É um questionamento que a gente considera válido e está em acordo com a Constituição.
Joana também critica o termo usado pelo conselheiro em seu ofício ao MPF, no qual escreve “ideologia de gênero”. De acordo com a advogada, esse conceito não existe.
— É muito preocupante quando um conselheiro tutelar, que deveria cuidar de crianças e adolescentes, se vale de uma expressão completamente equivocada como “ideologia de gênero”. Esse conceito não existe, porque gênero não se constrói ideologicamente. Só existe no meio eleitoral, para políticos promoverem ódio — considera Joana. — [Ele] é alguém que traz esse preconceito para o cargo que ocupa. Isso é perturbador.
Para a advogada, as chances de o MPF aceitar o pedido do conselheiro e de fato mover uma ação são pequenas.
— Todo cidadão, independentemente do cargo, pode pedir uma ação ao MPF. Mas o órgão vai analisar se o pedido traz algum fundamento. A nossa avaliação é de que esse ofício deve ser arquivado, porque não conseguimos ver fundamento para prosseguir. Seria “tribunalizar” o ambiente escolar, o que não traria nenhum benefício — avalia ela.
Conselheiro já é indiciado por racismo
Esse mesmo conselheiro tutelar está sendo indiciado por injúria racial. Abraão Fernandes Nogueira é acusado de ofender uma mulher negra de 25 anos. A fotógrafa Mariana Cristina Dias Martins registrou boletim de ocorrência na Polícia Militar de Juiz de Fora alegando ter sido vítima de racismo. No documento, ela informa que, na última segunda-feira, dia 16, durante uma discussão entre várias pessoas no Facebook, Nogueira enviou a ela mensagens privadas dizendo que ela tinha “cor de bosta”.
Ainda segundo o texto da ocorrência, o conselheiro disse a Mariana que “ela deveria se cuidar melhor, pois devia esconder um monte de coisas na cabeça, menos pente e shampoo“. O caso foi encaminhado para a Polícia Civil.
Após a enxurrada de comentários na internet sobre o vídeo com a drag queen Femmenino, a UFJF também se posicionou em sua página no Facebook:
“Prezados e prezadas, apreciamos a discussão de ideias. As manifestações a respeito do vídeo certamente serão objeto de discussão e análise pelos responsáveis. Mas comentários homofóbicos, que contenham palavrões, injúria ou firam a política de comentários da página serão excluídos. Temos cópia de todos eles para não haver dúvidas sobre o procedimento adotado, como a exclusão das manifestações ‘tem de fuzilar’, ‘poderia jogar gasolina no próprio corpo’. #VaiTerDragSim.”
Agência Globo