Contra o Preconceito

Cara pessoa branca, você consegue não estar sempre no centro?

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Pessoas brancas, cis, hétero, ricas são muito necessárias para que narrativas diversas sejam amplificadas. Na academia, na literatura, nos governos, nos movimentos sociais, no terceiro setor, em todo lugar. Mas não ocupando o centro. Você consegue?

Bianca Santana, Revista Cult

Participei de uma roda de conversa sobre mulheres negras e literatura em João Pessoa, no mês de outubro. Organizávamos as cadeiras, quando uma mulher branca mostrou que perto da janela ficaríamos mais confortáveis. Tudo ótimo até ali, menos o tom. “Viu como aqui é muito melhor?”, sorriu com benevolência, performando a superioridade que parecia sentir.

Ela estava ali para gravar depoimentos em áudio. Garantir que nos dariam voz. Afinal, o que seria de nós, mulheres negras, se as pessoas brancas não nos dessem voz? Ela precisava gravar cada uma, sem perder nada. Nossa roda era tão importante! Pegou uma cadeira giratória, a única dentre as de plástico duro, e colocou no centro. Girava, animada, preparando o gravador. Até que, em um lapso de razão, explicou: estou aqui não para falar, mas para ouvir e gravar. Do centro.

Já sem paciência, pedi por favor para que se integrasse ao círculo. Era impossível enxergar todas as mulheres, objetivo principal da roda, com ela no meio. Boquiaberta e com o cenho franzido de quem-só-estava-ali-para-ajudar-e-era-incompreendida, tirou a cadeira do centro e, de pé, passou a levar o gravador de boca a boca. Pelo meio da roda, é evidente. Parando bem na frente de quem estava com a palavra. Demorou a perceber que podia ir para trás de cada uma das mulheres, não era necessário ficar à frente.

Depois de muitos pedidos, abriu mão de segurar o gravador e aceitou que cada uma, ao falar, segurasse o trambolho. Contrariada, sentada em uma das cadeiras que compunham o círculo sem muitas hierarquias, gesticulava e fazia caretas a cada vez que uma de nós segurava o gravador de forma imprecisa, porque, para ela, existia um único jeito correto de fazer aquilo, e nós não o conhecíamos. Ela não poupava movimentos para que todas percebêssemos a dificuldade em ajudar mulheres negras, mesmo com tanta boa vontade.

O tal registro captou discursos. A partilha mesmo começou quando saiu o gravador. E mesmo sem ele ali, demorei a me conectar ao momento. A branquitude ganhara, mais uma vez, o foco da minha atenção. Respira, é assim mesmo, respira, aproveita, respira, ela não está mais aqui, respira, você convive com isso o tempo todo e já sabe lidar, respira.

Aqui, você, pessoa branca que me lê, deve estar pensando que a mulher era sem noção e que, não necessariamente, a postura descrita tem a ver com o fato de ela ser branca. E você pode ter razão. Mas lembre-se daquela vez, quando você abordou uma pessoa negra como se ela fosse a faxineira, a atendente, a que estava ali para servir, e ela não estava. Isso pode ter acontecido ao ver uma pessoa branca que te pareceu pobre também, eu sei, em outro texto podemos conversar sobre interseccionalidade para compreender melhor as relações entre raça, classe, gênero etc. Mas agora peguemos os exemplos com pessoas negras. De como o branco é o seu padrão de normalidade, então ele pode ocupar qualquer espaço. No nosso imaginário social, às pessoas negras somente alguns lugares estão reservados. Os de subalternidade, servidão, carência, falta de capacidade. Pense nas vezes em que você não sabia como agir entre pessoas negras que ocupavam lugar de poder. De quando se colocou na posição de ensinar ou ajudar quem não precisava da sua ajuda, ou elogiou exageradamente uma mulher negra por sua inteligência ou beleza. É sobre isso que estou falando, e a mulher do gravador me pareceu uma metáfora adequada.

Mas vamos voltar àquela roda. Depois de muito respirar, percebi as outras mulheres brancas que participavam conosco. Das vinte, umas cinco eram brancas. Sentadas lado a lado, não no centro. Ouvindo. Contribuindo com palavras respeitosas, sem caridade, nem acusação. Mulheres brancas que pareciam saber como seus corpos são também racializados. Sentadas ali, integradas, buscavam compreender a importância de uma literatura feminista e antirracista. Com a gente. Não nos ajudando caridosamente. Não fazendo por nós. Não questionando cada uma das nossas frases. Não manifestando estrimiliques nos momentos mais difíceis da conversa. Sem concordar por piedade. Elas participavam da roda, sabendo que vivenciavam a literatura, as relações, o mundo de forma diferente de como o fazem as mulheres negras. Falando a partir de sua perspectiva. E, principalmente, silenciando para ouvir mais pontos de vista. Aquelas eram pessoas brancas que conseguiam, ao menos ali, se deslocar do centro.

E muitas conseguem. Ufa! Poderia citar muitos exemplos. Mas trago de um congresso em Campina Grande, também na Paraíba, o relato de um professor do Sul, da área de psicologia social, que contava nunca ter lidado com as questões raciais até aquele momento, quando aprendia muito com seu orientando negro, e defendia a importância de docentes abraçarem as pesquisas que não têm especialistas em seus departamentos. Se há pouca gente pesquisando gênero e raça, por exemplo, nas universidades Brasil afora, como essa juventude, ávida por gerar um conhecimento tão necessário, vai fazer? Sem a solidariedade e o deslocamento de docentes comprometidos, não só com seu nicho tão específico de pesquisa, mas também com a transformação social? Pessoas brancas, cis, hétero, ricas são muito necessárias para que narrativas diversas sejam amplificadas. Na academia, na literatura, nos governos, nos movimentos sociais, no terceiro setor, em todo lugar. Mas não ocupando o centro. Você consegue?

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