Revolução Russa de 1905 relaciona-se com a Revolução vitoriosa de 1917 na medida em que esse processo representou um ganho de consciência política para os trabalhadores e também deixou como legado os sovietes
Luiz Enrique Vieira de Souza*, Opera Mundi
O marco inicial da Revolução Russa de 1905 foi o episódio conhecido como “Domingo Sangrento”. Nesse dia, uma multidão de trabalhadores de São Petersburgo participava de um protesto pacífico que se encaminhava até o Palácio de Inverno para apresentar suas reivindicações ao czar. Essas reivindicações diziam respeito à melhoria das suas condições de trabalho, incluindo redução da jornada e melhores salários.
O protesto era pacífico, mas mesmo assim o czar reagiu com violência e ordenou que as tropas atirassem nos manifestantes. Houve centenas de mortos e feridos, e a consequência disso foi a radicalização dos protestos. Os trabalhadores organizaram greves massivas nos principais centros urbanos da Rússia, e agora suas reivindicações já não eram de natureza apenas econômica, mas também política. Os trabalhadores perderam a confiança no governo e passaram a exigir uma série de liberdades democráticas, como o direito de organização nos locais de trabalho, a liberdade de imprensa e a convocação do parlamento.
Apesar de essas demandas serem similares às demandas das revoluções burguesas do Ocidente, os empresários industriais sentiram-se acuados em face do protagonismo político dos trabalhadores e preferiram uma aliança com o governo czarista enquanto uma estratégia de preservação dos seus interesses econômicos.
É verdade que esses protestos foram derrotados. Os trabalhadores não tiveram suas reivindicações atendidas e o governo conseguiu recompor suas forças e manter-se no poder por mais de uma década. Mas a Revolução Russa de 1905 relaciona-se com a Revolução vitoriosa de 1917 na medida em que esse processo representou um ganho de consciência política para os trabalhadores e também deixou como legado os sovietes, organismos de democracia direta nos quais os trabalhadores se reuniam para discutir os seus problemas, encontrar as soluções que julgavam mais adequadas e implementar essas decisões enquanto um esforço coletivo.
Tanto Max Weber como os teóricos da social democracia interessaram-se pela Revolução Russa de 1905, não somente pelo que ela representava no contexto do império czarista, mas também porque eles tomaram esse processo revolucionário como base para refletir sobre as condições específicas das questões políticas e sociais na Alemanha.
Em meu livro, fruto de minha tese de doutorado defendida na USP e de um período de investigação na Alemanha, discuto autores que desenvolveram análises originais sobre o assunto. A maneira pela qual cada um deles refletiu sobre a Revolução Russa para pensar as especificidades do desenvolvimento alemão foi orientada por seus próprios valores e concepções políticas.
Max Weber empolgou-se com a Revolução de 1905 porque acreditava que ela poderia representar um sopro de liberdade e se contrapor ao enrijecimento da vida social e à crescente burocratização das instituições políticas na Europa Ocidental. Ele procurou analisar as chances de sucesso da democracia na Rússia, mas constatou com certa amargura que os defensores da liberdade não contavam com o apoio das classes economicamente emergentes.
Ao mesmo tempo, Weber analisou a Revolução Russa sob um ângulo nacionalista, tentando apreender em que medida os conflitos em curso poderiam acirrar as tensões políticas e até mesmo militares entre a Rússia e a Alemanha.
Já no interior do Partido Social Democrata Alemão, as discussões foram marcadas pela seguinte pergunta: em que medida a greve de massas, instrumento de luta dos trabalhadores russos contra o czarismo, poderia ser incorporada com sucesso pelos organismos políticos e sindicais da classe trabalhadora alemã?
Rosa Luxemburgo celebrou os acontecimentos revolucionários na Rússia e interpretou a greve de massas como um fenômeno espontâneo que revelava os descontentamentos dos trabalhadores com suas condições materiais e os cerceamentos políticos que lhes eram impostos. Dessa forma, ela defendia que o Partido Social Democrata Alemão se aproveitasse desse fenômeno para estimular a consciência de classe dos operários alemães e ao mesmo tempo enxergasse na greve de massas uma estratégia que viabilizaria a transição revolucionária para o socialismo.
O olhar de Karl Kautsky variou conforme as circunstâncias. Durante a ascensão revolucionária, ele julgava que as condições para o socialismo na Rússia eram precárias, mas que o movimento dos trabalhadores russos poderia funcionar como um estopim para a radicalização dos trabalhadores na Europa Ocidental. Nesse caso, a revolução social poderia tornar-se uma realidade na Alemanha e assim retroagir sobre o cenário russo. Se a revolução alemã fosse bem-sucedida, as condições para uma transição socialista na Rússia também seriam favorecidas.
Mas, com a derrota da revolução de 1905 e o crescimento eleitoral do Partido Social Democrata Alemão, Kautsky adota uma estratégia defensiva e passa a considerar a greve de massas como uma arma contraproducente para a estratégia eleitoral e institucionalista desse partido.
Por fim, Eduard Bernstein, que ganhou notoriedade como teórico do reformismo no interior do movimento operário alemão, julgava que a greve de massas era um recurso que deveria ser utilizado com parcimônia, apenas em circunstâncias muito excepcionais. Ele era um defensor ferrenho da estratégia parlamentar e a seu ver a greve de massas teria alguma validade apenas para reagir às tentativas das camadas dominantes de colocar obstáculos à democratização da Alemanha. Bernstein enfatizava as diferenças entre os contextos desses dois países e criticava aqueles discursos que no seu entender buscavam romantizar a greve de massas.
Durante a Revolução de Outubro de 1917, esses autores mais uma vez escreveram sobre a Rússia com a preocupação de analisar as consequências daquele processo para a situação da Alemanha.
Neste momento, os dois países estavam num conflito militar e Weber esforçou-se para evitar que os acontecimentos na Rússia interferissem nos esforços de guerra da Alemanha. Ele temia que o setor hegemônico do movimento operário alemão quebrasse o pacto de união nacional, suspendesse a trégua dos conflitos de classe e enveredasse pelo exemplo dado pelos bolcheviques.
No campo da social-democracia alemã, o debate girou em torno das relações tensas entre a revolução de outubro e os pressupostos da democracia. Tanto Kautsky como Bernstein caracterizaram o governo bolchevique como uma ditadura militar que não deveria se confundir com os esforços da classe trabalhadora alemã na consolidação de uma república democrática.
Embora Rosa Luxemburgo tenha polemizado contra o que lhe parecia uma excessiva concentração do poder nas instâncias superiores do governo bolchevique, ela defendeu a Revolução de Outubro, suas conquistas, e principalmente a ousadia dos trabalhadores russos em se contrapor à guerra entre as potências imperialistas por meio da revolução social.
*Luiz Enrique Vieira de Souza é doutor em sociologia pela USP e professor da UFBA. Especialista em processos de modernização e teoria sociológica clássica, foi bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) na Universidade Técnica de Berlim. Em seu novo livro, Espelho Convexo (Alameda) realizou um estágio de pesquisas em Berlim, onde consultou os originais em alemão dos textos dedicados por Max Weber, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky e Eduard Bernstein, à Revolução Russa de 1905 – alguns deles jamais traduzidos integralmente para o português.
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