Desvalorização humana
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
As últimas destruições trabalhistas e previdenciárias propostas pelo governo(?) Fora Temer e legitimadas por um Congresso formado majoritariamente por homens brancos velhos ricos e corruptos têm como argumento principal que é muito caro manter um trabalhador e, após décadas de labuta, lhe remunerar o descanso.
Na mesma lógica, o Governo do ex-Estado do Rio Grande do Sul culpa os servidores pela dita crise nas finanças públicas, como se o estado servisse aos funcionários públicos, e não o contrário. Ora, o estado (prefeituras, estados e a União) existe não para ser superavitário. Ele existe pra oferecer serviços à população, desde o tapamento de buracos, passando pela fiscalização de condutas e se necessária a repressão, até a educação e outros. E esses serviços vários são prestados invariavelmente por pessoas. Por mais avançada que seja a tecnologia, serviços vão sempre demandar mão de obra humana em todas as etapas do processo. Logo, é natural que o maior gasto dum prestador de serviço público ou privado seja justamente com recursos humanos.
Em Farroupilha/RS, há pouco um sujeito matou dois por desconfiar que eles teriam lhe surrupiado o celular. Não faltou, a isso, quem defendesse que o assassino fizesse a paga do crime também com a sua vida.
A guerra do – e ao – tráfico de drogas vitimiza centenas de jovens diariamente. Como são, em maioria, negros favelados, se dá pouca importância a esse genocídio. Enquanto isso, a sociedade, em nome da vida, se nega a sequer discutir a legalização da maconha.
Uma das mudanças constante na destruição trabalhista é a vinculação de indenizações por danos físicos ou morais ao salário das vitimas. Ofender o diretor é muito mais grave do que xingar aquele que lhe serve o cafezinho.
Antes disso, houve uma tentativa desse mesmo governo(?) recordista de impopularidade de amenizar as regras de coibição do trabalho análogo ao escravo. Pudera. Fomos um dos últimos países a abolir a escravidão, que taxava pessoas.
Mesmo após 1888, o Brasil continuou mensurando o valor dos seus habitantes. Se hoje os refugiados haitianos e senegaleses são personas non gratas, no início do século XX os imigrantes europeus e japoneses foram muito bem vindos ao país pra trabalharem no então início da industrialização brasileira, em detrimento dos negros libertos. Se era pra pagar salário, que fosse pros europeus não pros pretos doravante forros.
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Também herança escravista, o trabalho doméstico, exercido predominantemente por pretos e pardos, tem menos direitos dos que os demais trabalhos (a golpeada presidenta Dilma conseguiu ainda propor melhorias, mas ainda está aquém).
Talvez esta onda conservadora que assola o país em todos os níveis, prejudicando sobretudos “os mais baratos”, os assalariados públicos e privados, seja em muito reflexo da desvalorização da plenitude da vida.
A cultura ocidental-cristã, a qual estamos voluntaria ou involuntariamente atrelados, contraditoriamente defende em discurso e em teoria a vida, mas, no seu íntimo, concorda com o sofrimento e condena o hedonismo, o lazer. “Jesus sofreu por nós. Devemos, então e também, aceitar com resiliência o nosso sofrimento”. O martírio seria etapa dum progresso evolutivo em verdade nunca alcançado. Logo, se aposentar com idade de ainda aproveitar os prazeres e lazeres da vida é heresia.
E resta evidente que essa dita reforma (insisto que é uma destruição) trabalhista é uma desvalorização humana. Nela o capital, o dinheiro – de poucos -, vale mais do que o esforço, o trabalho, o fazer humanos.
*Delmar Bertuol é escritor, professor de história da rede municipal e estadual e colaborou para Pragmatismo Político