"O que Kevin Spacey fez comigo quando eu tinha 13 anos. E o que ele não fez [...] Trabalhamos juntos numa peça na Broadway e éramos amigos. E então deixamos de ser"
Danny Lanzetta, HuffPost
Quando eu tinha 13 anos, Kevin Spacey pôs a mão na minha coxa.
Não é a coisa mais ofensiva que ele já fez, como agora sabemos, graças a Anthony Rapp. O incidente que Rapp descreveu ao BuzzFeed ocorreu alguns anos antes do meu, e, o que foi mais chocante, Rapp estava em uma situação estranhamente isolada. Quando li seu relato sobre o que aconteceu, cheguei a ficar aliviado. Poderia ter sido muito pior.
Felizmente, não foi. Rapp e eu nunca chegamos a nos conhecer naquela época – ele é um pouco mais velho que eu –, mas parece que tivemos infâncias um pouco semelhantes. Acho que não existe exatamente um sentimento de “irmandade” entre antigos atores mirins, se bem que todos nós conheçamos os lados bizarros dessa vida. Até hoje, quando conto a minha mulher como era ter aula particular três horas por dia em sets de filmes ou passar várias horas depois da escola em um carro, a caminho de Nova York para fazer três audições, ela meneia a cabeça e comenta: “Você teve uma infância estranha“.
Talvez. Mas eu adorei minha infância. Não tanto o fato de trabalhar como ator. Desisti disso assim que virei adulto, e eu me interessava muito mais por John Milton, o poeta, que por Al Pacino. Mas o que eu adorava eram as oportunidades: de viajar, de ficar acordado até muito mais tarde que meus colegas de classe, de ser tratado como adulto. E, o mais importante de tudo, de conhecer algumas das pessoas mais interessantes de minha vida. Muito do que eu penso e sinto em relação ao mundo hoje vem do privilégio de ter tido minha infância “estranha“.
Kevin Spacey e eu fizemos parte do elenco original de Lost in Yonkers em 1991. A gente se dava superbem. Ele é um sujeito afável, divertido, como sabe qualquer pessoa que já o tenha visto em Saturday Night Live. Ele é ótimo em imitar muita gente. É bom de papo. É muito divertido. Eu me lembro de ficar fascinado com a cicatriz peculiar que ele tem no rosto, mas de ter medo de lhe perguntar sobre isso. Mas aposto que ele não teria se incomodado se eu tivesse perguntado. E nunca me esquecerei de ficar sentado com ele no saguão de um hotel numa noite fria em Winston-Salem, Carolina do Norte. Conversamos sobre a peça, sobre minhas questões de adolescente, sobre a idade dele (por algum motivo, eu não conseguia acreditar que ele tivesse apenas 32 anos). Foi uma noite bacana, na realidade. Eu fiquei encantado; meus pais ficaram encantados. Fui dormir feliz porque Kevin Spacey era meu amigo.
De volta a Nova York, a peça foi altamente elogiada pela crítica e ganhou vários prêmios Tony. Kevin e eu éramos colegas em um dos maiores sucessos da Broadway. Viramos muito amigos. A gente saía juntos para jantar, jogava conversa fora nos bastidores do teatro. Houve até um plano de eu ficar no apartamento dele entre um espetáculo e outro num dia de matinê. Mas o que mais fazíamos era passar tempo juntos no camarim dele. Kevin tinha um daqueles camarins “luxuosos” do outro lado do teatro. Era amplo. Havia um sofá, uma TV e um daqueles espelhos sofisticados de Hollywood com lâmpadas em todas as bordas. Passamos muitas noites ali antes do início da peça, assistindo jogos de basquete.
Foi numa daquelas noites, com os malditos Celtics jogando, que Kevin Spacey pôs a mão na minha coxa.
Seria mentira dizer que eu me lembro das circunstâncias exatas ou de exatamente quão alto na coxa ele colocou a mão dele. Como obsessivo-compulsivo diagnosticado, já duvidei de minha própria memória muitas vezes. Na verdade, eu estava conversando ao telefone com minha mãe neste instante e ela diz que naquele dia eu nem sequer consegui dizer com certeza absoluta exatamente o que aconteceu. Mas ela percebeu que eu fiquei assustado. E, ciente de que seu filho não era dado a inventar histórias para chamar a atenção, ela veio me buscar para que eu não tivesse que ir à casa de Kevin. Mas acho que meu TOC dificultava a vida dos meus pais. Eles já tinham que lidar com um filho que fazia listas malucas de seus sentimentos de culpa, que tinha tirado a roupa num supermercado aos 4 anos devido a uma compulsão inexplicável e que tinha fixação pelo número 5. Quem sabe aquilo fosse apenas mais uma manifestação de uma doença que eles não entendiam?
Assim, não dissemos nada. E não fizemos nada. Para ser totalmente honesto, nunca, até agora, mesmo depois de virar adulto, passou por minha cabeça dizer alguma coisa. Na realidade, já aproveitei os detalhes do incidente várias vezes como uma espécie de anedota para contar em festas, alguma coisa para despertar o interesse de pessoas semibêbadas formando um círculo perto da mesa dos canapés, e muitas vezes concluindo a narrativa com uma frase casual: “Todo o mundo sabe que Spacey é assim“.
Quando penso nesses momentos hoje, fico envergonhado.
Nenhum de nós pode fugir de seu passado. Não eu, nem Kevin Spacey, nem Anthony Rapp. Eu tratei a situação com Spacey como piada, uma anedota para contar em festas.
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Estou tentando entender por que estou escrevendo isto, porque a denúncia de Anthony Rapp me levou a querer me sentar e encontrar palavras. A resposta mais fácil é que escrever é minha vida. Uso as palavras para deixar as coisas claras para mim mesmo. Nunca entendo nada até tentar colocar as coisas no papel. Aquele momento com Kevin nunca me afetou muito. Não sei bem por quê. Alguns anos após o incidente, cheguei a aceitar um convite dele para assistir a O Sucesso a Qualquer Preço. Mas há outra coisa, uma coisa com a qual venho me debatendo desde que Rapp fez sua denúncia. E a melhor explicação que posso dar é…
Em 1951, William Faulkner escreveu: “O passado nunca está morto. Nem sequer é passado.” E, sucintamente, é essa a verdade. Nenhum de nós pode fugir de seu passado. Não eu, nem Kevin Spacey, nem Anthony Rapp. Eu tratei a situação com Spacey como piada, uma anedota para contar em festas. E agora estou sendo obrigado a encarar de frente a gravidade de algo que eu e meus pais deveríamos ter tratado de outra maneira. Quanto a Kevin, ele vem conseguindo evitar encarar isso há anos. Agora, não. Não mais.
Quero ser generoso e dizer alguma coisa do tipo, “Kevin também foi ferido, detonado por uma sociedade que pune as pessoas por serem honestas”. A pedofilia é um transtorno psiquiátrico em que a pessoa sente atração por crianças pré-púberes. Há multidões de pessoas que têm esses sentimentos e não os colocam em prática. E se tivessem dado espaço a Kevin Spacey para que ele pudesse ter falado das atrações que sente, sem medo de punições culturais? Será que ainda estaríamos tendo esta conversa? Mas é claro que Kevin, como ator de sucesso, provavelmente teve mais oportunidades que a maioria das pessoas de conseguir ajuda. E, na realidade, em seu pedido de desculpas ele não assumiu responsabilidade por seu comportamento e confundiu sua sexualidade com sua ação de predador. Eu gostaria de perdoá-lo, gostaria de acreditar que ele pode se redimir, nem que seja apenas porque assim a leviandade de minha reação seria desculpada. Mas enquanto Kevin não abrir o jogo e falar a verdade sobre o que vem mantendo em segredo, ele não vai merecer ser absolvido por pecados que ele parece nem sequer compreender.
Quanto a Anthony Rapp, aplaudo sua decisão de vir a público, sua disposição de reabrir uma ferida antiga. Mas até ele sabe que o xis da questão aqui não é ele. Como Rapp disse em sua página no Twitter, “vim a público com minha história, incentivado pelas muitas mulheres e os muitos homens corajosos que vêm falando publicamente, para lançar uma luz e, espero, fazer uma diferença, assim como eles fizeram uma diferença para mim.” Ele tem razão. A verdade é que esta é uma história sem fim, com uma lista sem fim de heróis e vítimas. E muita gente entre uns e outros.
Nunca mais fui ao camarim de Kevin. Ele deve ter sabido que alguma coisa não estava bem. E ele tentou ser simpático comigo, ficar de bem novamente. Eu fui o primeiro membro do elenco original a deixar “Lost in Yonkers”. Na verdade, Manny Azenberg, o produtor da peça, concordou em me liberar do meu contrato antes do final para eu poder ir à Califórnia a tempo de começar a filmar “Brooklyn Bridge”.
Depois de minha última apresentação, a maioria do elenco e da equipe técnica foi ao McHale’s, um bar e grill irlandês à moda antiga que ficava ali perto e foi demolido mais tarde. Daisy Eagan, que ganhou um Tony naquele ano aos 11 anos de idade, estava lá. Tínhamos trabalhado juntos em “Les Miserables” alguns anos antes. Kevin estava de ótimo humor. Há até uma fogo de nós dois daquela noite: ele me segurando no ar, sorrindo para a câmera; eu agitando braços e pernas, fazendo de conta que estava aflito. Mais tarde Kevin me deu um console de videogame Atari Lynx portátil como presente de despedida. O console veio sem caixa e já havia um jogo inserido nele. Foi como se ele o tivesse comprado para ele mesmo e então decidido me dar, achando que seria um bom jeito de me deixar bonzinho. Fiquei jogando aquele único game durante horas no banco de trás da van Toyota Previa de meus pais enquanto atravessávamos o país.
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